O futebol é delas, para sempre. E elas estão no Mundial, pela primeira vez
22.02.2023 às 10h04

Joe Allison - FIFA
Com ironia na distância, a seleção nacional teve de ir aos longínquos antípodas da Nova Zelândia para garantir a presença no primeiro Mundial feminino da sua história. Com dois golos de defesas centrais, o último de penálti e já nos descontos, Portugal ganhou (2-1) aos Camarões com o tão português fado do sofrimento pelo meio, conseguindo a inédita qualificação. Um feito que é o culminar de sacrifícios feitos por várias gerações e uma pegada deixada para as que vierem a seguir. Este verão, as portuguesas vão jogar no Campeonato do Mundo
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Comecemos pelo início, todas as histórias brotam de uma génese e no despojado estádio de Hamilton, delgado em gente, o hino português foi o primeiro a ecoar pelas bancadas e a unir esqueletos de jogadoras em abraços de entoação. Caras sérias, fitando o vazio, sobrancelhas a precipitarem-se das testas em olhares carregados pela magnitude da ocasião, ainda as portuguesas entoavam o uníssono da derradeira sílaba de “marchaaaar” quando, à ponta da fileira de jogadoras, uma cara laroca mostrava os dentes. Olhando para a carranca das outras, Kika Nazareth sorria descaradamente.
Porque não?
Aos antípodas de Portugal tiveram de ir para só um singelo jogo estar entra elas e uma inédita presença no Mundial, esse sorriso a contrastar com a carranca justificava-se logo pela ironia das distâncias. Era em Kirikiriroa, nome maori para a cidade a coisa de 100 quilómetros da capital da Nova Zelândia, que a seleção tão perto se punha da qualificação jogando o play-off nos antípodas de onde as futebolistas têm os seus arraiais, elas tão longe, 13 horas à frente na cassete do tempo, e tão perto de uma história que até curvaram Dolores Silva quase em jeito de reverência quando foi à súmula das capitãs escolher o lado do campo e quem saía a jogar.
A bola saiu de Kika, impávida e sozinha no círculo da relva. O primeiro toque pertenceu-lhe e que melhor sinalização de como seria Portugal a ditar por onde, como e a que ritmo se jogaria do que a sua leve simplicidade a tratar uma bola, a pisá-la com a sola, a suavizá-la com as costas do pé direito da mais tecnicamente distinta das futebolistas portuguesas a quem o selecionador nacional gasta o nome, delapida-o em gritos repetitivos. Kika para aqui e Kika para ali, os ecos da falta de gente a rechear um estádio criam a magia da auscultação dos sons para quem vê de longe pela televisão e mais do discerníveis são as palavras que Francisco Neto lhe dirige, com insistência, apesar do que se vê.
A distância técnica entre portuguesas e camaronesas é visível, entre elas caberiam mais quilómetros dos que há entre os países no mapa e ao segundo minuto isso notava-se em que latitude fosse que se estivesse a assistir: a queda de Jéssica Silva para truques e tropelias já a escapulira pela direita, onde cruzou uma bola traiçoeira que apontava ao ângulo da baliza e, no canto originado, a cabeça de Kika cabeceou-a com estrondo ao ferro. Ainda o breu nem crepúsculo era em Portugal e a mandona seleção nacional encostava os Camarões à própria área.
A rapidez de execução da mais básica, porém fundamental sequência que há no futebol, o passe-receção, engrandecia as portuguesas. Essa benfeitoria a saírem da área e a operarem meio-campo baralhava qualquer tentativa de pressão das africanas, Dolores aproximava-se das laterais nos primeiros metros e essa via dava quase sempre quando Catarina Amado, destra à esquerda para Ana Borges aparecer à direita, não conseguiam logo lançar a bola para as constantes diagonais que a fórmula estudada fazia Jéssica e Diana Gomes correrem entre as centrais de fora dos Camarões e as suas alas. A linha de cinco adversária era uma porosidade ambulante.
As camaronesas perseguiam mais do que jogavam, queimavam pestanas e pernas atrás da bola, Andreia Norton e Kika recebiam a bola em lugares de ninguém e quando a sorridente, de invulgar cara séria num livre com baliza à vista, se aprontou para o rematar, acertou na base do poste para a recarga ser felizarda: a central Diana Gomes, na pequena área, fez o 1-0, natural confirmador de uma superioridade que enchia o campo. Nunca em 45 minutos as camaronesas, repetentes na presença em Mundiais (jogaram os dois últimos, em 2019 e 2015), puseram um travão no carroussel da seleção que Francisco Neto, farejando a fragilidade no ar, impelia as portuguesas a aproveitarem com passes no espaço entre as defesas e a guarda-redes.
