Crónica

Mil novecentos e oitenta e dois

Icon Sport via Getty Images
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Aquele vestuário amarelo e azul e a maneira simples, inocente e líquida como a bola viajava entre os brasileiros talvez me tenham transportado até aos tempos em que jogava ao lado de amigos com uma vestimenta igual. Era tudo simples sem grandes cálculos. O caminho era para a frente. Jogar por jogar. Porque este sábado há Flamengo - River Plate, para a Copa dos Libertadores

Será possível sentir nostalgia por algo que não foi vivido? A elegância de Sócrates, a simplicidade de Falcão, a encantadora cavalgada de Cerezo, a omnipresença de Júnior, o drible malandro de Leandro e a cartomancia de Zico, definidor de fados e caminhos. Embriagado pela tradicional angústia e beleza da página em branco, contemplei, enquanto Jorge Ben Jor derramava pelos auscultadores, o wallpaper deste computador, a morada de Falcão, Éder, Zico, Júnior, Serginho e, pela cabeleira, talvez Oscar. Encaminham-se para o meio-campo depois do um-zero à Argentina de Menotti e Diego. Não dá para ver os sorrisos estampados nos rostos deles, apenas a vestimenta-amarela-azul-e-branca com números enormes e a diferente dentição das botas que, calcando a relva com passaporte espanhol, falavam ao mundo sobre um correr sereno e convicto.

A viagem até 1982 deveu-se à participação num podcast, daí a total ausência de explicação para o timing deste texto, onde vão constar algumas lembranças daquela Copa. Ou, sendo mais rigoroso, as emoções resgatadas. Vi todos os jogos do eterno Brasil de 82. E calha bem: hoje discute-se como antigamente o estilo de jogo da seleção brasileira e o aniversário da morte de Sócrates está à porta (04.12.2011).

Imaginem um grupo de amigos. Pode ser numa praia, num campo do bairro, numa rua, num quintal, num pelado, terreno ervado ou num imaculado e cheiroso relvado. Tanto faz. As balizas podem ser chinelos, camisolas, pedras, tijolos, cadeiras e mesas ou balizas a sério. Tanto faz. Só interessa jogar à bola: passar, tocar, driblar, enganar o rival, inventar jogadas, testar associações, oferecer ou marcar um golo. Criar. O calculismo é um fantasma que não paira por ali, o ego não passa de um rumor. Chutão é heresia. Só vale alegria. A tática não é rainha, nem a herdeira geometria. Os amigos generosos orbitam à volta da bola, sem grande obediência pela posição inicial. O caos organizado que desorganiza, a baliza adversária no topo da bússola, o divertimento como regra e o gol que soa a redenção. Futebol.

Agora imaginem isto tudo num Campeonato do Mundo.

Peter Robinson - EMPICS

Futebol-arte. É este o termo que aparece em dezenas de textos e vídeos sobre aquela seleção magicada por Telê Santana, um suposto ‘pé frio’ que supostamente tinha um caso de desamor com os troféus. Telê, que seria ‘Mestre Telê’, ganhou enquanto futebolista do Fluminense a alcunha fio de esperança e foi-o aqui mais do que nunca. É recordado por ensinar pacientemente os seus jogadores e, mais importante para esta história, tinha um pacto com a beleza. Se o futebol que os brasileiros levaram para Espanha era arte, os futebolistas eram artistas. Haverá melhor elogio? Esse sentimento seria resgatado quase 30 anos depois, graças aos espanhóis, os tais que testemunharam in loco o fenómeno raro de deuses que foram elevados a homens. Tal como acontecera com a Hungria em 54 e a Holanda de Johan em 74. Afinal, não ganhar é diferente de fracassar, certo?

Jogar para não ser esquecido

O Brasil chegava àquele Campeonato do Mundo, em Espanha, ainda assombrado pela ditadura militar, já enfraquecida. Telê Santana contava com futebolistas politizados. Zico, por exemplo, esteve na origem da criação do Sindicato dos Atletas de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, enquanto Sócrates Brasileiro -- como ele gostava do apelido... -- seria o coração que alimentaria a ‘Democracia Corinthiana’, um experimento que semeou a liberdade no Corinthians e iluminou a sociedade brasileira. O médio do calcanhar de ouro que também era doutor dizia que as pernas lhe permitiram amplificar a voz.

