A descoberta do “novo eu” de Sepp Kuss, o “cicloturista” que ganhou a Vuelta depois de ter ajudado os outros a ganhar tudo
Tim de Waele/Getty
O norte-americano venceu a Volta à Espanha 2023, um triunfo inesperado por parte de um dos melhores gregários dos últimos anos. Kuss ficou à frente de Vingegaard e Roglic, os seus companheiros na Jumbo-Visma que se habituaram a beneficiar do trabalho do homem do Colorado e que, depois de terem sido as maiores ameaças à consagração do colega, decidiram tirar o pé na parte final da Vuelta
Sepp Kuss era um rapaz normal do Colorado, alto e magro, amante da prática desportiva. Jogou hóquei no gelo, fez esqui nórdico ou caiaque, seguia com paixão os Denver Broncos, da NFL.
Mas a grande paixão tinha duas rodas. Certo dia, ainda no secundário, perguntaram-lhe com que personalidade se gostaria de sentar para conversar. A resposta foi Peter Sagan, o fenómeno eslovaco, tricampeão do mundo, sete vezes vencedor da camisola verde do Tour e dono de mais uma catrefada de feitos.
Foi no BTT, desafiando as subidas e descidas dos caminhos de montanha, que Kuss se começou a destacar. Enquanto estudava publicidade na universidade do Colorado, ganhou algum protagonismo na cena do mountain bike universitário, mas longe de ser uma estrela precoce.
Em 2016, decidiu apostar na estrada mas, aos 22 anos, não tinha qualquer garantia de chegar a ciclista profissional. Com a idade com que Remco Evenepoel ou Tadej Pogacar já tinham vencido grandes voltas, Kuss não sabia se chegaria, sequer, a fazer das competições de bicicletas o seu ganha-pão exclusivo.
Naquele ano, Sepp, um desconhecido jovem, surpreendeu ao ganhar uma etapa de montanha numa corrida nos Estados Unidos. E, refletindo sobre esse triunfo em 2021, quando já era um profissional consagrado, vemos como uma vitória pode mudar tudo.
“Foi uma surpresa porque nunca vencera nada na minha vida, era a primeira vez que ganhava algo grande e estava a fazer algo relativamente novo. Foi como ‘uau, cool, estou a tentar perceber como é que isto funciona e é porreiro’. Nunca fui um vencedor", confessou.
Aquela triunfo despertou Kuss para a hipótese de ser ciclista profissional. Sete anos passados, outros êxitos acordaram o norte-americano para a possibilidade de ser um líder, um vencedor, aquele que levanta os braços e não o ajudante de luxo para que outros os levantem.
Na etapa 6, Kuss ganhou a partir de uma fuga e ainda teve tempo de cumprimentar o público antes de cruzar a meta
Alexander Hassenstein
Contra quase todos os prognósticos, Kuss é o vencedor da Vuelta 2023. Numa demonstração do poderio da Jumbo-Visma, os seus companheiros Jonas Vingegaard e Primoz Roglic foram, respetivamente, segundo e terceiro. O que liga os três? Cada um ganhou uma das grandes corridas por etapas da temporada, sempre com Kuss na jogada.
No Giro, Roglic foi o vencedor, beneficiando da ajuda de Kuss nas montanhas, particularmente no dia do triunfo de João Almeida, quando o esloveno não conseguiu responder ao português e o norte-americano o rebocou subida acima — a crónica da Tribuna Expresso dessa jornada destaca como “Kuss mostrava a sua classe como um dos melhores gregários de montanha do mundo, minimizando perdas para Roglic até aos últimos metros”; no Tour, Vingegaard foi o campeão, auxiliado por Kuss sempre que o terreno empinava.
A equipa neerlandesa chegou à Vuelta para fazer história, obtendo um hat-trick de vitórias, na mesma temporada, nas corridas italiana, francesa e espanhola. Vingegaard e Roglic eram, na teoria, os líderes, mas Kuss integrou uma fuga na etapa seis, ganhou 2,52 minutos aos favoritos, triunfou na tirada e, dois dias depois, vestiu a camisola vermelha de líder.
Ali, com o símbolo que todos querem vestir, Sepp ter-se-á transformado. Tal como aquela vitória em 2016, quando era um aspirante a profissional, puxou um rapaz que “nunca vencera nada” para corredor feito, o vermelho transformou o trepador do Colorado.
“Descobri um novo nível de auto-confiança, um novo eu, uma nova forma de correr, encontrei possibilidades em mim que desconhecia”, comentou Kuss depois de uma das jornadas na Vuelta. Esse “novo eu” começou a mostrar-se ao mundo no dia do contra-relógio, quando o homem da Jumbo andou como nunca, defendendo a liderança, e só foi verdadeiramente ameaçado pela própria equipa.
Das ofensivas de Roglic e Vingegaard às tréguas
Com Roglic e Vingegaard como únicos verdadeiros rivais de Sepp Kuss, foi-se especulando o que fariam os companheiros que tanto triunfaram com a ajuda do norte-americano quando a Vuelta chegasse às decisões. Inicialmente, parecia haver um cada um por si, um "façam a vossa corrida", ordem para o ataque: na etapa 16, Vingegaard foi na ofensiva e ganhou tempo, mas o momento em que a liderança esteve mais perto de sair do corpo de Kuss terá sido na tirada seguinte.
No Angliru, Roglic e Vingegaard deixaram Kuss para trás
Tim de Waele/Getty
No Angliru, Roglic e Vingegaard deixaram Kuss para trás
Tim de Waele/Getty
12
No Angliru, na mais temível das montanhas espanholas, em dia do 29.º aniversário de Kuss, Vingegaard e Roglic foram, sozinhos, rumo à meta. Por instantes, a aventura do norte-americano parecia estar prestes a acabar, o fiel ajudante deixado para trás, a dura crueza da alta competição.