O selecionador via as médias a receberem bola e a virarem-se com ela à vontade, contemplava as avançadas a maltratarem adversárias cada vez que pediam um passe em corrida e até as laterais as conseguiam lançar à distância, uma e outra vez, não machucando um plano pela insistência porque as adversárias não se ajustavam. E, vendo tanto de tudo, Francisco Neto berrava, chamava Kika, gritava ordens, clamava por Kika de novo, pedia para o ar risco nas jogadas, gastava um pouco mais a alcunha que usa duplamente a décima primeira letra do alfabeto. Pouco antes do intervalo, Jéssilva Silva dominou em vez de logo rematar a mais flagrante das ofertas de Diana Gomes e, no subsequente canto, saltou para cabecear a bola que rasou um poste.
Já o sol se espreguiçava no burgo de quem dominava o jogo quando o treinador teve uns minutos para falar às jogadoras no balneário, vista a primeira parte em que só Nchout, avançada com o pouco usual número 3 na camisola, se escapou numa corrida para timidamente rematar a única tentativa dos Camarões até então. Portugal era a melhor seleção e quando retornou ao campo, com noite caída na Nova Zelândia, quis retomar o ímpeto.

Michael Bradley - FIFA
Porque nada podiam as camaronesas contra a vontade de jogar das portuguesas, parecia bastar isso, o quererem assumir tudo com a bola a rolar na relva, de pé em pé, confiança nas chuteiras e personalidade em tudo como Kika Nazareth, para quem uma adversária a morder-lhe as redondezas é apenas uma contingência banal, ela abraça-a, encara-a e esquiva-se como quem anda sem pensar no que está a fazer e por isso ganha a falta que bate à baliza logo no rearranque e vê, pouco depois, Jéssica Silva a cruzar a bola que acrobaticamente Diana Silva remata pouco sobre a barra.
A seleção regressava com ares de triunfante, novamente a tomar conta da bola e a habitar no meio-campo alheio, a demorar-se muito nas suas jogadas e pouco a recuperar a posse quando a perdia quase sempre perto da baliza protegida por Catherine Biya, a guarda-redes que não podia pregar olho. As palavras também podem chover no molhado e a redundância, no caso, é uma bênção, pois repetir a pegada de Kika nesta partida é uma inevitabilidade a cortejar o hábito - genuína, desprovida de filtros aos seus 20 anos, Portugal teve-a em quase tudo o que congeminou de atacante.
Foi ela, na raridade de estar de costas voltadas para a baliza, quem, na área, recebeu um passe, pareceu ajeitar a bola para uma bicicleta e, não dando, a tocou para Jéssica ver o remate ser bloqueada. Ela quem, recuperada uma bola, logo reagiu, pediu uma tabela e correu rumo às beiças da área para chutar ao alcance da guardiã. Do seu joelho estemporâneo saiu o remate possível quando Jéssiva Silva dobrou a espinha de uma camaronesa na área e cruzou a bola a meia altura. E de Kika lhe chegou o pedido simples de uma tabela para, com cola nos pés, depois tentar passar à baliza uma tentativa já sem forças. Quando uma bola de futebol sorri tanto na companhia de alguém que parece nem ter de se esforçar muito para tal, essa pessoa sublimará sempre qualquer equipa.
Mas, pelos 70 minutos, quando apenas um estrondoso remate de Andreia Norton à barra, a 30 metros da baliza, não teve a influência da mulher que prende o cabelo religiosamente sempre com a mesma fita, o selecionador retirou-a do campo.
E uma aura foi-se com ela.
A seleção não se resume a uma mulher, nunca assim o será, com Kika também Andreia Norton sumiu para o banco e nada de inepto ou inapto há em Andreia Jacinto ou Fátima Pinto, as substitutas. Mas escolhas feitas equivalem a mensagens transmitidas e a troca por tecnicistas com olhos virados para a frente por jogadoras mais de posse e das fases de gestação das jogadas também foi vista pelas camaronesas, que a partir daí cresceram no jogo. E a seleção mirrou, na relva e nas ações.
Sentia-se à distância um precoce ‘ai jesus’, nervos a assobrarem bolas que antes amansavam no pé e agora pareciam ser revestidas a lava. Os passes queimavam, as receções viraram objetos a despachar apressadamente, os duelos passaram a ser propriedade das adversárias, que pressionavam mais e mais à frente no campo. As portuguesas encolhiam-se, as camaronesas assemelhavam-se a gigantes e o peso da ocasião desequilibrava uma balança com o peso do intangível. O sofrimento cheirava a arrelia iminente.
