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Carvalhal não deu dicas, mas seja feita a sua vontade: o desdobramento tático de um Braga “completo”

Depois da vitória sobre o FC Porto na Taça de Portugal, Carlos Carvalhal disse que o Sporting de Braga era "pouco analisado". Cá estamos para contrariá-lo, com uma análise que procura resumir, afinal, como atacam e como defendem os bracarenses

Mariana Cabral

Fernando Veludo

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“Fizemos o nosso jogo, não quero estar a abrir muito o que idealizámos para este jogo. Abrimos o campo, circulámos a bola, fomos por dentro, fomos por fora. Fizemos o que temos vindo a fazer desde início. Não tenho falado muito sobre a forma de jogar... O Braga é pouco observado e pouco analisado, deixo que os críticos e analistas analisem a forma como a nossa equipa joga. O treinador do Braga não vai dar muitas dicas.”

- Carlos Carvalhal, treinador do SC Braga, na conferência de imprensa depois da vitória sobre o FC Porto (2-3)

Para perceber como joga o Sporting de Braga, tal como já acontecia com o Rio Ave em 2019/20, não é possível olhar somente para um sistema ou para uma forma estanque de atacar ou defender. A definição da equipa de Carlos Carvalhal, como o próprio explicou à Tribuna Expresso em longa entrevista no início da época, passa pela “flexibilidade” da “identidade”, conceitos que, parecendo que não, não são antónimos, explica o treinador.

“Porque uma equipa para conseguir um objetivo alto não pode ser uma equipa que só seja boa na posse de bola - isto é limitador. É tão limitador como uma equipa que defende muito bem e só joga em transições, porque acabas por ter um padrão, mas vais esbarrar, em algum momento, quando lutas por um objetivo alto. Uma equipa que luta por alguma coisa alta tem de ser muito forte em tudo: nos esquemas táticos, a atacar muito bem, a defender muito bem e muito forte nas transições. Tem de ser uma equipa o mais completa possível.”

Ora, para ser completa, uma equipa tem de ser necessariamente competente, de forma consistente, em todos os momentos do jogo: organização ofensiva, organização defensiva, transição ofensiva, transição defensiva e esquemas táticos. E o Sporting de Braga de Carlos Carvalhal é, de facto, uma equipa completa, independentemente de quaisquer juízos estéticos ou qualitativos sobre o futebol que joga - é completa porque todos os intervenientes sabem perfeitamente o que fazer perante os diferentes problemas do jogo, a atacar e a defender, mais à frente ou mais atrás.

Como aconteceu, quase na perfeição, naquela primeira meia-hora contra o FC Porto, na 2.ª mão das meias-finais da Taça de Portugal. O Braga sabia que tinha de marcar, depois do empate em casa (1-1), e foi ligado a essa ideia que atacou e que defendeu.

O onze do Sporting de Braga contra o FC Porto, de acordo com o grafismo da transmissão televisiva

O onze do Sporting de Braga contra o FC Porto, de acordo com o grafismo da transmissão televisiva

Ao contrário do que indicava o grafismo televisivo do onze titular dos bracarenses (o puzzle dos onzes nas transmissões dos vários canais deve sempre ser olhado com ceticismo), o Braga não joga em 4-3-3, nem a atacar, nem a defender. Para expor a equipa num grafismo desse género, aliás, há sempre que optar por um dos dois Bragas.

Isto é, a atacar, ou seja, no tal momento de organização ofensiva, o Braga dispõe-se habitualmente em 3-4-3 (até 3-4-2-1, se quisermos ser picuinhas), como aconteceu no Dragão.

O posicionamento inicial do SC Braga contra o FC Porto, a atacar, em 3-4-3

O posicionamento inicial do SC Braga contra o FC Porto, a atacar, em 3-4-3

Tribuna Expresso

Este é, como já tem sido muito discutido, o sistema tático que o Sporting de Rúben Amorim utiliza - e que utilizaram também Benfica e FC Porto contra o rival, para tentar neutralizá-lo com encaixes individuais (e muitas outras equipas da Liga NOS, também) -, mas as dinâmicas coletivas de uma e outra, ofensivamente, são distintas, com os bracarenses a utilizarem ambos os avançados/extremos mais em apoio, pelo corredor central, do que em profundidade, para procurar desmarcações de rutura, como é mais frequente no Sporting.

