Ninguém sabe o que sente um guarda-redes. E o FC Porto prevaleceu no Jamor porque rebentou com o do Sporting
PATRICIA DE MELO MOREIRA/Getty
A Taça de Portugal só foi decidida com um penálti no prolongamento, saído da única vez em que o jovem guardião do Sporting, lançado às feras à força, saiu da baliza quando não devia. Antes, os leões já tinham passado uma hora e meia a sofrer devido à expulsão de St.Juste. O FC Porto ganhou (2-1) com Sérgio Conceição já expulso e a equipa acabou a ir buscar o treinador para dentro de campo. Os jogadores atiraram-no ao ar e a época acabou com consolação para uns e sinais de atenção para outros
O sol bate no penteado militar de Pedro Gonçalves, ele tem as têmporas rapadas, quase sem cabelo. Está parado junto à bandeirola de canto, a bola repousa-lhe nas mãos, dobra os joelhos para se agachar e a colocar na relva depois de a ter elevado à altura da sua cabeça e lhe encostar os lábios. Era uma pessoa a ser ternurenta com um objeto.
Beijar a bola quando se está prestes a bater um canto nada tem de profético, nem faz de Pote necessariamente um religioso. É só um gesto, uma manifestação de afeto onde há mais de otimismo do que de garante de o beijador cair nas boas graças de quem, se houver alguém, está a manear a transcendente ordem das coisas nesta tarde no Jamor. Mas, quando o pequeno jogador do Sporting, depois dos lábios, lhe encosta o pé direito e a faz a bola descolar no voo curvado que a dirige ao segundo poste da baliza, lá aparece a cabeça de Jeremiah St. Juste a dar correspondência à profecia.
O golo, aos 20 minutos, não abonou para que Pote venha a ser descrente no poder das superstições momentâneas. Desatada a explosão naquele lado do Estádio Nacional, onde milhares de vestes verdes e brancas se abanam freneticamente em celebração, a ar no recinto esfumaçava-se nas mesmas cores. Enquanto o rasto das tochas preenchia a paisagem norte do relvado, a final jogada da tinha um momento de repouso no meio da euforia. Tivera poucos até então.
Parecia cheirar a churrasco, a ventania que soprava e afunilava no vale do Jamor misturou fragrâncias chamuscadas pelo ar. Não era apenas o odor familiar da brasa, bifana e grelha, a mistura leva odores a fumo de tocha e a explosão de petardes, enfim, cheira a Jamor, tresandava a festa da Taça, “cervejinhas” mil a serem tragadas enquanto a romaria das gentes em direção às bancadas se movia. Fiel à natureza da prova-rainha, a mistela de pessoas não discerne nem distingue, o Estádio Nacional será ainda o único lugar no futebol português onde se pode ver um incógnito adepto cruzar-se, a caminho do seu assento, com os pais do avançado do Sporting e ouvi-lo dizer “o seu filho é extraordinário, obrigado”.
Quem trouxe Viktor Gyökeres ao mundo sorriu, as caras entorpecidas e algo sem jeito, agradeceu e prosseguiu a caminhada a falar no seu sueco nativo, que não é o mesmo mas será parecido com o dinamarquês de outro filho que, faz mais de 20 anos, também terá estado no Jamor com o seu cabelo loiro incandescente à semelhança do pai. Kasper Schmeichel era infante quando Peter jogou com o Sporting uma final contra o FC Porto, em 2000, e dele é a admissão, dita há dias, que “muito poucas pessoas entendem o que é estar na baliza” e na posição onde “tens de aceitar que és responsável por tudo e que qualquer erro que cometas vai custar à tua equipa e retratar-te de uma certa maneira”.
O pai sabia-o, ele sabe-o, Diogo Pinto certamente o sabe e Sérgio Conceição, não o sabendo, ciente é de como isto mexeria com o guardião à força dos leões e o FC Porto poderia aproveitar.
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Ainda o jogo assentava e os dragões, vendo o adiantamento da linha defensiva do Sporting quando a bola estava no meio-campo alheio, eram lestos a lançarem passes para a terra de ninguém entre os três centrais e o novato guarda-redes. Novato é mesmo a palavra: este era o terceiro jogo na equipa principal dos 19 anos de Diogo Pinto, titular apressado desde que o Sporting foi campeão nacional e Israel se lesionou depois de Adán. Verde em experiência e quiçá fértil nos nervos, na ansiedade, nessas sensações que se não teimadas podem gerar a hesitação que teve ao sair da baliza logo ao primeiro ataque do FC Porto, quando o rápido Evanilson foi lançado na profundidade.
