De calções, meia branca e a chinelar, sem um pingo aparente de preocupação, apareceu Jack Grealish para sentir o cheiro a relva do Santiago Bernabéu. A um par de horas do jogo, o bonacheirão inglês que sacode os ombros, sem pudores, a dar conta de que não abdica de uma cerveja com os amigos, o que seria dedicar-se a peregrinações religiosas ao ginásio e que manda Erling Haaland bugiar para o seu banho de gelo (é verídico) quando o norueguês o aconselha ao recato de casa em vez de sair para um copo. São os seus gémeos anormalmente musculados na perna coberta ao mínimo que logo se notam na roda dos onze corcundas que se junta quando o jogo está para arrancar.
Abraços e curvados em comunhão, os jogadores do Manchester City trocaram umas derradeiras palavras antes de devolverem o presente ao lugar do passado. Talvez não dito, mas provavelmente a cutucar em cada uma daquelas cabeças, estava algo como “da última vez que estivemos aqui, aconteceu aquilo”. Nas ruelas da mente de Grealish, o inglês com o futebol mais de rua, poderiam estar também o par de remates de há um ano, as suas duas intervenções que acrescentaram ao pote de provas deste ser um jogo explicável só até certo ponto: no mesmo minuto, aos 87’, viu Ferland Mendy bloquear-lhe um golo sobre a linha e, depois, uma nesga do pé de Thibault Courtois a negar outro.
Todos sabemos o que sucederia nos entretantos.
Por mais mandona e a insuflada de personalidade que tenha sido a entrada do City no Bernadéu, a memória está lá implantada, de raízes cravadas nos socalcos do cérebro. A cada descoberta com sucesso de Rodri, um médio verdadeiro, nas costas da tímida pressão de Benzema e Vinícius Jr., ou do falso médio, John Stones, que por hábito a ele se tem juntado para formar o híbrido 3 + 2 na saída de bola a que Pep Guardiola adjudicou os louros de maior invenção para esta época, parecia morar um “e se” - a ideia de que, por mais assertiva que fosse a presença no retorno da equipa ao estádio maldito, ele pode mesmo virar maldito num ápice.
Durante muito tempo, essa noção pareceu somente ligeira, uma tênue bruma a soprar no ar. A bola era do City e o Real Madrid encolhia-se por iniciativa própria, confortável em medir a sua paciência no incómodo, sem mostras de ser uma equipa sentida por se encolher no seu meio-campo, poupar os seus decanos a correrias e apertar os espaços por onde o adversário lhe pudesse magoar mesmo que tal significasse retirar tempo na bola a Toni Kroos e Luka Modric. Eles viam jogar e ocasionalmente jogavam, ordem trocada das coisas perante a valia de quem se estar a falar.



De Bruyne rematou a passe de Bernardo, o potente Rodri disparou de longe para Courtois de novo ir à relva, Haaland seria o próximo rematador, mas frouxo, e a aberração do golo que é o norueguês teria outra tentativa de cabeça, a cruzamento de Grealish na única vez em que o representante de um bom pub inglês se evadiu de Carvajal, pela esquerda, evitando faíscas entre ambos. Foram algumas e ele repetiria um “let’s play” quando Artur Soares Dias os chamou à razão para evitar condecorá-los com cartões. No jogo das aparências, o Real especulava com a sua tranquilidade em resumir-se a receções de algodão de Benzema no meio de cercos e o City teve 35 minutos de um jogo mestiço.
Os ingleses jogavam com o passado recente, determinados na intenção de cada remate, de cada passe de rutura, em cada jogada que tentavam acelerar, mas palpavelmente nervosos a cada reação à perda de bola em que demoravam mais meio segundo ou alguém não estava tão perto quanto devia do adversário. Quando a técnica de Camavinga, encostado por improviso a lateral esquerdo, tabelou, encostada à própria área, com o toque de leveza de Modric e arrancou campo fora, a perseguição desesperada que Bernardo lhe fez ilustrou o tal ápice com que o Real se dá ao luxo de esperar.
O francês cavalgou uns 80 metros e passou a bola ao lado, à beira da área; era a única opção válida que tinha, a de Vinícius Jr., o estonteante fintador que joga ligado à corrente e que Carlo Ancelotti vai aprimorando em finalizador. O remate seco e forte que deu golo era a surpresa mais previsível do futebol - quando o Real se mirra, precavem e conspira, é porque vêm aí coisas. Nem se avistava a sobrancelha sempre empinada do treinador italiano, por esta altura da sua vida em Madrid já ligará patavina a estatísticas como estas: os merengues tinham um remate na baliza ao intervalo contra sete do City, além de sete contra 31 ataques.
