Adaptada a ditames rodoviários, a parábola do ovo e da galinha tem um equivalente na Fórmula 1, onde cada equipa ter dois pilotos é uma claustrofobia de egos sobre quatro rodas. Por ser ajudado por um batalhão de engenheiros, um sem fim de dados sobre o que fazem em pista, tantas afinações orquestradas nos carros e milhões de euros injetados em tudo isto, um piloto conduz por muita gente, mas, quando enchouriçado no apertado monolugar, banalizou-se uma certa conivência em vê-lo a conduzir por ele próprio e pelo que isso implica.
A Fórmula 1 há muito que é um veloz passear de egos, de vontades focadas no próprio umbigo a acelerarem ao triplo do permitido a um vulgar cidadão ao volante de um banal automóvel numa retilínea autoestrada alcatroada para o efeito. Então em equipas que lutem pela conquista de corridas e pelos dois títulos que há na modalidade, a colisão de personalidades que desejam o mesmo é vista quase como uma inevitabilidade. A Red Bull, tendo Max Verstappen e Sergio Pérez, podia-se considerar uma afortunada a mexer nestes delicados fios de marioneta até este domingo.
Sem esconder a predileção pelo neerlandês e por empurrá-lo rumo ao título mundial, o mexicano sempre aparentou lidar pacificamente com a condição de segundo piloto da escuderia austríaca. Os louros dirigidos a Pérez sucederam-se devido ao brio possível com que foi escudando o ataque ao título de Verstappen, incluído do próprio companheiro de equipa. “O ‘Checo’ é uma lenda”, disse o em breve campeão mundial, na pista de Abu Dhabi, em 2021, quando o mexicano, então na liderança da última corrida da época, fez por abrandar o Lewis Hamilton que tinha na traseira do carro, ávido por o ultrapassar.
A condução defensiva e retardadora do Pérez permitiu ao neerlandês, que tinha de vencer a prova para se agarrar ao primeiro título da carreira, encurtar a distância para a frente da corrida, elogiando o esforço e a abnegação de quem também manda num carro capaz de dar o primeiro olá à bandeira axadrezada, mas que tinha já uma temporada feita a respeitar as prioridades definidas pela Red Bull. O ano passado, façanhas semelhantes viram no Azerbaijão, em França ou no Brasil, onde Sergio serviu de tampão para abrandar Hamilton.
O poderio da Red Bull acabaria por ser reincidente este ano. No Japão, o neerlandês agarrou-se ao segundo título mundial com quatro Grandes Prémios de sobra, extraindo uma reciprocidade nos elogios. “Estou muito orgulhoso do que o Max fez esta época, subiu o nível enquanto piloto. Ao início estava a lutar com ele, mas, a meio do ano, alterou o ritmo. A forma como conduziu em algumas corridas foi incrível”, reconheceu, então, um congratulador Sergio Pérez. Mas este domingo, em Interlagos, a mutualidade entre os dois pilotos ficou-se por aí.
Na penúltima prova da temporada, já com a liderança na classificação por construtores também garantida - e colocando de parte registos de carreira e caça a recordes de Verstappen - restava à Red Bull fazer os possíveis para fechar o mundial de Fórmula 1 igualmente na posse da segunda posição da hierarquia de pilotos. Em abril, no Grande Prémio de Itália e seis anos depois, a equipa logrou um 1-2, fechando a corrida em Imola com os picos mais elevados do pódio. “Um dos nossos melhores resultados de sempre”, realçou Christian Horner, diretor da escuderia.
Na última volta da corrida de domingo, Verstappen recebeu ordens da Red Bull para se deixar ultrapassar por Pérez com o intuito de o mexicano amealhar mais pontos para a classificação geral, onde luta com Charles Leclerc, da Ferrari, pela vice-liderança. Pediram ao neerlandês que devolvesse a 6.ª posição ao mexicano, que antes a cedera ao companheiro, mas ele rejeitou. “Já vos disse, não me perguntem isso outra vez, estamos claros em relação a isso? Já dei as minhas razões e mantenho-as”, respondeu o bicampeão mundial, via rádio. Ao ser informado da recusa, Pérez ripostou ainda dentro do carro: “Isso mostra quem ele realmente é”.
Os dois pontos que Verstappen somou a mais (oito) do que Pérez teriam deixado o mexicano à frente, ao invés de empatado (290) com o adversário da Ferrari. “Estou surpreendido, não sei o que se passou, especialmente depois de tudo o que fiz por ele. Não entendo as suas razões. Creio que se tem dois campeonatos é graças a mim”, criticaria, já nas boxes e com outras medidas, o piloto mexicano. A aparente coexistência harmoniosa na Red Bull parecia ruir com apenas uma corrida em falta esta época.

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Antes de o pelotão da Fórmula 1 rumar a Abu Dhabi, em jeito de retorno onde a equipa do touro energizado pela bebida austríaco foi tão feliz há um ano, teme-se que as faíscas quase inauditas entre estes dois egos possam ter deixado marcas apesar das palavras amenizadores que, entretanto, Max Verstappen já acrescentou à polémica. “Enquanto equipa, acho que o mais importante é estejamos unidos. Vamos para Abu Dhabi e claro que queremos ganhar e, se houver hipótese de ajudar o ‘Checo’, vou fazê-lo”, garantiu o neerlandês à “Sky Sports F1”, finda uma reunião de equipa convocada logo após a corrida.
Sem desvendar os tais motivos com que justificou a recusa, Verstappen disse somente que “eles entenderam”. A roda das especulações de vários jornais localizam-nas no Grande Prémio do Mónaco deste ano, onde Serio Pérez se despistou a meio da qualificação quando era dono do melhor tempo, provocando uma bandeira vermelha que impediu o neerlandês de tentar ir atrás da pole position. “Percebo o porquê de estar desiludido”, admitiu Verstappen, ao acrescentar palavras algo vagas sobre o companheiro de equipa e deixando uma garantia: “Não somos bebés. Acho que somos profissionais o suficiente para seguirmos em frente”.
Se todos serão capazes de domarem o respetivo ego pelo bem comum, poção mágica que é raro uma equipa ter durante muito tempo, é outro aperitivo para o que falta averiguar nesta temporada da Fórmula 1.