O adolescente teve um vai-não-vai e, quando decidiu ir, o avançado já ia chegar à bola. No seu atraso, Diogo Pinto logrou tocar no objeto que viria a ser beijado após o brasileiro o desviar na área. O choque foi inevitável, o susto teria sido prevenível, o sinal estava dado quanto à estratégia do FC Porto para ferir o Sporting onde mais lhe poderia doer. Os leões tinham um jogo mais tricotado, Pote mostrava-se a Gonçalo Inácio nas saídas para com poucos toques combinar com Gyökeres ou Nuno Santos, tentavam fomentar o perigo por aí, mas, enquanto isso, os dragões massacraram as costas da defensiva contrária a cada oportunidade. Até quando a linha se dispunha no limite da área, confiando na segurança à retaguarda.
Nunca a aparentarem ter. Nem quando essa disposição, com Coates a montar um alinhamento que até contava seis corpos, se organizou já de pés dentro do retângulo, o FC Porto hesitou em cruzar a bola para o costado. A tentativa era inofensiva, mas caiu no espaço do menos habituado a fechar tais zonas: Geny Catamo abordou a bola virado para a baliza e o toque que lhe deu com o pé esquerdo serviu de amortecimento desastrado para Evanilson. O avançado chamou-lhe um figo, aos 25 minutos fez o 1-1 e o moçambicano deixou-se cair, de joelhos e cotovelos e a enterrar a cabeça na relva quando os dragões já corriam na direção da sua delirante bancada.
A toada da final não mudaria com os golos em catadupa. O Sporting era a equipa mais engenhosa com a bola, a tentar coisas por dentro do bloco e a construir com variedade; nenhum dos conjuntos pressionava alto a saída do outro, o FC Porto até se preocupava mais em ter Galeno e Francisco Conceição, muitas vezes, a fecharem perto dos alas dos leões para que os seus laterais se pudessem haver com Pote e Trincão, os criadores de desequilíbrios nas costas de Gyökeres. Depois, com bola, o FC Porto jogavam com vertigem, os olhos dos seus estavam vidrados no quintal das traseiras dos três centrais adversários.
Quando mais outra bola longa se lançou para massacrar a profundidade - a corrida foi de Galeno na esquerda para o centro -, o velocista St. Juste socorreu a dobra ao vagaroso Coates, mas, de novo, Diogo Pinto ficou na baliza, no poleiro da pequena área, com a imobilidade que acentuou o prejuízo que o defesa neerlandês teve de perseguir. Ainda ele e Galeno estavam à entrada da área e já as pernas de ambos se entrelaçavam para o brasileiro acabar por cair dentro da zona castigadora. O braço esticado do árbitro assinalou penálti e tirou um cartão amarelo do bolso, depois, o quadro desenha pelos seus braços corrigiu a decisão e a emenda terá sido pior que o soneto para o Sporting.
Em vez de penálti houve livre direto à beira da área que em nada daria, mas o cartão de St. Just virou vermelho. Aos 34 minutos, outro jogo começava, um necessariamente mais inclinado, em que o FC Porto colheu os frutos de outro erro individual dos leões para aí em diante os massacrar de outra forma.
No que restou da primeira parte e em muito do que veria na segunda, os dragões, refastelados na superioridade dos números em campo, carregaram sobre o Sporting em ataque continuado, vagas atrás de vagas, os laterais projetados como extremos e os extremos abertos no campo, à espera de mais uma dança com a bola para se atirarem à cara de Catamo, Eduardo Quaresma ou Nuno Santos, quase sempre desamparados e sem coberturas por perto. A andadura do Jamor à volta do sol ia cobrindo o relvado de sombra, escurecendo-o do negrume do resto da tarde que aguardava os leões - esta final era para eles sofrerem e tentarem resistir.
