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Crónica de Jogo

Austrália - França. O lema agora é Vélocité, Dembélé, Mbappé

No Catar para atestar, na prática, a fundada teoria de que tem colheitas de talento para encher várias seleções, a França começou lenta e apática contra a Austrália, sofrendo antes de acordar para marcar quatro golos (4-1). Olivier Giroud igualou o recorde de 51 golos de Thierry Henry na seleção, mas viu-se como a equipa gaulesa viverá da pirotecnia frenética nos pés de quem corre pelas alas

Diogo Pombo

Patrick Smith - FIFA

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São mais de duas décadas, mais ou menos desde a devolução de França às felicidades futebolísticas traduzidas em canecos, em 1998, que o país convive com uma espécie de teoria jamais confirmada, de uma instituída noção de gozar de alojamento definitivo das boas-vontades dos deuses da bola: a de ter uma tão abastada área lavrável que a quantidade de colheitas sucessivas de jogadores talentosos lhe dariam para escolher duas ou três seleções nacionais, todas com valor suficiente para se abeirarem de conquistas. É uma suposição disparada no escuro, um palpite quase bobo.

Mas, ao aterrar em Doha, esta fornada de franceses chegou para o Catar servir-lhe de provedoria e, na prática, eles serem uma experiência de laboratório. Ao defesa Kimpembé e aos médios Kanté e Pogba, lesionados à partida, juntou-se o avançado Benzema, magoado já no Médio Oriente, todos uns habitués da titularidade sem os quais a seleção tinha de arranjar forma de jogar, começando por quem vem de uma enorme ilha lá nos confins dos nossos antípodas e faz alcunhas rimarem com nomes de marsupiais.

E acrescentem-se corpos, tirem-se corpos, baralhem-se os nomes e volte-se a dar, os berbicachos enfrentados pelos gauleses têm uma generosa dosagem de auto-inflingido. Estreando-se contra os australianos, tal e qual como há quatro anos, a seleção de França arranca apática e lenta em todos os processos que precedem um passe posto em Mbappé, à esquerda, ou Dembélé, à direita, os aceleradores de serviço se o rame-rame que os precede levar a jogada até eles. Cheios de pirotecnia nos pés, os franceses apenas atacavam a área por fora e através do seu embalo.

Sem a bola, eram amorfos perante as posses da limitada Austrália que tentava jogadas simples, passes simples, movimentações simples, tudo num futebol simplificado que é difícil de jogar, mas facilitado fica para qualquer profissional se tiver em barda dois elementos que distingue os melhores quando os têm em ninharia: tempo e espaço. O central Souttar teve-os em abundância para fazer um passe longuíssimo rumo a Leckie, encostado à direita, cuja receção orientada arremessou Luca Hernández jogada fora (lesionando-o) e o cruzamento tenso pôs a bola em Goodwin, na área. Logo aos 9’, a Austrália marcava.

Os franceses terão percebido a mal o quão precisavam de mudar, mas, mesmo lucrando da maior fatia da bola, em parte face ao bloco médio que os socceroos mantinham - não se aventuraram muito para lá da linha do meio-campo -, submeter-se a outro susto quando Theo Hernández, lateral entrado para substituir o irmão, sem pressão atrasou um péssimo passe que Mitchell Duke recolhe para estoirar um remate que sussurrou o alarme ao poste direito.

Aí já havia 20 minutos. E foi aí que a França acordou.

FRANCK FIFE/Getty

Com a igualmente simples mudança de chip, aproximando os jogadores das receções adversárias e acordando toda a gente para a pressão pós-perda de bola, os gauleses encostaram nos australianos e esfregaram-lhes nas barbas a sua superioridade - na prática, onde tinham que o fazer. Os centrais Upamecano e Konaté mordiam qualquer tentativa de saída, Tchouaméni engolia os médios adversário e o mais pachorrento Rabiot não teve hipótese senão ir a reboque. Foi ele quem empatou de cabeça, na ressaca de um canto (27’) e roubou uma receção medrosa de Atkinson, na saída de bola, para assistir Giroud (32’) pouco depois.

Carentes dos passes geniais, desencantados do nada, que Pogba guarda para a seleção, além do aglutinador que é Benzema, fazendo jogar quem o rodeia, a seleção francesa une agora os seus mais na órbita de Griezmann, um avançado a deambular como médio para gerar um carrossel de passes a meio-campo e a equipa não depender tanto dos foguetes velocistas que tem nas alas. Antes do intervalo, uma jogada mastigada antes de ser acelerada ainda viu o Antoine de avó nascida em Paços de Ferreira a assistir um desperdício de Mbappé. Após o descanso, mais se veria.

Previsivelmente também alertados pelo selecionador Didier Deschamps, os jogadores acertaram-se ainda mais no que se tinham amolecido. Em toda segunda parte se viu um abusador domínio gaulês, agora implacáveis no que antes careciam. Os centrais resumiam a meros segundos a esperança média de vida dos primeiros passes dos australianos, tão encolhidos junto à própria área que não tinham jogadores longe, a quem alcançar com os passes de Aaron Mooy e Riley McGree, os médios que iam sucumbido ao sufoco das evidências - que a França já jogava o que se espera desta França.


Ian MacNicol/Getty

À espetacular, mas falhada bicicleta de Giroud, à tabela que devolveu a Mbappé de calcanhar para um socorrista corte o barrar e à bonita jogada em que a bola rematada por Griezmann foi cortada em cima da linha, a já adulta estrela francesa que ainda era adolescente quando conquistou o último Mundial, em 2018, fez o 3-1 de cabeça (68’), saltando a um cruzamento ajeitado por Dembélé. Dono de semelhante carga elétrica na relação com a bola, cheio de acelerações e desacelerações constantes, mas agindo com a mesma calma que o cansaço dos australianos (fartos de cobrir, compensar, parar e arrancar de novo) lhes permitiam, seria depois Mbappé a assistir Olivier Giroud para o quarto golo (71’).

O último do jogo foi 51.º do avançado na seleção, igualando o recorde de Thierry Henry sem, quiçá, ter metade do reconhecimento popular do já reformado goleador, hoje também em andaduras pelo Catar, como adjunto na Bélgica. De Giroud não brotam dribles vistosos, corridas com a bola ou pequenos toques nas jogadas para fazer jogar quem o acompanha, mas é no seu contrastante estilo que a França tem um avançado garante de finalizações na área. De tentar marcar golos como tiver que ser.

Com ele seguirá esta desfalcada, mas não enfraquecida seleção. O restante jogo demonstrou-o com os franceses a passearem o seu domínio com tabelas bonitas, porém infrutíferas, jogadas conspiradas até um último passe rasgador, tudo a acontecer já na companhia dos entrados Kingsley Coman, Jules Koundé ou Marcus Thuram a demonstrarem que a reciclagem de talento continua absurda, mesmo se os nomes não fomentem o mesmo espanto à primeira audição. Tendo a concentração, o que vai dentro das cabeças e os comportamentos sem bola no sítio, a mini-revolução francesa forçada por mazelas várias tem um lema sob o qual carregar: Vélocité, Dembélé, Mbappé.