Há uma história maravilhosa que o próprio contou numa TV brasileira. Ainda era estudante de medicina, treinava pouco e jogava no Botafogo de Ribeirão Preto, e, após um turno no hospital, foi atrasado para um jogo em São Paulo com um motorista do clube. Chegados ao estádio, não sabiam onde eram os balneários e ninguém deixou o garoto entrar, não acreditavam que era futebolista. Sócrates decidiu comprar bilhete e lá dentro, sim, foi conduzido para o lugar certo para vestir a farda e passar quase duas horas no escritório com cheiro a jardim. Antes de o futebol ser demasiado sério, este senhor com mais de 1,90m dizia coisas como: “Só quero pagar gasolina e cerveja com os trocados que ganho no Botafogo”. Mas afinal desejou mais: o rapaz queria jogar uma Copa do Mundo e, assim, o futebol ganhou a corrida ao estetoscópio, ferramenta inútil para ouvir o peito de quem o via tocar na bola.

Sócrates
Mark Leech/Offside

Sócrates é o grande responsável por esta imersão no Brasil-82. “Não jogo para ganhar, mas para não ser esquecido. A vitória não é nada, o fundamental é expressar a arte.” Se um homem diz isto, como não satisfazer a curiosidade sobre como jogava ou pensava o jogo?

O camisa 8, barbudo e esguio, levou tão a sério aquela Copa que deixou de beber e fumar para as pernas respeitarem as inquietações do cérebro. “Sócrates sempre sustentou a imagem de craque, mas não exatamente de um grande atleta”, pode ler-se neste texto da “Trivela”. "O gosto do Doutor pela boémia era famoso. O que não necessariamente comprometia a qualidade de seu jogo, baseado muito mais na inteligência e no talento.” Telê Santana irritava-se com os hábitos de Sócrates: “Se se cuidasse como Zico, que não fuma, seria o melhor jogador do Brasil. Agora compensa as deficiências físicas com a juventude e uma classe inegável”.

O Brasil estava inserido no Grupo 6 do Mundial, com Escócia, Nova Zelândia e União Soviética, afastada de Campeonatos do Mundo e Europeus desde 70 e 72. Os brasileiros eram favoritos e os números dos três anos de Telê até ali explicam-no: 32 jogos, 24 vitórias, 6 empates, 2 derrotas, 84 golos marcados e 20 sofridos (clean sheet em 14 ocasiões).

Telê Santana
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O Joga Bonito voltava depois de andar desaparecido nas Copas de 74 e 78, nas quais o Brasil disputou o jogo de terceiro e quarto lugares. Depois de campeões do mundo em 58, 62 e 70, com a finura de Pelé, a canarinha procurava o tetra.

“Não foi um golo, foi um orgasmo sem fim”

Já devia ter aprendido a lição. Há uns meses, um mergulho na final do Euro-88 servia, na teoria, para saborear o sumo da laranja de Michels mas acabou num encantamento pelos soviéticos. Lobanovskiy, pois claro. O futuro mítico treinador foi, no Espanha-82, um dos adjuntos de Konstantin Beskov, o mais velho a sentar-se nos bancos daquele torneio.

Oleh Blokhin era a grande figura. Ainda por cima canhoto. Dava gosto, parecia uma bala. Organizados, técnicos e respeitadores da ordem, os soviéticos jogavam de pé para pé mas também sabiam explorar o deserto deixado para trás pelos rapazes da terra do samba. Volodymyr Bezsonov, o melhor jogador do Mundial sub-20 em 77, estava tocado e a pouca participação no jogo soviético era assinalada pelos comentadores.

Oleh Blokhin
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O 11 de Telê contra a União Soviética contava com Waldir Peres, Leandro, Oscar, Luizinho, Júnior, Falcão, Sócrates, Zico, Dirceu, Éder e Serginho. Modernizando e aborrecendo a conversa, era um 4-3-3, embora Dirceu atuasse como falso extremo, digamos assim. Mas aquilo era, na verdade, um carrossel sem moradas fiscais: Júnior, o lateral esquerdo, era destro e vagabundo; Luizinho, que jogaria no Sporting, pegava na bola e associava-se com os médios; Éder, quando não estava a tentar disparar mísseis, aparecia tanto colado à linha como no corredor central.

Toninho Cerezo, então no Atlético Mineiro, estava suspenso. Lá está, o tal quarteto fantástico do meio-campo só aconteceria porque Falcão convenceu Telê neste jogo. Dirceu seria o sacrificado para dar lugar a uma das narrativas mais importantes do futebol.

