Os sapatos definiam os limites das balizas e quando não havia bola, uma garrafa de água servia para o efeito. Na praia, em parques de estacionamento ou no meio da estrada em frente a zonas residenciais. Não importava como, nem onde, o importante era jogar futebol. E mesmo em criança, importava ter o dobro da garra e da inteligência. Wendie Renard era sempre a única rapariga do grupo e só jogando o dobro é que conseguia ser respeitada.
Cresceu em Le Prêcheur, na ilha francesa da Martinica, uma zona que descreve como “o fim do mundo” por causa do isolamento, mas onde foi muito feliz enquanto criança. Precisava apenas de sol, do mar e de futebol.
“Para mim, não havia nada melhor do que a vida no fim do mundo. Eu não conhecia nada diferente”, escreveu no “The Players’ Tribune”. “Mas depois correu mal. Assim, sem mais nem menos”.
Quando tinha apenas oito anos, a família descobriu que o pai de Renard tinha cancro do pulmão. Foi um choque para todos, mas principalmente para uma criança que nem consegue ainda entender o que isso realmente significa: “Quando tens oito anos, não tens nada com que te preocupar. Quando tens oito anos, tens o futebol. Quando tens oito anos, tens a praia. Eu tinha a minha mãe. Tinha o meu pai. Tinha jantares de domingo sentada ao lado dele à mesa. Quando tens oito anos, é suposto o teu pai estar por perto para sempre”.
Nos meses seguintes viveu maioritariamente com as irmãs. O pai foi internado e a mãe passou a maior parte do tempo ao seu lado. Era agosto quando Wendie foi chamada ao hospital para se despedir. Quando saiu do quarto, conseguiu perceber o que aquilo significava, que a partir dali a vida seria diferente, mas percebeu também o que queria fazer a seguir.
“Algo aconteceu na minha cabeça. Disse a mim mesma: 'a mãe e o pai não estarão sempre presentes, por isso, se vires uma oportunidade, tens de aproveitá-la'. Quando se cresce na Martinica, não se é seguido de perto e regularmente como outro jovem jogador, por isso quando se tem uma oportunidade num treino de captação, tens que provar o que vales quatro vezes mais. Eu só tinha uma coisa em mente: o sucesso. Não se pensa nos perigos ou no que aconteceria se falhasse”, disse à “ESPN”.

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Quando revelou à sua professora o que queria ser quando fosse grande, Renard ouviu que nunca poderia ser jogadora de futebol profissional porque, para uma mulher, "esse emprego não existe". Não aceitou a resposta. Aos 15 anos apresentou-se em Clairefontaine, a academia-mãe de futebol francês, perto de Paris, mas não conseguiu um lugar num dos programas mais cobiçados do país. No ano seguinte tentou de novo, desta vez na academia do Lyon. Farid Benstiti foi o treinador que lhe deu uma vaga.
Mudou-se com apenas 16 anos e sem a mãe para a acompanhar. Na altura a família passava por dificuldades financeiras e a ideia não era sequer uma possibilidade. A situação foi difícil para a mãe que viu a filha mudar de cidade para se juntar a pessoas que não conhecia. E para Renard, que não encontrou uma realidade fácil em Lyon.
“Durante aqueles primeiros dias em Lyon não percebia porque é que as pessoas gozavam comigo. Um jogador de basquetebol da mesma zona que eu disse-me: 'Estão a gozar com o nosso sotaque'”, contou. “Todos à minha volta eram mais baixos e houve também muitos comentários a esse respeito: 'Como é que a vou defender? Eu não quero estar ao lado dela, é demasiado grande'. Quando se é jovem, não se percebe como isto pode doer. Se eu não tivesse sido tão forte mentalmente, se não soubesse o que queria, poderia ter sido desencorajada”.
O resto, como se costuma dizer, é história.
“Deixei de ser uma criança solitária de 16 anos, que chorava antes da aula de francês, perguntando-me se alguma vez seria mais fácil, se as pessoas deixariam de gozar com o meu sotaque. Se alguma vez me sentiria um pouco em casa. Para passar a jogar pela equipa principal, usar a braçadeira de capitã e vestir a camisola nacional francesa”, escreveu no “The Players’ Tribune”.
É uma das jogadoras mais condecoradas de todos os tempos. Foram 14 títulos da liga francesa e oito troféus da Liga dos Campeões, incluindo a atuação dominante deste ano contra a poderosa equipa do Barcelona na final. Com a seleção francesa, participou em dois Mundiais e dois Jogos Olímpicos. Renard, de 1,87m, também liderou a equipa em golos marcados no Campeonato do Mundo de 2019, com os seus quatro, mostrando que é forte em qualquer zona do campo.

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Renard é um ícone do futebol feminino, ídolo de várias raparigas que sonham em seguir os passos da jogadora. Mesmo quando insistem em compará-la a um jogador homem para exaltarem o quão boa é. A jogadora tem sido descrita como a versão feminina de Virgil van Dijk. Olhando para o facto de que venceu o seu primeiro título ao serviço do Lyon na temporada 2006/07, bem antes do neerlandês se destacar no Liverpool, talvez a comparação devesse ser feita ao contrário.
Quem Renard viu jogar foi Ronaldinho, o ídolo da infância, e Cristiano Ronaldo, o jogador que a inspira: “Duas razões: em primeiro lugar, pela sua ética de trabalho. Ele chegou lá por ele. Segundo, quero troféus. Fiquei no Lyon toda a minha carreira. As pessoas têm perguntado porquê, tive a oportunidade de jogar em outras ligas. Mas resume-se a isto, e talvez como mulheres não se espere que digamos isto. Mas sim, eu quero esses troféus. Quero os títulos da Liga dos Campeões época após época. Quero os recordes da Liga. Eu quero rivalidades. Quero os insultos quando entro em campo num dérbi”, disse.
E há um troféu que falta. Renard nunca venceu nada ao serviço da seleção francesa, nem em 2019, quando o país foi anfitrião do Mundial e tinha algum favoritismo. Uma vitória com a equipa nacional significaria três coisas para Renard: mais um troféu, uma oportunidade de evolução para o futebol feminino em França e a certeza de que todas as raparigas no seu país saberiam que a profissão, sim, existe.