O Campeonato do Mundo FIA de Resistência (WEC) inclui algumas das corridas mais lendárias do automobilismo como Sebring, nos Estados Unidos, ou Le Mans, em França. Passou este fim de semana por Portugal, com a realização no Autódromo Internacional do Algarve das Seis Horas de Portimão. A Tribuna Expresso esteve lá e desvenda-lhe alguns dos segredos deste tipo de corridas e conta-lhe como foi, seja a partir das bancadas, seja dos bastidores. Eis as dez coisas a reter.
1 – Três corridas numa só. Na sequência do escândalo dieselgate (2015 – manipulação dos dados sobre emissões diesel por parte de alguns fabricantes) as corridas de resistência passaram a obedecer a novos regulamentos. Acabaram os motores a gasóleo, construtores como a Audi ou a McLaren retiraram-se e passou a haver três categorias de carros, todos com um só piloto mas cabine concebida para acomodar dois. Os Hypercars, ou seja protótipos de fábrica com potências da ordem dos 670 cv, motorização híbrida (existindo nesse caso um motor elétrico no eixo dianteiro assegurando tração integral) ou não, os LMP2, ou seja os protótipos dos pobres (relativamente falando, é claro) menos potentes e, finalmente, a terceira divisão, ou seja carros de grande turismo guiados por pilotos não profissionais GTE AM (basicamente Porsches 911 em Portimão). Isto significa uma “cadeia alimentar” em cujo topo estão os protótipos de fábrica (Toyota, Ferrari, Porsche, Peugeot, etc), seguindo-se os restantes protótipos e os grandes turismos. Eram 37 carros nos 4,69 km de pista, com andamentos diferentes e ultrapassagens constantes: o último dos Hypercars ficou a sete voltas do primeiro classificado, o primeiro dos LMP2 a mais sete e o primeiro dos grandes turismos a 16… Olhando das bancadas parecia que os Porsche 911 se arrastavam, comparativamente falando, uma vez que os bólides fazem médias de mais de 180 km/h com pontas de mais de 300 (volta mais rápida por Mike Conway, Toyota, 1 minutos e 32 segundos, à média de 187,6 km/h). Mas se o prezado leitor fosse dentro de um daqueles falsos lentos, garanto que os olhos lhe saltariam das órbitas quando visse a velocidade a que se aproximam das curvas…
2 – Regressos. Marcas que fazem parte da história do automobilismo e da resistência, em particular Maserati, Alfa Romeo, Lotus, Jaguar, Ford ou Mercedes afastaram-se do WEC. Na categoria Hypercar permanecem Ferrari e Porsche, entraram Toyota, Peugeot e Cadillac, sugiram novas marcas como a Glickenhaus. E um nome verdadeiramente lendário regressou: Vanwall. Este carro que marcou a Fórmula 1 entre 1954 e 1960 celebrizou-se, não por andar mais ou por curvar melhor, mas por ter sido o primeiro a montar travões de disco. O que lhe permitia chegar ao fim dos Grandes Prémios e ainda travar alguma coisa, ao contrário dos Alfa Romeo e Maserati que Fangio tinha que atravessar que nem carros de ralis para poder fazer as curvas. Em Portimão, a Vanwall não foi feliz. Jacques Villeneuve (campeão do mundo de F1 em 1997 e filho do malogrado Gilles Villeneuve) teve que se atirar para fora da pista com um disco de travão a arder e desistiu.

TOYOTA GAZOO Racing
3 – Segurança. O desporto automóvel tem riscos que só em parte podem ser minimizados. Durante os treinos de sexta-feira o Porsche de Alexandre Areia ficou sem travões, atravessou a gravilha e saltou para as primeiras fias da bancada na curva 1, setor que, a partir daí, ficou interdito ao público. Entretanto, as preocupações com a segurança têm aumentado, o que passa, por exemplo, pela obrigação de os fotógrafos usarem fatos à prova de fogo e capacetes. E, mal ocorreu o referido acidente com Villeneuve, o carro de segurança (Safety Car guiado pelo antigo piloto Pedro Couceiro) entrou em pista para moderar o andamento dos concorrentes durante várias voltas até a viatura ser retirada. Dentro da zona das boxes a velocidade é limitada e alguns concorrentes sofreram penalizações pesadas por não respeitarem essas limitações.
4 – Ambiente. Desporto automóvel e preocupações ambientais não têm que ser incompatíveis. Basta pensar nas ações de limpeza e reciclagem de lixos nas zonas de público no Rali de Portugal. Em Portimão, durante uma visita à box da Toyota, uma revelação inesperada feita por Thomas Heidbrink, responsável desportivo da marca nipónica: o combustível utilizado é fabricado a partir de resíduos das vindimas feitas em França. Por isso, “quando beberem vinho, estão a ajudar-nos a correr…” Algo em que, num país grande produtor de vinho como Portugal, nunca se deve ter pensado…
5 – Itinerância. Disputando-se em circuitos situados em diferentes países e mesmo continentes, o Mundial de Resistência é também um desafio logístico. Há uma imensa parafernália que é preciso, montar, desmontar e deslocar de um lado para o outro, desde a parte oficinal, aos armazéns (ferramentas, peças, pneus, etc.), à hotelaria (autocaravanas dos pilotos e zonas de escritório). A chave são camiões que parecem fazer parte de um Lego gigante. Durante uma vista à box da Peugeot foi-nos explicado que as paredes e tetos tanto sobem para formar escritórios e armazéns, como rebatem e servem de plataforma para transportar os dois Hypercar 9x8 da equipa Total Energies.
