Um Galeno imparável como o vento e um FC Porto que já se reconhece diante do espelho
Selim Sudheimer
Os portugueses estrearam-se no torneio de futebol mais famoso da Europa com uma vitória, por 3-1, na casa emprestada do Shakhtar em Hamburgo, na Alemanha. Wenderson Galeno fez dois golos e uma assistência primorosa para Mehdi Taremi, um 9 que é 10 e vice-versa que vai recuperando a sua melhor versão
A dignidade tem muitas camadas. O Shakhtar não joga em casa, em Donetsk, desde 2014, após a primeira invasão russa no território. Andaram e andam com a casa às costas, jogando em Lviv e Kiev. E esta noite, na estreia na Liga dos Campeões, contra o FC Porto, a casa foi Hamburgo, na Alemanha.
A dignidade tem muitas camadas e o guarda-redes Dmytro Riznyk, mesmo com a notícia de que perdeu o irmão, no início do mês, para a miserável guerra, jogou e tentou travar o que não era travável, um dragão com fogo nas botas e no espírito. Ou seja, dignidade paga-se com dignidade, por isso o FC Porto foi sério, comprometido, melhor do que tem sido. E bateu, com alguma naturalidade para não dizer facilidade, o Shakhtar, por 3-1.
Galeno voou. É a especialidade. Voa. Deixou para trás pretensões defensivas como se fossem grãos de areia engolidos pelo mar. Era inútil tentar pará-lo. Não bastava ele acreditar nisso, os rivais também alinharam nessa narrativa. Bastaram oito minutos para a explosão do brasileiro ser ativada. Taremi descobriu André Franco, um rapaz que se fez mui mui interessante no campo do Estoril Praia e que fez uma bela exibição esta noite. O médio bateu na baliza e Riznyk defendeu. Na recarga, Galeno meteu o 1-0.
O Shakhtar, porque a dignidade tem as tais camadas, foi atrás e, embora sem conseguir jogar, chegou ao empate, com um belíssimo cabeceamento de Kelsy. O jovencito venezuelano talvez esteja a homenagear Mário Jardel, o melhor marcador dos dragões na competição e que cumpriu o 50.º aniversário na segunda-feira. A alma da jogada esteve no passe de Yaroslav Rakitskyi (porventura muitíssimo fora de forma e vulnerável), um soldado dos tempos áureos do clube e com uma canhota admirável. Mas o Porto chegou à vantagem pouco depois, imaginem por quem… Certo, Galeno. Danylo Sikan errou duas vezes e deu o ouro aos forasteiros mais forasteiros. O extremo esquerdo dos portugueses ganhou em força e encostou, 2-1. Implacável.
Depois dos experimentos na Reboleira, Sérgio Conceição regressou à defesa de 4, com Zaidu na esquerda e David Carmo a segurar a titularidade no eixo da defesa, ao lado do insuperável Pepe. No miolo surgia uma espécie de quadrado, com Alan Varela e Eustaquio a garantirem os equilíbrios e as coberturas, enquanto Iván Jaime e André Franco tentavam criar desequilíbrios e pisar e descobrir e massacrar terrenos baldios. Juntos, faziam desaparecer Taras Stepanenko, o experiente médio e capitão ucraniano. João Mário ia desbloqueando problemas pela direita, superando o rival direto. E Taremi recuperou finalmente a versão taremiana, isto é, um 9 com alma de 10 e vice-versa.
Com o FC Porto superior, embora não dominador mas tremendadamente castigador, o 3-1 chegou à passagem da meia hora. Taremi meteu na baliza depois de mais uma jogada supersónica de Galeno pela esquerda, sacando um cruzamento perfeito com a canhota. Há noites assim e esta, que teve um nobre salpico de fair-play deste futebolista, será inesquecível para o brasileiro.
AXEL HEIMKEN
Como a dignidade tem várias camadas, o Shakhtar tentou manter a sua identidade. Órfão do talento brasileiro de tempos idos – ó que saudades de Willian, Douglas Costa, Taison, Jadson, Fernandinho, etc –, aposta agora na formação e na juventude ucraniana, que tenta jogar futebol com uma guerra a acontecer a poucos metros de distância. A tal identidade, que também se confunde com coragem, foi aprimorada por Roberto de Zerbi, hoje a encantar no Brighton, Luís Castro e Paulo Fonseca, dignos sucessores do supercampeão Mircea Lucescu, há quatro temporadas no rival histórico, o Dynamo Kiev.
Os adeptos do FC Porto faziam-se ouvir. O futebol refinado de Iván Jaime também, tal como o de Franco, que prometem assim tentar pisar as pegadas enormes de Vitinha e devolver ao FC Porto noites especiais de bom futebol. Do outro lado, o central Stav Lemkin, Sikan e o talentoso Sudakov tentavam agitar as águas. Mas o Porto, quase sempre, derreteu a ousadia dos homens que jogavam em casa mas que não jogavam em casa.
A segunda parte, que começou com Wendell por Zaidu, foi mais ou menos protocolar, com o FC Porto a abrandar o ritmo das coisas, a querer ser o adulto na sala e segurando as aventuras do adversário, orientado por um neerlandês, Patrick van Leeuwen, que pois claro jogou em 4-3-3.
Não houve muitas ameaças às balizas, embora Diogo Costa tenha feito uma ou outra defesa a remates mansos. Viram-se, sim, substituições: entraram Nico González, filho do saudoso Fran, Jorge Sánchez, Gonçalo Borges e o regressado Francisco Conceição, um futebolista emprestado que estranhamente recebeu a camisola 10 do clube.
“É um momento difícil para o povo ucraniano, com o qual estamos todos solidários”, declarou Sérgio Conceição na véspera do jogo. “Eles tentam honrar essa luta que estão a ter no seu país, vamos ter uma equipa super motivada. É verdade que agora não há tantos estrangeiros, mas há jovens de qualidade formados no clube e outros com mais experiência, o que é importante nestes jogos de alto gabarito. Esperamos ganhar não pela debilidade do adversário, mas pelo mérito.”
Esta noite, talvez mais do que em qualquer outra noite desta temporada, o FC Porto teve mérito. E foi justamente feliz.