A ganhar, o Real teve outro jogo para jogar porque a crueldade servida por Vini Jr. diminuiu a proximidade do encontro com o da última temporada. O processo de reminiscência evaporava-se. Na prática, o City deixou de matutar tanto na posse e de ir-e-vir tão repetidamente entre Akanji e Rúben Dias, e Gundongan e Stones, quis forçar mais passes verticais. De Bruyne deixou de se limitar a esperar ao centro por abertas - resguardando os momentos em que a bola se perdesse para a equipa ter mais um homem por ali - e repercutiu-se em diagonais pela direita, para zonas onde morre de amores por curvar bolas tensas rumo à área.
Arriscando mais em casa de quem é um perigo tomar riscos destes, o City pôs-se a jeito de os pés de Kroos, calçados no mesmo modelo obsoleto de chuteiras há quase uma década, entrassem na construção de jogo do Real, ligando-se a Modric para os 37 anos do croata dosearem as suas ignições de jogadas perigosas. Houve logo uma entre Vinícius e Benzema com o divergente Carvajal a dar o último toque que isolou o gaulês, cujo remate foi salvo por Ederson logo ao quinto minuto da segunda parte. No último quarto de hora, o guarda-redes voltaria a negar o matreiro avançado: todo o tempo que coube entre essas paradas foi um elogio ao Manchester City.




Às cavalitas da energia de Rodri, inesgotável a antecipar perdas de bola ou a morder qualquer passe e receção adversárias com a arte de estar no sítio certo, agir no timing certo e com a certeza de ir fazer o certo, o City teve mais momentos para viver na metade do Real com os merengues em algum contrapé. O conforto em esperar era menor no lado espanhol, proteger uma vantagem diverge de esperar para ir ter com ela e o acosso dos de Manchester, com jogadas de maior duração, já achava os espaços nas redondezas da área espanhola.
O golo redentor viria de um ‘cá vai disto’ de Kevin de Bruyne, belga de carreira salpicada por momentos espetaculares e gerados à bruta pelas catapultas a que chama pernas. Foi numa chicotada à entrada da área, já depois de não ultrapassar Courtois num cara a cara belga e de afrouxar outra tentativa, de pé esquerdo. Na génese do golo esteve uma bola que rondou o resvés da saída de campo na linha lateral e um passe de Camavinga intercetado pela omnipresença de Rodri.
Não se viu a sexagenária tranquilidade de Ancelotti no apito final, com o italiano a mascar intempestivamente a sua chiclete, a sobrancelha já elevada que nem um suricata quando refilou com o árbitro antes de se afastar para os cumprimentos protocolares de fim de jogo. Empatado o jogo, o City tranquilizou-se nos últimos 20 minutos e quis embalar os espanhóis na sua posse sem Pep trocar um jogador que fosse enquanto o treinador do Real acabava a partida sem a idade nas pernas de Kroos e Modric. Afinal, o Bernabéu não tinha necessariamente de ser como é na sua alma.
Mas, nas derradeiras respirações, parecia que um lugar perseguia outra remontada, que um clube precisava da mística de um estádio injetada na equipa para se lograr outra investida contra as probabilidades. O futuro que há em Tchouaméni ainda estourou um remate à distância para Ederson se agigantar na baliza e viu-se a insistências de Vini Jr. contra Kyle Walker, a vontade em rematar de Asensio, as cavalgadas nem sempre acertadas com bola de Camavinga e Valverde a tentar dar tino a toda uma urgência que o Real Madrid, desta vez, não necessitava. Mas a juventude já a tem na guelra.
Um ano depois, o Manchester City revisitou a tormenta do passado e as circunstâncias - ser a 1.ª mão, perseguir o resultado ao invés de o guardar - ajudaram a atirar terra para cima do que ainda não estava enterrado. Porventura ao lado dessa cova haja espaço para outras pás escavarem, o Real Madrid não limita os seus esperneares de vida surgidos de estados moribundos ao Santiago Bernabéu, nunca se sabe, jamais se pode fiar. Ainda no relvado, Luka Modric falou na “confiança e fé”, conceitos nada estranhos, de que eles “podem ganhar”. E não há sepulturas que cheguem para enterrar o Real Madrid desta década e da anterior.