Por outro lado, a defender, ou seja, em organização defensiva, o posicionamento preferencial do Braga não passa por juntar uma linha de cinco atrás, como é mais habitual nas equipas que jogam com três defesas. Carlos Carvalhal prefere que a equipa se monte em 4-4-2, com os ajustes a serem perfeitamente interpretados pelos vários intervenientes: o ala direito (Ricardo Esgaio) junta-se na linha defensiva aos três defesas (Borja, Raúl, Tormena); o ala esquerdo (Galeno) junta-se à linha intermédia aos dois médios (Fransérgio e Musrati), e ao avançado direito (Piazón), que também baixa para integrar o meio-campo; e ficam mais à frente o avançado esquerdo (Ricardo Horta) e o avançado centro (Abel Ruiz).

O posicionamento inicial do Sporting de Braga contra o FC Porto, a defender, em 4-4-2

O posicionamento inicial do Sporting de Braga contra o FC Porto, a defender, em 4-4-2

Tribuna Expresso

É precisamente devido a estes ajustes no momento defensivo que, habitualmente, o defesa do lado esquerdo bracarense não é um central puro, tendo laivos de lateral, como é o caso de Borja e também de Sequeira, que costuma ser o escolhido para aquela posição. Também por isso, quando o Braga ficou reduzido a 10 jogadores, devido à expulsão de Borja aos 34 minutos, Carlos Carvalhal optou por substituir Galeno, já que o jogador brasileiro, com histórico de extremo, não tem a competência de outros colegas na interpretação do momento defensivo e teria dificuldades a defender com o novo desenho da equipa em inferioridade, em 4-4-1.

“Teria que sair o Galeno. Porque a função é mais complexa do que jogar contra o Manafá. O Galeno é forte no um contra um mas tínhamos de jogar com duas linhas de quatro. Ali tinha de ser Ricardo Horta ou Piazón, que sabem interpretar melhor como fechar dentro, como abrir, com o posicionamento matar duas linhas de passe…”

A explicação de Carlos Carvalhal é exemplificada pelo lance que deu a vitória ao Sporting perante o Braga, na final four da Taça da Liga. É certo que o livre então batido a meio-campo foi repentino, não concedendo muito tempo para reajustes, mas foi o posicionamento demasiado aberto de Galeno, não fechando por dentro e permanecendo junto ao adversário (Porro), que permitiu que a bola passasse entre ele e o médio, na linha intermédia.

Essa marcação mais individual do que zonal permitiu que a bola chegasse a Porro, na profundidade, e o lateral sportinguista ainda beneficiou do facto de Sequeira, então a fechar como lateral esquerdo, ter sido atraído pelo movimento de apoio do avançado Tiago Tomás.

O exemplo serve para identificar o que Carvalhal quer dos seus jogadores: que interpretem o jogo e os posicionamentos e respectivos ajustes entre os momentos ofensivos e defensivos, consoante o que está a acontecer. Porque o modelo não é tão rígido que peça sempre as mesmas ações aos bracarenses.

“Tinham mesmo de perceber o jogo. Isto foi o desafio que lançámos e isto não é fácil. Partir de uma situação estereotipada, em que eu sou o defesa esquerdo e a minha função é defender o corredor e fechar dentro, é uma coisa, outra é de repente ter de atacar por dentro, equilibrar a minha equipa como um médio, ter de fechar como terceiro defesa, construir a três, ir à linha cruzar... E isto é só o plano do defesa esquerdo. Ou seja, é tudo muito mais complexo, vai muito além do sistema, do 4-3-3 ou do 4-4-2.”

O que nos leva então ao momento ofensivo. Depois de posicionado em 3-4-3, o Braga pode atacar por dentro, mas também pode atacar por fora, mas para fazer um e outro habitualmente faz primeiro o seu contrário. Isto é, para atacar por dentro, vai primeiro ao corredor lateral, variando depois o jogo diretamente para o corredor central ou até com um passe longo para o corredor oposto; e, para atacar por fora, vai primeiro com a bola ao corredor central, para atrair adversários para as respectivas situações e depois explorar a superioridade ou igualdade numérica que possa ser criada em posições vantajosas para a criação de oportunidades de golo.

