Algures a meio desta penúltima etapa do Tour, um contrarrelógio entre Lacapelle-Marival e Rocamadour, longos 40 quilómetros em plano, Bradley Wiggins, vencedor da prova há precisamente 10 anos, não se poupava nas palavras, algumas delas, talvez, até pouco apropriadas para a hora, mesmo que o britânico nunca tenha sido propriamente conhecido por ser um tipo convencional.
Seguia então Wiggins atrás de Wout van Aert numa das motos de um dos canais que transmite a Volta a França e nem o vento a esbofetear-lhe o rosto tirou-lhe a emoção de quem parece estar a assistir a uma obra de arte. “É um prazer ver um ciclista esteticamente tão bonito a correr, isto deixa-me excitado”.
As palavras fortes, gráficas, viscerais explicam-se porque não há explicação para Wout van Aert. Será um homem das clássicas, será um sprinter? Será um trepador ou um contrarrelogista? Ele é isso tudo, numa modalidade conhecida pela sua especificidade, onde o papel de cada um dos homens que compõem uma equipa está bem definido. Menos para Wout van Aert, porque ele pode fazer tudo e fazê-lo bem, com classe e graça. E resultados. Com apenas 27 anos, jovem para o ciclismo, se quiser pode até ser um dia um homem para estas empreitadas especiais que são as voltas de três semanas. Quando olhamos para ele, fica a certeza que basta querer.
Mas o belga vindo desse berço do ciclismo que é a Flandres não precisará de se tornar vencedor da Volta a França ou de Espanha ou Itália para estar um dia no panteão da modalidade. O que fez neste Tour é digno dos mais impressionantes feitos do desporto. Depois de vencer este derradeiro contrarrelógio, colocou o número de triunfos em etapas em três nesta Volta a França, aos quais tem de juntar mais quatro segundos lugares, um no primeiro contrarrelógio e os restantes em discussões ao sprint. Foi ainda terceiro no terrível Hautacam, uma das montanhas mais monstruosas do Tour, ajudando ao golpe de misericórdia a Tadej Pogacar, rebocando o colega de equipa Jonas Vingegaard até a uma vitória final confirmada este sábado. E ainda não acabou: no domingo, na chegada aos Campos Elísios, Wout van Aert volta a ser um dos favoritos - há um ano, foi ele o primeiro a cortar a meta no mítico desfecho do Tour.
Van Aert a receber Jonas Vingegaard na meta, festejando a vitória do dinamarquês. E o triunfo coletivo da Jumbo-Visma
Tim de Waele/Getty
Para o contrarrelógio deste sábado não se esperavam surpresas de maior. Foi na penúltima etapa em 2020, numa crono-escalada, que Tadej Pogacar roubou o primeiro lugar a Primoz Roglic, ganhando o minuto que tinha de desvantagem para o compatriota esloveno e colocando-lhe ainda mais um minuto em cima, numa das reviravoltas mais impressionantes alguma vez vistas na maior prova de ciclismo de planeta. Mas, este ano, Pogacar partia com mais de três minutos de atraso para Jonas Vingegaard, o esquálido dinamarquês que surpreendeu o bicampeão da prova nas montanhas, tirando-lhe um tri que há duas semanas parecia apenas uma formalidade. Não foi e agora até na luta contra o tempo Vingegaard bateu Pogacar, algo em que também ninguém jogaria as suas fichas: chegou em 2.º, a 19 segundos do colega Wout van Aert e 8 segundos mais rápido que o esloveno.
A vitória no Tour, a primeira do jovem de 25 anos, é ainda virtual, só será confirmada no domingo, mas o dinamarquês já pode festejar. A última tirada será para passear até Paris e brindar com o que resta da sua equipa, a Jumbo-Visma, a quem muito terá de agradecer, depois de uma tática coletiva perfeita que surpreendeu Pogacar. E ainda dizem que o ciclismo é um desporto individual.
Em Rocamadour esperavam-no a companheira Trine e a pequena Frida, filha de ambos, e foi nos braços das duas que se afundou, como que ainda incrédulo. Não longe, Wout van Aert fundia ele próprio os seus 1,90m de gente no peito de um elemento do staff da sua equipa, em lágrimas, uma espécie de catarse de um homem que tanto fez pelo sucesso coletivo da Jumbo-Visma, porque a sua impressionante Volta a França não se faz apenas das vitórias de etapa, dos seus ataques, da animação que sempre trouxe à competição. É um faz-tudo na excelência, talvez a grande figura deste Tour, mesmo que não seja dele a camisola amarela que, injustamente, tantas vezes vemos como símbolo único do sucesso. No domingo, um daqueles copos de champanhe que se vão partilhar em plena etapa será seguramente em sua honra.