Futebol internacional

Neymar e a história das expetativas de um talento impressionante

Neymar e a história das expetativas de um talento impressionante
Buda Mendes/Getty

A ida do brasileiro para o Al-Hilal consuma a maior sedução conseguida pelo dinheiro da Arábia Saudita a um talentoso jogador no seu auge. O brasileiro será para sempre próximo Bola de Ouro e mais um ‘infeliz’ que coincidiu com Messi e Ronaldo, mas, aos 31 anos, Neymar já movimentou €398 milhões em transferências

Ainda ornamentava um penteado moicano com o cabelo espigado e aplicava, quando em campo, um penso na cana do nariz para lhe abrir as fossas nasais à João Vieira Pinto, era magricela à esparguete e o descaramento futebolístico era habitava-lhe em cada milímetro do corpo então desprovido de tatuagens. Há 10 anos, o moleque-jogador mais afamado do planeta dava simples toques na bola em Camp Nou, tarefa de criança para estimular o gáudio da multidão em Barcelona que se juntara para a apresentação do futuro Bola de Ouro, da próxima estrela mandona do futebol a limar no lugar onde morava uma das duas do binómio mais ditatorial que já existiu.

Passou uma década e Neymar por vezes ofuscou quem o via com várias das promessas que trazia do Brasil, palco da novela maior deste século com guião de quem dá mais para ficar com um miúdo futebolista: todo ele esguio, ágil e inventivo, Neymar fintou até mais não em campos com cada vez mais repletos de robôs de músculos e corridas, o totalmente ambidestro nas fintas livrou-se de adversários, esquivou-se de roubos e deixou incontáveis ladrões esperançosos mal nas fotografias que se foram tirando aos seus melhores momentos. Houve muitos, tantos, e acreditou-se em Neymar.

Com os anos, a crença encolheu com justificações diversas. Como muitos outros, mas quiçá mais do que qualquer outro, a estratosférica disputa entre Lionel Messi e Cristiano Ronaldo empurrou o brasileiro para a sombra não pela capacidade etérea do seu futebol, antes pelo Olimpo numérico dos golos a que só o argentino e o português acederam. Juntando ao talento essa produção em massa de bolas entregues na caixa de correio, é sabido que esses dois monstros tornaram inalcançável uma fasquia que obrigou os terráqueos mais sublimes a terem de aguardar que os seus auges minguassem. Durante muito tempo, Neymar esteve na frente dessa fila de espera.

Foi essa fome faminta que a movê-lo, em 2017, para longe de Barcelona e da tríplice amizade com Messi e Luis Suárez, os amigos terão sempre o grupo de WhatsApp e Neymar ficará eternamente com o ‘e se?’ que levou na mala rumo a Paris. Sem perspetivas de espreitar acima do argentino em talento máximo, estatuto e rendimento, nem paciência para testemunhar de perto a sua decadência física quando esse dia chegasse, o brasileiro quis ser o íman do milionário projeto do PSG para conquistar a Liga dos Campeões e reinar na Europa. Lá foi ele, seduzido pela fragrância do protagonismo que julgou faltar-lhe nos 186 jogos pelo Barça em que deixou 105 golos, 43 assistências e centenas de dribles que fizeram cair queixos.

Olhando agora para a soma dos 173 encontros (118 golos, 55 oferecidos) em que apareceu com o Paris Saint-Germain, o molho da refeição de Neymar será agridoce.

Descolado da faixe esquerda onde vivera em Barcelona, houve a evolução do moleque para um atacante total, transformou-se no vagabundo que recuava para assumir a história da bola, furar equipas adversários no seu núcleo, tocar para fazer os outros jogar e chamando atenções a si para ludibriar quem fosse com dribles incríveis. Porque sim, o estilo de Neymar a evadir corpos é espetacular, sempre o foi, é seguro assumir que sê-lo-á até ao fim dos seus dias como futebolista e também ter como garantido que o brasileiro sofrerá com isso até ao fim - nas seis épocas em Paris, acabou sempre como o jogador com mais faltas sofridas, por encontro, na Liga dos Campeões.