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6 – Peso. Quando mais leve for um carro, mais anda e menos esforça motor, transmissões e travões, isto desde que o aligeiramento não signifique enfraquecer a estrutura. Algo que nas equipas de topo é levado bastante a sério. Ainda que do ponto de vista do regulamento haja um peso mínimo total do carro a respeitar, da ordem de pouco mais de uma tonelada, tudo é aligeirado nem que seja alguns gramas. É o caso das rodas (pneu mais jante) que pesam à volta de 25 kg cada uma. Ou das frentes dos carros (grelha, capô e faróis), todas em fibras reforçadas (kevlar e afins) e pesando à volta de 50 kg.
7 – Largada. Ao contrário da Formula 1, em Portimão os carros não largaram da grelha de partida ao sinal verde. A partida é lançada, com o pelotão a dar duas voltas ao circuito atrás dos Safety Cars. Apenas quando estes saem da pista na zona da reta da meta é que cada um começa a acelerar o que pode. Ainda que se trate de uma prova de seis horas, o lugar na grelha não é considerado despiciendo pelos pilotos da frente. Para Mark Conway, piloto da Toyota que falou a um grupo de jornalistas portugueses na véspera da corrida, “o lugar na grelha tem sempre alguma importância e, portanto, mesmo numa corrida longa (mais de duas centenas de voltas) é importante estar o mais à frente possível.”
8 – Boxes. Tal como no teatro e na música, o segredo do sucesso está em larga medida longe da vista do público, ou seja, nos bastidores. Na guerra, o estado-maior está afastado da linha da frente e aqui o seu equivalente é um primeiro centro de comando, montado no contentor de um camião, albergando um grupo de engenheiros e o estratega da corrida, a observarem tudo nos ecrãs, desde os diversos parâmetros que medem o desempenho do carro, às imagens filmadas de dentro da viatura. Depois, há as “trincheiras”, ou seja a box. Na segunda linha, novo conjunto de ecrãs vigiados por engenheiros e pelos pilotos que vão entrar de turno. Na primeira linha, os mecânicos que tanto fazem o trivial, ou seja reabastecer e mudar pneus, como empurram o carro lá para dentro e realizam operações de manutenção mais complicadas se for o caso. Um trivial que não o é tanto como isso porque movimentar no mínimo de tempo uma roda de 25 kg exige tanto força, como destreza. Fora isso, os mecânicos, de capacete e fato ignifugo, fazem como os soldados: recostam-se na cadeira e passam pelas brasas à espera do próximo momento de stresse. Na corrida de Portimão os pilotos da frente rodaram de 45 em 45 minutos.
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9 – Tecnologia. Muitas das soluções que se ensaiam na competição acabam por vir parar aos carros do dia a dia. Fabricantes como a Peugeot ou a Toyota não prescindem dos sistemas híbridos, ainda que o regulamento já não o imponha e adversários como a Glickenhaus prescindam dele. “Continuamos a usar os ralis ou a resistência para aperfeiçoar e desenvolver as nossas motorizações híbridas”, disse aos jornalistas portugueses Thomas Heidbrink, da marca nipónica. Do lado da Peugeot reconhece-se pela voz de Jean-Marc Finot, diretor de competição do grupo Stellantis que o Hypercar 9x8 “ainda precisa de evoluir mais”. Ou, como disse o piloto brasileiro Gustavo Meneses, “neste momento não se trata tanto de ganhar corridas mas sobretudo de ganhar experiência”.
10 – Luta. Ao contrário da Fórmula 1 dos últimos anos, geralmente dominada por uma só marca e/ou um só piloto, o Mundial de Resistência tem bastante mais animação. Pelo que se viu em Portimão, há uma hegemonia relativa da Toyota que após Portimão ocupa os primeiro e terceiro lugares do campeonato. Já tinha vencido em Sebring e no Autódrromo Internacional do Algarve voltou a fazê-lo ao fim de 222 voltas (Sébastien Buemi, Brendon Hartley e Ryo Hirakawa ) mas Ferrari (2.º lugar, a uma volta) e Porsche Penske (3.º) não andam tão longe como isso, bem como a Cadillac (4.º). Quanto à Peugeot fez o 5.º e o 7.º lugares, sendo este último relevante, uma vez que Paul Di Resta e depois Jean-Eric Vergne (ex-campeão mundial de Fórmula E) e Mikkel Jensen tiveram que recuperar três dezenas de posições, uma vez que largaram das boxes devido a um problema de direção assistida surgido no treinos de qualificação. Não menos emocionante a corrida do Toyota n.º 7 (Mike Conway, Kamui Kobayashi e José María López) que perdeu o 2.º lugar (por obrigação ditada pelos comissários da FIA de substituir um sensor de binário). Ficou 11 minutos na box, descendo para 20.º mas encetou a recuperação até ao 9.º (último dos Hypercars). Lá mais atrás, uma palavra para a única equipa feminina, apropriadamente designada como Iron Dames. As três damas de ferro fizeram melhor que muitos barbudos e o seu Porsche 911 pintado de cor-de-rosa foi o 3.º em GT AM. Quanto aos portugueses, por aqui andaram Felix da Costa que no Oreca 07 foi 5.º dos LMP2 (vai passar para os Hypercars) ou Guilherme de Oliveira/Miguel Ramos (mais Matteo Cairolli) que foram sextos em GT AM num Porsche 911.