Toninho Cerezo
Mark Leech/Offside

Bal, que morreria durante um jogo de veteranos em 2014, marcou o primeiro golo de longe. Waldir Peres, guarda-redes do São Paulo, abordou o lance de uma maneira terrível. Nos primeiros 45’, o desacertado e fora de tom Serginho chutou sete vezes: os sinais estavam aí mas Telê não mudaria o avançado (Careca lesionou-se a quatro dias antes da estreia; Reinaldo estava fora da lista e Dinamite não jogaria qualquer minuto).

O público, implacável na assobiadela aos raros atrasos, começou com os brasileiros e mudou para os cautelosos soviéticos, pela qualidade, sim, mas provavelmente também por aparentes erros de arbitragem. A vantagem durou até aos 75’, altura em que Sócrates pegou na bola, deixou dois soviéticos desamparados e rematou com uma força filosófica, ultrapassando finalmente Dasaev, um homem que parecia ter cola nas mãos. “Não foi um golo, foi um orgasmo sem fim. Inesquecível”, contaria mais tarde o capitão num livro. A dois minutos dos 90, Falcão abriu as pernas e Éder, ao segundo toque, chutou com a bola no ar. Goooooool. Que tiro. Bem-vindos à caminhada da equipa dos golos bonitos.

O voo de Dasaev no golo de Sócrates
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Seguiu-se a Escócia de Graeme Souness (bela jogatana), Gordon Strachan, o futuro culé Steve Archibald e John Robertson, o atrevido extremo que ganhara duas Taças dos Campeões Europeus com o Nottingham Forest. Telê chamou Cerezo para o meio-campo e jogou como nunca havia jogado: quatro homens no miolo (que na teoria despiam o corredor direito, deixando desamparado Leandro). David Narey até marcou primeiro mas o batuque da alegria começou a soar e o quadrado mágico levou tudo à frente: Zico (que livre direto, senhores), Oscar, Falcão e um maradoniano Éder assinaram o 4-1.

O chapéu de Éder a Alan Rough (Escócia)
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A última jornada do grupo foi uma formalidade e um reencontro com a arte: 4-0 à Nova Zelândia, com golos de Zico (2), Falcão e, finalmente, Serginho. O 11, da segunda jornada até ao derradeira jogo com a Itália, foi sempre o mesmo.

Nesta altura já se sabiam algumas coisas. A tabela foi, é e será sempre uma das coisas mais bonitas deste jogo e os brasileiros eram bárbaros nessa arte. As trivelas eram uma banalidade. O antijogo, numa época que os guarda-redes podiam agarrar um atraso, não existia. Os papagaios, ou pipas, eram protagonistas nas bancadas: “Se subir, toda a gente sabe que vai ganhar”, chegaria a dizer um comentador na Globo, em cuja emissão se escuta o tradicional "Brasil!" a cada golo, algo que todos já berrámos alguma vez na vida.

Mais importante era o carrossel artístico que flutuava sobre a relva. Leandro e Júnior eram mais do que laterais, eram alas, médios, extremos, às vezes avançados -- a diferença entre eles era a alergia à linha por parte de Júnior, futuro rei do futebol de praia em Copacabana e Figueira da Foz; Leandro ocupava-se do corredor inteiro na ausência de um extremo. Falcão e Cerezo eram os médios mais posicionais (hmm hmm…); Sócrates e Zico desempenhavam o papel de intelectuais que viajavam em primeira classe, sendo que de vez em quando teriam de aparecer e fechar pela direita, algo que não foi pacífico no balneário. Certa vez, Zico terá dito a Telê que preferia sair a jogar pela direita. Éder era o médio esquerdo, que aparecia por dentro também e chutava sempre que podia; Serginho, que um dia seria avançado do Marítimo, baixava para funcionar de pivot mas não tinha a sorte de ter raízes como havia na floresta que o envolvia; Luizinho era o mais atrevido dos centrais, enquanto Oscar exercia como vogal da omissa facção da normalidade.

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O dia em que o futebol morreu

A segunda fase do torneio juntou no Grupo C três campeões do mundo: Brasil, Argentina e Itália. A seleção de César Menotti, ainda sentada no trono, foi o primeiro adversário. Maradona e Mario Kempes jogavam na frente (no caso de Diego, quem sabe, demasiado). Ia ser difícil, como dizia o comentador, ver um chutão na frente. Menotti e Santana não pensavam muito diferente: ganhar é bom mas importa como. O Brasil fez aqui o jogo mais comprometido com os papéis de cada um, mais presos ao lugar, menos ventureiros. A bola estava dividida entre os versos de Mercedes Sosa e João Gilberto. Ardiles levava o número 1, Tarantini tinha uma cabeleira espectacular. Zico, Serginho e Júnior tocaram música para as redes sambarem até ao 3-0. Não foi jogo para isso tudo. O maravilhoso Júnior foi menos maravilhoso, Sócrates esteve discreto. Maradona viu vermelho direto por entrada violenta a Batista, que também passaria por cá, pelo Restelo. Enfim, houve menos felicidade. Ramón Díaz, o melhor marcador do Mundial sub-20 em 78, reduziu a um minuto do apito final. Um golaço para o adeus.

