As incongruências de Roberto Martínez, onde o azar de uns não se aplica a outros
PATRICIA DE MELO MOREIRA/Getty
No seu estilo sorridente e disponível, Roberto Martínez elogiou várias perguntas que lhe questionaram as escolhas dos convocados para o Europeu, mas, nas respostas, a sua opção por não assumir preferências acabou por o apanhar em algumas contradições. Entre a valorização dos minutos jogados e o azar que atribuiu a alguns, o selecionador nacional acabou por se colocar a jeito para ser apanhado na curva das contradições que deixou ao explicar os 26 jogadores que chamou
Quando sentado diante de jornalistas e como alvo das câmaras, Roberto Martínez é, desde o início, o privilégio da forma. Sorridente e afável, frequente elogiador de perguntas colocadas por jornalistas antes de se ocupar com as respetivas respostas, há quase 16 meses que o treinador estima uma postura simpática nos momentos em que fala em público e sabe ter um país de 11 milhões de selecionador nacionais a ouvi-lo. Não que tal seja um menosprezo do conteúdo, as pinças do técnico a cuidar da forma como pode ser percecionado e interpretado existe desde a primeira conferência de imprensa, em janeiro de 2023, ao aparecer logo munido do ‘portunhol’ que foi aprimorando entretanto ao ponto de na terça-feira, dia da sua comunicação pública mais delicada, ter-lhe saído a expressão “espalha-brasas” para justificar a chamada de Francisco Conceição ao Campeonato da Europa.
No anúncio dos 26 convocados para o primeiro torneio a doer com Portugal, o treinador esteve igual a ele próprio: disponível para falar, elogioso para com as questões, aberto a explicar quase todas as escolhas. Experiente nestes momentos de ser impossível agradar a todos os palpites e estar condenado a virar alvo de muitos dedos apontados - teve de dar explicações acerca dos jogadores que levou a dois Mundiais (2018 e 2022) e um Europeu (2020) com a seleção da Bélgica - agora Roberto Martínez deu a cara por escolhas que pareceram estar pensadas há muito tempo apesar de o treinador dizer que a lista “representa o trabalho de 18 de meses” feito na seleção.
Por comparação com o primeiro lote de futebolistas que reuniu em março de 2023, na sua primeira convocatória com Portugal, só quatro jogadores diferem: Diogo Leite, Matheus Nunes, Raphaël Guerreiro e João Mário, sendo que nem podia chamar agora os dois últimos porque uma lesão do lateral esquerdo do Bayern de Munique e a falta de vontade do médio do Benfica em jogar pela equipa nacional não o permitiam. Mais do que o labor feito neste ano e meio, porém, os convocados para o Europeu refletirão mais as preferências iniciais de Roberto Martínez que o treinador maturou durante este tempo, admissão que evitou dar, em vários casos, tentando atribuir critérios objetivos a escolhas necessariamente subjetivas que são inevitáveis a qualquer selecionador.
Falou de “meritocracia” e de um molde de “azar” a tramar uns jogadores que não serviu a outros, empunhou o fator dos “minutos” jogados sem especificar que minutos serão esses, pois alguns convocados não os tiveram nos clubes e alguns não chamados abastaram-se de tempo de jogo nas respetivas equipas. Na postura de a tudo querer responder enquanto evita assumir preferências, Roberto Martínez acabou por cair em contradições e reforçar a imagem que aprimora há 18 meses - a de gerir a seleção nacional na lógica de um clube com ‘plantel’ muito fechado, outra preferência que não referiu na conferência de imprensa.
Quando Pedro Gonçalves chorou, em Bérgamo, pela mazela que o obrigou a sair de campo contra a Atalanta, devia saber algo que nós desconhecemos. No dia seguinte, Roberto Martínez lamentou o “muito azar” sofrido pelo jogador do Sporting, ausente dessa sexta e derradeira convocatória antes do anúncio final dos jogadores que iriam ao Europeu. Seria a estreia de Pote na seleção nacional com Roberto Martínez, à semelhança de Francisco Trincão, extremo também do Sporting que chegou a ser chamado, mas abandonaria o estágio igualmente por culpa de uma lesão. Factualmente, foi azar. Na terça-feira, ao azar retornou o treinador, mas sem o incontrolável que é o aparecimento de uma arrelia física: “Tiveram azar, porque o estágio de março era importante para eles.”
Essa fulcral presença na última chamada, por lógica, não era necessária para todos e nada há a apontar a tal diferenciação. Como em qualquer equipa de futebol, uma seleção é feita de estatutos, relevância na equipa e peso de jogadores na maneira como um selecionador idealiza um modelo de jogo. Mas, pouco antes de prolongar o lado azarado de ambos os futebolistas (a primeira pergunta da conferência de imprensa centrou-se neles) à justificação por não os chamar, Roberto Martínez deixou outra consideração: “Na nossa forma de trabalhar, não é possível para um jogador entrar na lista se não fez parte da seleção durante os últimos seis estágios.”
