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Crónica
Duarte Gomes

Duarte Gomes

ex-árbitro de futebol

Primeiro jogo do Mundial, primeiro lance ‘polémico’. Mas não compreender uma decisão não significa que ela esteja tecnicamente errada

O chamado fora de jogo semi-automático, que recorre a Inteligência Artificial e a um sistema de animação em 3D, apareceu logo no Catar-Equador e Duarte Gomes elogia esta nova tecnologia, lembrando como, até há bem pouco tempo, os adeptos que estavam nas bancadas ou em casa tinham mais condições para avaliar lances do que aqueles que tinham por missão... avaliar lances

Duarte Gomes

Michael Regan - FIFA

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A tecnologia chegou ao desporto há vários anos, tal como chegou a muitas outras áreas de atividade. O seu aparecimento foi uma das tais inevitabilidades destes tempos, que (quase) todos abraçámos com entusiasmo e alegria.

Hoje em dia existem várias ferramentas capazes de acrescentar qualidade, precisão e credibilidade a tudo o que fazemos e o futebol não é exceção: dos materiais utilizados no fabrico de equipamentos à análise técnica de desempenhos, da monitorização de treinos à melhoria qualitativa dos relvados, da tremenda evolução das bolas oficiais à forma como os jogos são hoje filmados e transmitidos. Tudo mudou, tudo evoluiu e cresceu para (muito) melhor.
Também na arbitragem esse avanço tem sido impressionante e parte da sua cadência tem sido definida nos Campeonatos do Mundo, a montra perfeita para apresentar e maximizar a sua eficácia: em 2014 (no Brasil) foi estreada a linha tecnológica do fora de jogo; em 2018 (na Rússia) o sistema de vídeo arbitragem; e agora (no Catar), o chamado fora de jogo semi-automático, que recorre - vejam bem - a Inteligência Artificial e a um sistema de animação em 3D.
Compreendo quem defende que o futebol deve manter a sua simplicidade original, protegendo o seu nível mais terreno como potenciador de emoções e incerteza. Também eu gosto do jogo jogado por gente que acerta e erra.
A verdade é que isso jamais estará em causa. O advento tecnológico, se bem pensado e melhor utilizado, jamais terminará com a paixão do adepto ou com a picardia entre amigos. Essa componente fará sempre parte de um espetáculo que, em última instância, é jogado e dirigido por pessoas. O remate vitorioso, a decisão controversa, o passe bem medido, a defesa incompleta, a substituição discutível, a tática acertada... tudo no futebol continuará a depender do homem e da sua capacidade e ousadia, da sua competência e qualidade.
O que as novas tecnologias fizeram foi oferecer a quem está lá dentro mais e melhores condições para executar e decidir, para fazer cumprir a lei e, por consequência, para oferecer mais justiça ao jogo.
Até há bem pouco tempo, os adeptos que estavam nas bancadas ou sentados em casa tinham mais condições para avaliar lances do que aqueles que tinham por missão... avaliar lances. Isso era um absurdo, que não fazia sentido nenhum.
O sistema de comunicação, a tecnologia do fora de jogo e, sobretudo, a vídeo arbitragem vieram em socorro daqueles que tinham manifesta e comprovada impossibilidade de avaliar e ainda bem que assim foi.
Claro que ainda assim há erros, porque parte significativa das situações para análise tem forte componente subjetiva, mas esses, lá está, serão sempre os detalhes que estabelecem a diferença entre os mais e os menos qualificados. Entre os mais e os menos competentes.
Nem a propósito, o jogo de estreia do Mundial do Catar - entre a equipa da casa e o Equador - não precisou de mais de três minutos para que acontecesse um lance onde a tecnologia assumiu papel essencial: o golo anulado aos equatorianos foi uma excelente decisão de arbitragem e isso foi factual e indiscutível.
Que ninguém permita que as imagens que a TV transmitiu em nossas casas adultere essa perceção.
Quando Félix Torres (o número 2, defesa do Equador) saltou com o guarda-redes catarense e cabeceou a bola (sim, cabeceou mesmo a bola), o seu colega de equipa (o número 11, Michael Estrada), que estava logo atrás e junto a ele, tinha parte do corpo adiantado em relação ao penúltimo defensor, que por acaso até era Al Sheeb, guarda-redes do Qatar.
Depois do cabeceamento, a bola saltou no solo sem que ninguém a tocasse e foi jogada por Estrada, que tomou parte ativa na jogada nesse preciso momento. Tudo certo, tudo muito bem decidido.
Não compreender ou concordar com uma decisão nem sempre significa que ela esteja tecnicamente errada e essa, garantidamente, não estava.
Desde que não seja intrusiva nem retire emoção e dinâmica ao jogo, toda a tecnologia é bem-vinda à arbitragem. Que nunca ninguém ouse fazer recuar uma realidade que deve ter sentido único.