Mark Leech/Offside

Seguia-se a Itália de Bearzot, que já vencera a Argentina por 2-1 (Tardelli, Cabrini; Passarella) e que antes empatara os três jogos da primeira fase de grupos. Ou seja, bastava um empate ao Brasil. É aqui que se divide o mundo: uns não compreendem a ausência de calculismo (um médio direito e menos cuíca, talvez), outros apaixonam-se ainda mais por esta gente desprendida que não colocava o resultado acima de tudo.

Zoff, Collovati, Scirea, Oriali, Cabrini, Gentile, Antognoni, Tardelli, Conti, Graziani e Rossi sentiram desde o primeiro momento o veneno adocicado das triangulações cantadas a um toque. Não seria o catenaccio puro mas teríamos uma Itália na expectativa. Mas, não nos enganemos, havia também muito talento do outro lado, sobretudo nos pés de Giancarlo Antognoni, um deus em Florença, Bruno Conti, colega de Falcão na AS Roma que jogava à bola tão bem, e Paolo Rossi, o vilão desta história que estivera suspenso dois anos por envolvimento em apostas. “Eu sabia que aquele jogo podia ser o meu funeral”, admitiria o avançado da Juventus ao “Globo Esporte” em 2012.

Dino Zoff, Giancarlo Antognoni, Gaetano Scirea, Claudio Gentile, Fulvio Collovati, Francesco Graziani (em cima) Paolo Rossi, Bruno Conti, Gabriele Oriali, Antonio Cabrini, Marco Tardelli (em baixo)
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O golo italiano, antes dos 5’, chegou pelo flanco “torto”, como lhe chamaria Zico. Conti estava do lado direito com a bola, foi mais brasileiro do que os brasileiros, virou tudo para Cabrini, na esquerda, que estava 1x1 contra Leandro. O cruzamento do ala da Juve encontrou a cabeça de Rossi ao segundo poste. Apesar da narrativa a favor do desequilíbrio, versão corroborada por Zico, Leandro sofreu mais com bolas nas costas do que com superioridades dos rivais.

Depois de Serginho falhar uma bola escandalosa em que esteve olhos nos olhos com Zoff, o Brasil empatou através de uma espécie de tabela divina entre Sócrates e Zico. O doutor enfiou a bola no poste mais próximo, enganando Zoff. “Uma jogada de génios”, berrava o locutor. As pernas de Zico iam sendo castigadas por Gentile, que viu o amarelo logo aos 14’. Um repórter de pista da Globo dava conta que Júnior pedia ajuda para defender o corredor, já que Graziani se ia aproximando de Conti.

Paolo Rossi
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Rossi voltou a marcar depois de um passe errado de Cerezo. O craque brasileiro que bebia um gole de cachaça depois do banho para driblar as constipações ficou desolado e chorou no intervalo. Rossi, 30 anos depois, ilibou-o: “Não foi o Cerezo que errou o passe. O mérito do golo é meu”. A Itália parecia cada vez mais uma militante fortaleza à frente da área, muito mais rija nos duelos, não permitindo aquele carrossel típico e bloqueando as investidas de Júnior e Leandro, que libertavam os criativos. Zico era decisivo nos últimos 30 metros, percebia o espaço como poucos e executava como ninguém. Desta vez, a bola e o ‘10’ não se encontravam naquelas zonas.

Falcão empatou com a canhota (68'), depois de um passo de dança e de um movimento de arrastamento brilhante de Cerezo, que tirou do lugar três italianos. Alguns momentos antes, Rossi falhara clamorosamente o hat-trick. Telê fez entrar Paulo Isidoro (por Serginho), ponta-direita, quem sabe para compor o desenho tático -- Sócrates ficava mais ou menos como falso 9. Ou seja, o tal desequilíbrio mencionado até à exaustão estaria aniquilado. Mas a Itália chegaria ao golo glorioso depois de um canto, novamente por Rossi. “Tiveram azar de encontrar pela frente uma Itália incrível naquele dia”, diria anos mais tarde o avançado. Zoff ainda negou o golo a Sócrates e a Oscar, com uma defesa espectacular. Apesar da pressão e aperto final, não havia maneira de os brasileiros mudarem o marcador. Poucos dias depois, a Itália seria campeã do mundo pela terceira vez.