Só que o camisola vermelha encontrou em Mikel Landa um inesperado aliado. O espanhol, profeta do Landismo — espécie de fé que os seus adeptos têm nele, na esperança de que um dia um ataque do basco o leve a um grande triunfo que nunca teve —, deu uma preciosa ajuda a Kuss no seu pior momento na Vuelta. Um dos ciclistas mais amados do pelotão a ajudar outro de quem, também, todos parecem gostar.
A liderança manteve-se no corpo do norte-americano por escassos 8 segundos. Na etapa de montanha seguinte, a última da Vuelta, já houve ordem unida na Jumbo. Não só Roglic e Vingegaard não atacaram, como o dinamarquês até perdeu tempo propositadamente, para que a vantagem do homem do Colorado aumentasse e um qualquer percalço não colocasse em perigo a vitória de Kuss. Não sabemos o que terá acontecido nos bastidores, entre declarações de Primoz a dizer que tem “sentimentos cruzados”, a garantia de Jonas de que “queria que Sepp ganhasse" e o norte-americano sempre de expressão igual, sorriso rasgado e ar de felicidade.
Ali, a Jumbo decidiu que a trilogia Giro-Tour-Vuelta seria selada por três ciclistas diferentes. Kuss, que até esta temporada só ficara uma vez acima do 15.º lugar numa grande volta, consagra um ano em que foi 14.º no Giro e 12.º no Tour — teria sido bem melhor caso não tivesse sofrido uma aparatosa queda perto do fim — com a subida ao lugar mais alto do pódio de Madrid.
Um gregário de luxo que ama cerveja
Nos últimos anos, a “águia do Colorado” tornou-se no símbolo máximo do homem de equipa que ajuda na montanha. Ele é o gregário perfeito quando as dificuldades surgem, apto para todas as circunstâncias. Capaz de impor ritmos elevados e constantes, para evitar ataques dos rivais, ou de imprimir acelerações que abram caminho às ofensivas dos colegas; frio a ler as corridas, colocando em prática as táticas da Jumbo, e instintivo a saltar às rodas dos mais perigosos adversários; pronto para deixar Pogacar a sofrer nas montanhas do Tour ou rebocar Roglic quando João Almeida atacou no Giro, no dia mais importante para o triunfo do esloveno na corsa rosa.
Com vitórias em etapas na Vuelta em 2019 ou no Tour em 2021, bastava ver Kuss subir as montanhas de uma qualquer corrida de elite para perceber que ali estava um trepador como poucos. Elegante e composto, vê-lo liderar grupos onde já só estavam fenómenos como Vingegaard e Pogacar evidenciava que não eram as pernas que o impediam de aspirar ao triunfo. Vejam-se as fotografias das glórias dos líderes da Jumbo nos últimos anos e, escalando juntamente com os campeões, lá está um americano de cara simpática.
No Tour, Kuss a ajudar Vingegaard contra Pogacar
THOMAS SAMSON/Gettt
No Tour, Kuss a ajudar Vingegaard contra Pogacar
THOMAS SAMSON/Gettt
12
No entanto, até esta temporada, Kuss não se sentia confortável tentando discutir gerais, desligava-se na parte final das etapas, chegou mesmo a dizer que não sabia lidar com o stress de ter de estar atento e ativo em todos os momentos de todas as etapas.
Os sinais de mudança terão começado a surgir no Giro e no Tour, quando Sepp foi ficando cada vez mais dentro da luta do top 10, sem se desconectar das corridas. Na Vuelta, o primeiro triunfo até teve contornos de bela ingenuidade, tocando nas mãos dos espetadores antes de cruzar a meta na etapa seis, mais preocupado em desfrutar do momento do que com o tempo ganho, mas a vermelha ativou-lhe um instinto que lhe era desconhecido.
Kuss e a sua mulher, Noemi, com Bimba, a cadela do casal que até credencial oficial tem
Alexander Hassenstein/Getty
Antes desta Vuelta, Kuss já era um dos mais amados do pelotão, com os fãs a apreciarem as suas subidas elegantes, quase de fato de gala, a sua personalidade afável, as publicações de Bimba, a sua cadela, nas redes sociais.
Mas, nesta Vuelta, a popularidade do norte-americano disparou. Pedem-lhe autógrafos e fotografias, fazem-se homenagens nas redes sociais. Entre algum desconforto e antipatia pela Jumbo como equipa — talvez pela frieza predatória dos neerlandeses, quiçá simplesmente porque quem vence muito gera anti-corpos —, Kuss é o reverso dessa medalha, o amado trepador.
Questionado, numa das últimas etapas, sobre as razões de tanto apreço, Sepp disse se devia ao facto de ser “como é” em cima das duas rodas: “Sou mais um cicloturista, como eles. Sou mais um ciclista do que um corredor”. Uma mensagem que define um homem que diz que “simplesmente” gosta de “andar de bicicleta”, feliz, transformando subidas de longos quilómetros a elevadas pendentes num desfile de prazer.
Com 61 quilos para 1,82 metros de altura, o físico esguio de Kuss parece desenhado para ser trepador. Na ditadura da Jumbo, que às vezes parece mais um exército preparado para conquistar qualquer corrida do que uma equipa de ciclismo, há um norte-americano sorridente a espalhar carinho. Quando voltar a casa, a Andorra, com a sua mulher, poderá brindar ao maior êxito da sua carreira com a bebida que confessa ser o seu guilty pleasure: uma “cerveja fresca”.