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Argentina-Arábia Saudita. A tarde em que Salem Al Dawsari aprendeu sobre os mitos da eternidade

Crónica de Jogo

BSR Agency

A Argentina até começou a vencer, com um penálti batido por Lionel Messi, mas o nível de jogo dos sul-americanos nunca acompanhou o entusiasmo que se vive entre os adeptos que estão em Doha. Pouco depois do intervalo, Saleh Al-Shehri e um golaço de Salem Al-Dawsari desenharam o maior drama do Campeonato do Mundo. Os argentinos entraram no relvado como deuses sorridentes e saíram como anónimos

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Hugo Tavares da Silva

Hugo Tavares da Silva

enviado ao Mundial 2022

Jornalista

Depois de pedir mais um gin tónico, Silva esticou a mão perante este Silva. O pássaro de metal que encurtava as distâncias entre Madrid e Doha voava com muitos argentinos lá dentro. Alguns cantaram por meros segundos, outros iam vendo o documentário sobre Maradona em Nápoles. Juntou-se outro argentino e o futebol estava servido. Silva, diretor de um clube da segunda divisão argentina, dá conta da passagem do sobrinho de um avançado do Independiente, dos anos 90. Falam de um penálti mítico, parece um conto de Osvaldo Soriano. “Ninguém o queria bater”, assume o jovem, a quem faltava um dente na dentadura lateral.

É tão fácil encontrar um argentino em Doha como deixar escapar uma gota de suor. A quantidade de locais e imigrantes que desfilam com a 10, em qualquer estádio e principalmente esta tarde, no Lusail Stadium, é inusitada e intrigante. Mas os sul-americanos caminham com um andar triunfante de quem acabou de arrotar 1986. Está um clima no ar, tresanda a glória. Lionel Messi chegou bem e, embora os outros também, isso chega.

Faltava, no entanto, uma peça neste puzzle, olvidado por tantos, como se fosse um protocolo bocejante: os futebolistas da Arábia Saudita, os eventualmente melhores adeptos que estão no Catar e um treinador mítico, Hervé Renard, que soma seis edições da CAN e vai no terceiro Campeonato do Mundo e que ia traçando uma linha imaginária para a equipa não se estender, engolindo no processo Rodrigo de Paul e Leandro Paredes. A organização dos sauditas era muito interessante, sacaram imensos foras de jogo, tentando manter a linha subida e a equipa compacta.

Se falhou uma bola cantada logo aos 2’, travado por Al-Owais, Messi marcou logo a seguir, num penálti dos tempos modernos, graças a um VAR benevolente. Javier Zanetti, eterno capitão, ia comentando para uma TV. Está sempre impecável. O 4-4-2 da Argentina, com o canhoto especial demasiado preso entre os defesas Ali Al-Boleahi e Yasir Al-Sharani, era muito estanque, desinteressante até, com pouca capacidade de timing e execução para comer metros nas costas da defesa que vestia de verde e branco. Ao intervalo estaria 7-0 em foras de jogo tirados aos argentinos.

Richard Heathcote

Um golaço de Lautaro Martínez, imitando o melhor golo que Pelé nunca marcou, e outro de Messi foram anulados pela bandeirola do assistente ou pelo VAR. O avançado do Inter voltaria a marcar, mas aí nem havia dúvidas quanto ao fora de jogo. Al Malki e Salman al-Faraj, o capitão que não queria escolher campo para dar prioridade ao sorridente Messi, vão-se mostrando. O primeiro é o 6, o que tenta segurar a bola e ditar ventos. Com a camisola 10 estava Salem Al-Dawsari, bom de bola. O ambiente não era incrível, o que era uma questão de tempo.

A tranquilidade dos argentinos augurava uma eventual armadilha. Não estavam a competir como podem e como mostraram até ao Catar 2022. Os sauditas, o vizinho gigante deste pequeno país, criavam desconforto aos sul americanos, principalmente pela direita, onde voava Saud Abdulhamid.

A segunda parte foi como a noite em Doha é, outra coisa completamente diferente. Uma bola algo milagrosa de Firas Albirakan colocou Saleh Al-Shehri na cara de Emiliano Martínez. Superando Cristian Romero, bateu com a canhota e inaugurou o escândalo. Os sauditas no estádio ouviam-se, quem sabe, na casa dos familiares. Um qualquer medidor de decibéis coraria de vergonha. Pouco depois, após enganar três argentinos que vieram com muito mate e esperança de imitar 1978 e 1986 nas malas, o camisola 10 foi mesmo um 10 e meteu a bola no poste mais distante. Salem Al-Dawsari ficou a saber o que sentem os futebolistas que são eternos. “Colapso argentino”, escrevia no Twitter Diego Latorre, ex-futebolista da seleção e Boca Juniors.

Messi parecia querer participar mais. A pressa começou a ser inimiga dos rapazes de listas brancas e azuis do céu, onde não dormiriam esta noite. Lautaro surgiu isolado, por Lionel. Hassan Al Tambakti começou a comer metros e sacou a bola como se tivesse uma colher. E festejou como se tivesse marcado o golo da vitória na final do Mundial. Aos 98’.

James Williamson - AMA

Lionel Scaloni, o selecionador que conta com Walter Samuel, Roberto Ayala e Pablo Aimar por perto, mexeu finalmente. Lisandro Martínez para iniciar melhor as jogadas, Enzo Fernández para tocar com fineza e intenção e Julián Álvarez, o avançado do Manchester City que parece saber tudo sobre espaços e movimentos curtos.

Os sauditas, provavelmente esgotados por tudo o que meteram no jogo, mantinham-se de pé amparados pelos gritos e palmas dos admirados compatriotas no Lusail Stadium. A bola deixou de obedecer mansamente às botas dos argentinos. Messi tentou de cabeça, mas foi fácil para o guarda-redes do Al Hilal. Ia-se apagando a luz que no início da tarde iluminava os sorrisos e os caminhares de argentinos com a glória apontada descuidadamente na agenda. Álvarez tentou de cabeça e antes com o pé diante da baliza quase deserta, mas Al-Amri tirou em cima da linha, engordando a lenda deste grupo.

Salem Al Dawsari ia desfrutando de uma das tardes mais especiais da sua vida. Defendiam tudo lá atrás. E assim, depois de mais uns intermináveis descontos de tempo com tanta da justiça do mundo, seja lá o que isso for, a Arábia Saudita provocou a primeira surpresa do Campeonato do Mundo. Os argenitnos entraram no relvado como deuses e saíram como anónimos. Fora do interior delimitado pelas linhas de cal, os apaixonados sauditas ganharam. Por goleada.