Já Evanilson e o seu remate precipitado, antes de Chico Conceição e o seu par de tentativas sem mira certeira, tinham feito por incomodar o imberbe Diogo Pinto mais do que os constantes cruzamentos perto da linha de fundo faziam suar os centrais do Sporting quando Rúben Amorim, sentindo os seus carentes de algo a que se agarrarem no sacrifício, se virou para a bancada e esbracejou. O rugido veio em resposta, Pote e Hjulmand pediram mais, só aí, ia a segunda parte no equador, é que o Sporting conseguiu afastar na medida do possível o cerco incessante do FC Porto.
Sem nunca se sentar, sempre irrequieto em cima do relvado, Sérgio Conceição instigava os seus jogadores, cá de cima parecia pedir-lhes rapidez nos passes, que as trocas de bola fossem rápidas para desposicionar os adversários e tê-los a ajustarem os espaços em vez de aguentarem o seu terreno, perto da baliza, síndrome que se via tantos ataques do FC Porto a redundarem: o vício no cruzamento, como se fosse a única via possível, dava ao Sporting a amostra possível de conforto no meio do desconforto que tinha de viver. Com a equipa recolhida em torno do capitão Coates, uma e outra vez a apelar à calma, defender a área pelos ares, apesar da insistência, não custava horrores à equipa mais encolhida em campo.
Os sinais de que assim seria, a de um martelo de golpe repetido a golpear numa parede, estavam dados há muito.
A segunda parte teve Taremi a fazer companhia a Evanilson e ambos, com o tempo, foram-se encafuando na proteção cheia de corpos que o Sporting dava à sua pequena área, onde o iraniano, por muito que fugisse de lá, e o brasileiro se davam a serem engolidos pela molhada de jogadores. Porque qualquer ataca culminava em cruzamento tirada perto da linha de fundo, com o último reduto do Sporting colado ao seu menos experimentado elemento, que só teve duas bolas para impedir, sem moléstias de maior, que fosse parar à baliza.
Os segundos 45 minutos contínuos de sustentação da investida portista pareceram dar um pitada de serenidade ao nervoso Diogo Pinto. Ele agarrara cruzamentos pela relva e no ar, agarrou várias bolas, fez uma parada difícil, saiu até por uma ocasião aos pés de um adversário enquanto a parada vistosa veio da perna esticada de Diogo Costa na única vez que o Sporting ameaçou, numa bola parada. O cargo dos trabalho era para o mais ansioso dos guarda-redes. Quando o empate não se quebrou e o prolongamento arrancou, o novato equivaleu-se ao momento do titular da seleção nacional ao esticar-se, em cima da linha, para negar o golo a Chico Conceição. O adolescente das luvas parecia encadear o seu momentum.
Essas notas sustenidas seriam abafadas pelos decibéis de ruído que pouco depois invadiriam o frio Jamor quando, por fim, Diogo Pinto correu para longe da sua baliza.
PATRICIA DE MELO MOREIRA/Getty
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No fundo, foi a ilusão a causá-lo. Nos minutos prévios, o Sporting ousou pensar que chegar ao desamparado Gyökeres, sozinho na frente, provando que um homem pode ser uma ilha, estava mais acessível - já não despejava bolas para a frente, conseguia ter alguns passes a realmente procurá-lo. Então, a equipa avançou uns metros, afastou-se da sua área. Arriscou. Aconteceu que os jogadores do FC Porto a quem, frenetica e intempestivamente, Sérgio Conceição dera instruções no final dos 90 minutos, não se esqueceram da lição inicial trazida para a final. E viram o relva vaga nas costas dos defesas adversários.
O passe nem saiu na direção da baliza e Evanilson, cansado embora esbaforido, apanharia a bola já quase na linha de fundo, sem ângulo para ver a baliza apetitosa. Nessas condições desfavoráveis ao avançado do FC Porto se resolveu lançar Diogo Pinto, outrora receoso de abandonar os postes e agora apressado a sair da baliza na jogada em que menos recomendável era que o fizesse. Atrasado para um toque que só ele ouviu, projetou-se contra o adversário com um punho cerrado, esmurrando Evanilson, abalroando o brasileiro e ainda caindo em cima dele. O árbitro ainda nem apitara e o guarda-redes já levara a mãos à cabeça. Era o desalento em pessoa.
O penálti que calmamente Taremi converteu, levando o seu tempo, sucumbiu os jogadores do FC Porto para o vórtex da sua bancada. Saltaram painéis publicitários, correram tartã fora e a maralha engoliu-os, desapareceram de vista enquanto Hjulmand, sem estribeiras, refilava com os árbitros devido ao tempo que passava com a final algures perdida por entre os adeptos portistas. Havia 100 minutos jogados. Quando a bola voltou a rolar, pouco houve por jogar no Jamor.