Vieram e virão as más bocas teimar com a teatralidade e o queixume de Neymar ao ser ceifado, uma e outra vez, por adversários impacientes para com a sua genialidade técnica. Desde o início que é inevitável pelo estilo do brasileiro a encarar quem se propõe a tirar-lhe a bola, por sempre deixar o outro aproximar-se o mais possível, fazendo-o acreditar no iminente sucesso da sua intenção e assim lhe servir o mais doloroso dos engodos. As faltas são uma consequência do método, as lesões, ocasionalmente, também o foram: teve duas fraturas de um metatarso nos pés e, na última temporada, foi operado a um tornozelo. Um sem número de frequentes mazelas musculares sugeriram o lado lunar de Neymar.

Ele não tem historietas e relatos do tipo que há 20 anos se ouve acerca da obsessiva natureza de Messi e Ronaldo, profissionais dos sete costados, e da sua minúcia em tudo o que pode elevar-lhes a prestação em campo. Parte da obesa imprensa e atenção mediática dedicada a Neymar sempre escavou as suas escapadelas a meio da época para ir ao Carnaval no Brasil, as festas que organizava com fartura, a sua suposta despreocupação em reger a alimentação com pinças. O corpo de um futebolista é um reflexo de como se comporta fora do campo e desde 2017 que infinito talento contido no de Neymar enfrentou travões constantes.

Sem títulos de maior desde a Champions do tridente maravilha (2015) e amigo de lesões, é irónico que tenha sido num Estádio da Luz cheio de eco e sem gente nas bancadas a maior aproximação de Neymar de uma conquista para o elevar ao sítio onde jogou a carreira para estar. O PSG perdeu esse final para o Bayern na época que só deu 27 jogos ao brasileiro - nunca fez mais de 31 no clube francês, sintoma da falta de continuidade que o acompanhou. E com rumores de nenhuma equipa europeia poder suportar os euros que implicaria ter Neymar, vemo-lo, aos 31 anos, a ser motivo para o chorudo Al Hilal gastar 90 milhões de euros seis anos após o PSG ir aos €222 milhões com que o comprou ao Barcelona, que há uma década gastou €86 milhões para o levar do Santos.

“É pena que o futebol afunilou tanto que ninguém pode pagar estes jogadores. Neymar não tem clubes para jogar porque ninguém consegue pagar o salário e a transferência ao PSG. É dramático. Se calhar havia muito clube a querê-lo e onde Neymar podia fazer a diferença, mas não tem espaço. É um dos talentos mais impressionantes do século XXI, para não dizer mais, e vai deixar um sabor amargo porque, sendo um talento selvagem, foi sempre um jogador que encantou quer na fase de extremo, quer como médio ofensivo, e nunca será justo avaliá-lo por golos e assistências, como não o foi com Ronaldinho”, resumiu Tomás da Cunha no podcast da Tribuna Expresso, ‘No Princípio Era a Bola’, onde o analista e comentador defendeu que Neymar “deve ser avaliado mais pelo lado sensorial”.

Neymar ser o jogador mais caro da história e a causa de obesos €398 milhões terem sido movimentados é o atestado-mor - antes da inflação do preço de um futebolista, da disrupção que a Arábia Saudita está a provocar na indústria do futebol e do quão mais o futebol se está a render ao dinheiro - do desmesurado talento que tem. Mas, igualmente, do quanto esse talento atrela exigências a um jogador e o mede à escala das expetativas. “É muito pernicioso, estamos numa primeira etapa do assalto da Arábia Saudita aos jogadores do futebol europeu. Isto não vai tornar o campeonato saudita mais apetitoso, não será por causa disso que se vai tornar mais encantador”, apontou Rui Malheiro, no mesmo episódio.

Tão pouco Neymar vira pior futebolista por optar ir receber balúrdios (diz-se que cerca de €150 milhões por época) na Arábia Saudita. A perceção, estima e valorização de que goza no carinho dos adeptos e na consciência coletiva do futebol sofrerão por ser o melhor jogador, mais talentoso e mais no auge que cedeu ao absurdo de dinheiro que um regime está a esbanjar para dar a uma liga da periferia dos subúrbios da bola uma pintura irreal. O talento de Neymar continuará a impressionar e a sua consumação a desiludir, mas, tanto ele como todos os outros futebolistas nada devem às expetativas que geram à sua volta sem pedir permissão.

O brasileiro foi só mais um.

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