Não que a situação se aplique a Pepe, no entanto, o quarentão do FC Porto, a quem o treinador elogiou o papel no balneário por ser uma figura incontornável da seleção nos últimos 15 anos, só esteve em duas das seis convocatórias da era Martínez devido a lesões. Em campo, participou apenas contra a Islândia, partida que confirmou o apuramento para o Euro 2024. De resto, só reapareceu no par de encontros amigáveis de março e o selecionador gabou como ajudou a “manter a baliza a zero” - faltou acrescentar que o defesa central conseguiu-o, sim, nas duas primeiras partes de cada jogo, antes de sair ao intervalo em ambos e Portugal sofrer golos. Não é o único a ter bilhete para o torneio e pouco ter constado durante a qualificação.
A flagrância do caso de Pedro Neto é maior se posto diante do argumento do selecionador. Arreliado por problemas físicos durante toda a época, o atacante do Wolves registou 52 minutos repartidos por dois jogos de duas convocatórias distintas, entre setembro e outubro de 2023. Se o azar arruinou as chances de uns, não diminuiu as hipóteses do canhoto, um fiel extremo de ganhar a linha de fundo e ir para cima dos adversários, versátil atacante que tanto poderá atuar como ala ou ser lançado como extremo se Portugal precisar de alguém que abra buracos no adversário individualmente. Mas isto é uma ponderação, porque a opção não foi explicada por Roberto Martínez, que preferiu ter as características do azarado futebolista com 12 minutos de Premier League nos últimos dois meses aos perfis de jogador dos outros não tão azarados - atribuindo a sua ausência, tão-só, ao azar.
Também o fez com Toti Gomes, ao dizer que “teve azar” por não constar na lista final e deixá-lo como o “central numero seis” de Portugal quando a sua ausência, igual às outras, se deve uma preferência.
“Quando está apto, é um jogador muito importante para nós.” A frase saiu ao selecionador nacional ao justificar a presença de Pepe e da fragilidade dos seus 41 anos na convocatória. No fundo, estando apto, Roberto Martínez quer ter no Europeu “a comunicação” do defesa central e a sua pegada no balneário. Preferência admitida, justificação dada, os devidos critérios exaltados no caso de um jogador parco em minutos (180) na seleção desde o Mundial do Catar. No caso do defesa central, o tempo de jogo com Portugal não esteve no topo das prioridades ao passá-lo no filtro da convocatória.
Nem o tempo contado em campo, apesar de mencionado por Roberto Martínez, parece ter sido valorizado na mesma dose nos jogadores. “O nível da competição não é um problema, é mais uma questão de número de minutos, número de jogos, momento pessoal e o papel dentro da seleção”, respondeu o treinador ao ser questionado acerca de Cristiano Ronaldo, Otávio e Rúben Neves, os três da airada vida na Arábia Saudita onde a exigência do futebol não se equipara ao patamar dos cinco melhores campeonatos europeus. Ao enaltecer os minutos e sem individualizar a hierarquia desse critério na escolha dos jogadores (ou se são minutos jogados pelo clube ou pela seleção), contudo, o selecionador entrou noutra curva de contradição.
Ao situar, pelo menos no dito, os minutos na frente dos jogos, momento de forma e peso do jogador na seleção na montra dos critérios, Pedro Neto e Diogo Jota seriam prejudicados por essa pirâmide de prioridades: o primeiro tem 832 minutos jogados em 2024 e só 12 nos últimos dois meses; o segundo regista 778 minutos neste ano civil e 136 feitos desde o início de março. Antes de puxar à conversa os minutos, Roberto Martínez defendeu, em relação a Rúben Neves, o que pesará mais nas suas escolhas: “Podemos falar de competições e de patamares, o que é importante é o que o jogador individualmente pode dar à equipa.” Trazer, depois, os minutos para a conversa serviu para acentuar a ideia de dualidade no processo de seleção.
É possível que a menção dos minutos em campo tenha pecado por escassa, o treinador poderia estar a referir-se ao tempo de jogo na seleção, aí os singelos 63 minutos de Matheus Nunes contra a Suécia não abonariam o médio, nem os 46 de Francisco Conceição frente à Eslovénia o favoreceriam. Mas, contrariamente à mensagem deixada, talvez inadvertidamente, pelo selecionador, a aplicação do critério dos minutos não será uniforme.
Porque Martínez falou da presença “impactante” do extremo do FC Porto no derradeiro estágio antes da convocatória - à semelhança do quão derretido se mostrou com João Neves, quando chamou o médio do Benfica pela primeira vez -, confessando sem o admitir frontalmente a preferência por ambos em cada um dos momentos. Não o fez, lá está, em relação ao meiocampista do Manchester City, nunca um titular assumido na equipa de Pep Guardiola, mas dono de um perfil de jogador capaz de virar rápido sobre si próprio, arrancar e correr com a bola para ultrapassar linhas de pressão adversários que não existe entre os convocados para o miolo da seleção nacional.
O treinador preferiu não ter essas características disponíveis para o meio-campo de Portugal durante o Europeu. Se não tivesse referido o critério dos minutos, seria apenas isso, uma aceitável e compreensível preferência. Indo buscar o tempo de utilização, Roberto Martínez caiu, outra vez, numa incongruência.