Com seis minutos em falta para os 90’, até num lançamento lateral ofensivo de manual - perto da área contrária, a implorar por estima dada à bola - se arremessou a bola para o meio, onde Diana Silva a teria de agarrar de costas para a baliza e com duas adversárias no encalce. A perda foi pronta, como os Camarões foram a lançar um passe para Michaela Abam fugir nas costas das portuguesas e marcar um susto que foi só isso graças à lupa do VAR, detetora de um fora-de-jogo. O fosso para onde Portugal caíra ficava ainda mais cavado.
Via-se uma incapacidade de segurar a bola, de a manter no pé e geri-la perante a urgência das camaronesas. A proximidade à história cucutava nas cabeças das portuguesas, é fácil adivinhá-lo e mais ainda foi de o ver, a prioridade era despachar qualquer coisa para longe e essa urgência em Dolores Silva, aos 89’, fê-la só roçar na bola da qual pretenderia livrar-se. Acabou por ir docilmente para uma adversária, que a passou a Ajara Nchout para a avançada rodar na área e empatar. Era um desastre tardio, piorado pelos nove minutos de compensação que puseram sorrisos nas caras das camaronesas.
E só aí, perante uma amostra de cataclismo, a seleção reagiu, devolvendo-se aos ataques com tino e revisitando a área contrária já nos descontos. Correndo lá para dentro como não costuma por ser uma média que joga como portagem entre defesa e meio-campo, Andreia Jacinto pediu um passe para logo rematar a bola que uma adversária a deslizar na relva bloqueou com o braço. De repente, o jogo reduziu-se a uma questão de 11 metros de distância de um alvo com 7,32 metros de largura que a pressão cénica, os sacrifícios de gerações passadas, a significância do momento e a história dependente de um pontapé poderiam reduzir na vista de Carole Costa.




Mas não, nunca, a central de hábito enraizado a bater penáltis marcou este ao quarto minuto para lá da fronteira, rebentando com o primeiro soslaio de festa em Hamilton quando as restantes portuguesas a aprisionaram num abraço coletivo logo ali. O que restava no tanque do tempo foi protocolar e todos os corpos da comitiva da seleção, pouco depois, correram cada um desnorteadamente relvado dentro. Pela primeira vez, Portugal vai jogar um Mundial de futebol feminino.
Mas não, isso também não, o futebol é de todos e também é delas, o futebol jogado por mulheres que tantos pulos descarados vai dando no país que agora levarão ao cume da modalidade após duas presenças consecutivas em Europeus. Elas, quase todas, que tiveram de distorcer narizes que viram a dobrar-se na sua infância por quererem jogar o que o preconceito atribui ao masculino, de convencer familiares, de jogarem contra rapazes em criança por não haver raparigas suficientes com chuteiras calçadas, já depois de outras gerações lograrem milagres nas catacumbas do amadorimos que as tinha em pelados, treinos às 23h e problemas com patrões nos empregos diurnos por serem mulheres e quererem jogar à bola.
Elas, as atuais, estavam em lágrimas no relvado enquanto soava Mariza no estádio, era uma canção portuguesa agora a enchê-lo e uma incontável alegria também, tanta que muita se desmancharam em choro quando tiveram um microfone à frente a pedir-lhes uma reação. Era impossível a emoção não lhes escalar pelo corpo. “Penso na geração da Edite [Fernandes], da Carla Couto, de muitas outras que batalharam por este momento”, frisou Carole, das poucas a conter como pôde a gloriosa balbúrdia de sentimentos, lembrando quem antes destas futebolistas jogou por mais do que elas puderam jogar na Nova Zelândia.
Porque receberem nada, terem de gastar o que não têm e darem tudo de si quando pouquíssimas condições lhes davam é o primórdio nada distante (os anos 90 eram assim) do feito agora conseguido pela seleção nacional. Cantou Mariza nas colunas do estádio que “é preciso perder para depois se ganhar, e mesmo ser ver, acreditar”. A crença destas mulheres que não são meninas, nem raparigas como muitas vezes as tratam, foi tanta que chegaram à história e o futuro agora é delas: no verão, estarão na Austrália e Nova Zelândia a darem pontapés contra as americanas campeãs mundiais e as neerlandeses, vice-campeãs.
E sim, o futebol também é delas.