Os dragões trocaram a pressa pela calma, usufruíram do seu jogador a mais em campo e fizeram por pausar as suas posses de bola. Já com Sérgio Conceição do lado de cá da barreira empedrada do estádio, expulso no que poderia ser o derradeiro dos seus 378 encontros a treinar o FC Porto, a equipa tentou serenar a final perante a urgência do Sporting, que se atirou para a frente como pôde e com Paulinho posto perto do matulão sueco. Houve bolas várias na área, até remates de Hjulmand, Diomande e Gyökeres, todos eles murchos e inofensivos, desprovidos da força que os do Sporting tinham dedicado ao esforço da resistência anterior.
Aquando das últimas badaladas dos 120 minutos, o mais baixo dos jogadores da final virou as costas ao relvado e correu para trás do banco do FC Porto, só parou junto à grande onde se amarrou ao talvez gesto maior desta romaria ao Jamor, à casa das tradições do futebol português e dos icónicos momentos: Chico apressou-se a abraçar Sérgio, o fraterno enlace de filho e pai Conceição durou bastantes segundos e a esse seguiu-se o do treinador com Vítor Bruno, depois Wendel, a seguir viriam todos os outros comandados pela autoridade de Pepe, o capitão ausente que tirou o expulso técnico da solitária e o puxou de volta ao campo.
O hurrá coletivo dos dragões fez de braços um trampolim para atirarem Sérgio Conceição ao ar repetidamente. Havia um sorriso de criança, até cá da tribuna se via, na cara do treinador com muitas tardes destas já na carreira. Era um homem a delirar com contenção e a gravidade a trazê-lo para baixo. Por maior alegria que houvesse no contágio que conquistar a Taça no Jamor provoca, nenhuma das almas portistas que se aguentaram no friorento estádio para verem Pepe a erguer o troféu sabia, realmente, onde vai aterrar o treinador amanhã. Nem ele saberá o que virá desse dia reservado para falar do futuro com André Villas-Boas, o presidente eleito lá à espera no alto do Jamor não muito longe do presidente deposto, 42 anos volvidos, um a sorrir com o primeiro título e outro a aguentar a lágrima do seu último.
PATRICIA DE MELO MOREIRA/Getty
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O reluzente pedaço de triunfo que irá para o museu do Dragão serve de consolação para a época de um FC Porto intermitente e com feridas várias para lamber, ainda sem saber com que treinador se terá de reinventar na próxima época. Os incessantes “fica! fica! fica!” gritados a Sérgio Conceição durante a sua ascensão da escadaria do Estádio Nacional sugeriram vontades. Para o Sporting, a Taça de Portugal que viram o rival erguer, cada jogador e técnico, impávido e imóvel no relvado, a ver o que poderia ter sido, será um amargo de boca pesado embora não tão demarcado quanto são os sinais que alertem para outro planeamento de plantel para a temporada próxima.
A culpa longe está de um miúdo e das titubueantes sensações que teve de levar a teste tão cedo, no Jamor, quando o problema começou nos já de si não garantes de segurança que o precederam na ordem da baliza. “A não ser que lá tenham estado, muito poucas pessoas fazem ideias das emoções e mistura de sentimentos de um guarda-redes. Podem especular, mas não têm ideia”, disse Kasper Schmeichel. O mal do Sporting, reforçado perante o bem que fez do FC Porto que, apesar de tudo, acabou a época a sorrir, é ter sido rebentado - não como Frederico Varandas pedira - pela sina dos seus guarda-redes.
Quanto aos dragões, nada se vislumbra na neblina augurada pelo quão enraizados permaneceram no relvado. Mais de uma hora se contava desde que Conceição e Pepe tinham levantado a Taça, depois Villas-Boas e Pinto da Costa numa comunhão simbólica, e a equipa ainda desfrutava do momento com as famílias no campo. Deles era o momento, já nem duas mãos cheias de adeptos sobrava no esqueleto despido do estádio e eles todos ainda lá em baixo. Sem fumo a pairar no ar, tudo dissipado há horas, cheirava agora a despedida. O Jamor, afinal, também pode servir para fins de ciclos.