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Morreu Pelé, aos 82 anos. Todas as monarquias precisam de um certo misticismo para viver: a do 'Rei' é a camisola 10

Pelé morreu esta quinta-feira, aos 82 anos, segundo a “Associated Press”. Lutava contra um cancro no cólon e estava hospitalizado desde o final de novembro. Esta é uma breve introdução para compreender a extensão do mito do futebol que esteve sempre à frente dos outros

Evandro Furoni, em São Paulo

Hulton Deutsch/Getty

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Havia dois hábitos muito famosos de Edson Arantes do Nascimento. O primeiro é o de terminar todas as frases com “entende?” (percebes?), costume de alguém que a vida inteira pareceu à frente dos marcadores. Às vezes é necessário garantir que estão a acompanhar.

O segundo é que Edson referia-se a si mesmo como Edson, mas quando o assunto eram os seus tempos como futebolista, usava a terceira pessoa, “o Pelé”. Edson foi o primeiro a entender que seu corpo pode ceder, que suas palavras após retirar-se nem sempre receberam os mesmos elogios de seus golos, mas nada afetará Pelé.

Pelé, o Rei, é imortal.

Estar à frente dos outros é uma constante na biografia de Pelé. Descoberto aos 13 anos em uma pequena cidade de São Paulo, um ex-futebolista ali previu que estava diante do melhor do mundo. Tornou-se profissional aos 16, conquistou o Mundial aos 17 e foi coroado rei diante de Gustavo VI, antes mesmo de ser considerado legalmente adulto no Brasil.

Há aí uma certa justiça histórica. Num Brasil com uma relação de indiferença para a sua família real (sim, ela existe), o único monarca aceite por todos é um futebolista, o “Rei Pelé”.

O nome não indica apenas alguém superior aos seus semelhantes - Didi foi escolhido o melhor jogador daquele Mundial, Garrincha o herói brasileiro por ser o mais brasileiro de todos os futebolistas, mas há um ar de realeza no estilo jogo de Pelé. O seu golo mais famoso, na final do Mundial diante da Suécia, é exemplo. A bola é jogada por cima do central adversário, Pelé continua ereto, apenas a esperar o chute sem deixá-la tocar o chão, com a etiqueta das melhores escolas suíças.

Toda a monarquia necessita de um certo misticismo para sobreviver, e com Pelé não é diferente. Ao contrário da roupa do rei parvo, o manto real de Pelé não é invisível, é visto no relvado até hoje. A camisola número 10 é sagrada no futebol brasileiro por causa de Pelé. Quando Neymar, um 7 ou um 11 pelas convenções sul-americanas, decide usar a 10, é para colocar-se na linha de sucessão de uma monarquia que começa com Pelé e passa por Rivelino, Zico, Rivaldo, Ronaldinho e tantos outros.

O começo precoce fez Pelé retirar-se de forma precoce também.

PA Images Archive

Parou de jogar no Brasil em 1974, com 33 anos. Tinha condições de jogar o Mundial da Alemanha, mas preferiu deixar que a última lembrança do mundo de Pelé fosse a seleção de 1970. O primeiro mundial transmitido em cores imortalizou a “canarinha” como a mais encantadora da história. O último ato de Pelé foi um show de golos perdidos tão belos quanto os feitos e um passe tranquilo, quase displicente, para o golo do título. Ali passava também a coroa para as gerações futuras.

Os números de Pelé impressionam. Em 21 anos de carreira (a contar três de uma curiosa passagem pelos EUA entre 1975 e 1977), foram 1.367 partidas e 1.284 golos (a contar amigáveis). Ao todo, 37 títulos de diferentes níveis de importância, de amigáveis comemorativos, como a Taça Roca, até o Mundial de Futebol, o único a conquistá-lo três vezes como atleta.

Ao sair do relvado, o legado de Edson é um pouco mais controverso. Edson aventurou-se na música, no cinema e na política, sem o mesmo sucesso que com a bola. Tornou-se folclórico no Brasil as previsões erradas e análises polémicas sobre futebol, a ponto de um dia o também ex-futebolista Romário dizer que: “Pelé calado é um poeta”.

A profissão de Edson nos últimos 40 anos foi ser embaixador do próprio Pelé e do futebol brasileiro, seja em comerciais, eventos ou a aparecer emocionado nas televisões brasileiras a vibrar com o título mundial brasileiro em 1994, primeira taça sem que Pelé tivesse jogado.

As tentativas de tirar o reinado de Pelé são constantes. Um argentino nunca admitirá o Rei acima do “Dios” Maradona, os próprios brasileiros da Era de Ouro do futebol debatiam entre Pelé e Garrincha e as gerações mais jovens diariamente perguntam-se sobre o lugar de Messi e Ronaldo na história. Todos os debates válidos em um futebol em que “o melhor” é decidido por conceitos subjetivos, ainda mais ao levar-se em conta o facto de os números de Pelé terem diversos amigáveis e competições menores.

Debater qual jogador melhor representa a alma do futebol não. Ninguém resumiu tão bem a beleza do jogo como Pelé. Ele segue a jogar enquanto houver um camisola 10 a ser reverenciado no mundo.