“O destino é que escreveu isso”, diria depois Falcão, que chorou naquele dia. O futebol só o fez chorar mais duas vezes, em derrotas na final da Libertadores, em 80, e na final da Taça dos Campeões Europeus, em 84, com Internacional e Roma.

Falcão
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Zico, que lamenta o facto de o quadrado do miolo não ter treinado junto, explica: “Estava 2-2 quando entrou o Paulo Isidoro, sofremos o golo com 10 atrás. Estava tudo ali na área e a bola passou pelo meio de todo o mundo. Não era para ser, cara”, disse em entrevista à “Veja”. E não foi.

Teria sido outra história com um ponta-direita a apoiar Leandro? Talvez. Seria diferente com um médio mais posicional como Batista? Quem sabe. E se Telê montasse uma equipa combativa, com faca nos dentes e que mordia os calcanhares? Por favor. Seria eficaz um marcador direto e implacável em cima de Rossi? Quiçá. Teriam saído vitoriosos se cedessem ao antijogo e jogassem com um bloco defensivo? É possível. Podiam ter dado a bola aos italianos e, sendo tão bons em ataques rápidos, esperar? Ah, sim, sim...

Olhem Telê nos olhos.

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Santana, que seria aplaudido de pé pelos jornalistas na sala de imprensa, encolheu os ombros a isso tudo e escolheu a eternidade. Mais tarde, numa entrevista no exigente "Roda Viva" (1992), diria: "Eu já cansei de ouvir, de ler, 'joga bonito mas perde', 'eu prefiro jogar feio e ganhar' - isso é uma balela que se fala. Eu não pego o jogador para enfeitar a jogada, não, mas para jogar o futebol que todos nós gostamos. Quem gosta de futebol gosta de ver aquele futebol de 82, gente. Poxa, é um futebol vistoso". Os debates são cícliclos, hein?

Muitos falaram na morte do futebol naquele dia. Ou no fim da ingenuidade. Foi a ‘Tragédia de Sarriá’. Zico, que ganhara a Libertadores um ano antes ao lado de Júnior e Leandro, explica outra vez: “Se jogássemos atrás e perdêssemos, seríamos criticados. Com aquela equipa e com a visão do Telê sobre futebol, essa era a nossa forma de jogar, perdendo ou ganhando”. Zico diria, muito anos depois, algo como: só joga feio quem não sabe jogar bonito. O mago do Flamengo culpou aquele resultado pela mudança no futebol, principalmente em Campeonatos do Mundo, onde passou a haver mais "futebol-força" em vez do toque. O atleticismo engoliu o jogo.

Michel Barrault / Onze / Icon Sport via Getty Images

Mas nem todos seriam tocados pelos genes irresistíveis do triunfo. “Foi a seleção mais maravilhosa que existiu”, disse recentemente Pep Guardiola, o treinador que assinou a última grande revolução neste desporto. “Se depois de tantos e tantos anos as pessoas ainda recordam essa equipa, é porque era muito boa. Um livro é bom, um filme é bom, uma equipa é boa, quando passam 20, 30, 40 anos e ainda falam deles. Se falam, é porque gerou emoção. Há coisa mais bonita para as pessoas que fazem coisas artísticas? (...) O resto são estatísticas, números. Quantos golos marcaste, quantos títulos conquistaste. Eso son tonterias. Bonito é o que podes gerar. Esse Brasil era um espetáculo”. Um dia mostraram estas palavras a Falcão e o ex-futebolista ficou emocionado (e pediu o vídeo ao jornalista para guardar).

Mark Leech/Offside

Aquele vestuário amarelo e azul dos brasileiros e a maneira simples, inocente e líquida como a bola viajava entre eles talvez me tenham transportado até aos tempos em que jogava ao lado de amigos com uma vestimenta igual, a representar o clube local. Talvez venha daí o encantamento juvenil e o suspiro de alívio por ter sido tudo o que se escreveu. Era simples e sem grandes cálculos. O caminho era para a frente. Jogar por jogar.

Será possível sentir nostalgia por algo que não foi vivido? Sim, porque de certa maneira até foi. O futebol-arte está dentro de cada criança que gosta deste jogo.

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