Tudo isto é suportado por um grande conforto com bola, partindo desde logo pela construção, a toda a largura, que é paciente, mas também pode ser direta, consoante o espaço verificado no sistema adversário, e que costuma ter, desde logo, superioridade numérica, com os três defesas (ainda que deva ser ressalvado que é neste setor que o Braga mais precisaria de acrescentar outra qualidade individual nos seus intervenientes) e o guarda-redes, precisamente por onde começou a ser construído o primeiro golo no Dragão.

Aproveitando a passividade pouco habitual dos portistas no seu primeiro momento de pressão, apesar de montados em 4-4-2, o central Raúl Silva personificou algumas das melhores qualidades ofensivas que um central de equipa grande deve ter: conduziu pelo espaço central, identificou o espaço entre os adversários e, com um único passe vertical, eliminou seis portistas da jogada (os dois avançados e os quatro médios), encontrando na diagonal, a dar largura e profundidade, Ricardo Esgaio - e Piazón, em apoio, também podia perfeitamente ter recebido por dentro, dado que Sarr, a lateral esquerdo, ficou sem saber onde se posicionar perante as duas ameaças, a central e a lateral.

Depois de Esgaio receber a bola, o lateral e Piazón perceberam que o espaço livre estava nas costas do setor defensivo portista - inicialmente Sarr estava muito mais baixo do que o restante setor; e Pepe mais alto porque tinha começado a seguir o movimento de apoio de Ruiz, sendo atraído e criando mais espaço para a penetração de Piazón - e aproveitaram para acelerar a jogada, que acaba com um passe de primeira de Piazón e uma finalização também de primeira de Ruiz.

“Nós olhamos para o campo, para o tabuleiro, é a forma como nós olhamos hoje para o jogo, e vemos jogadores da equipa adversária e procuramos com bola tentar fazer uma saída limpa desde trás, para chegar à baliza. Eu consigo hoje ver o futebol sem olhar para os jogadores dentro de um sistema, mas dentro de uma dinâmica onde identificamos as falências do adversário, relativamente a determinados espaços, ou onde nós podemos criar a abertura de determinado tipo de espaços, até em função das características dos adversários. Um central que faz com facilidade encurtamentos [no avançado adversário] e abandona a posição e abandona o espaço, ou então um central que funciona em recuo permanente e vai abrir o espaço à frente dele, ou um lateral que fecha mal o espaço interior, ou uma equipa que só tem um pivô e liberta os espaços à esquerda e à direita dele, ou uma equipa que joga com duplo pivô com um jogador à frente, e há espaço à direita e à esquerda dele, ou os avançados da equipa adversária que pressionam à frente e somos nós que temos de saber como criar o espaço, ou uma equipa que não tem capacidade de pressão à frente, então os espaços já estão conseguidos por natureza…”

A clarividência com que o Braga atacou foi também a marca da forma como defendeu: desde o primeiro minuto - ou melhor, do primeiro até ao 34º minuto... - pressionou de forma muito alta o FC Porto, deixando os adversários desconfortáveis pela falta de soluções. Se ainda era permitido ao guarda-redes e aos centrais ter bola (apesar de haver sempre uma aceleração da pressão sempre que havia um passe para trás), esse trio era bem controlado por Horta e Ruiz, cujo posicionamento também impedia a ligação com os dois médios portistas, por estarem tapados pelas costas dos bracarenses.

Quando a bola chegava aos laterais, havia imediatamente pressão efetuada por Piazón ou Galeno, consoante o lado, e os médios Musrati e Fransérgio controlavam quaisquer possíveis entradas no corredor central. E foi assim que surgiu o segundo golo bracarense.

Sem soluções para progredir, perante a pressão do Braga, e não sendo propriamente o jogador mais confortável do mundo sob pressão, Sarr não quis atrasar a bola para o guarda-redes quando teve oportunidade, e preferiu virar-se sozinho e batê-la na frente (quem disse que só sofre quem tenta construir desde trás? Às vezes é ao contrário…). Só que Piazón, ao ver o adversário em dificuldades, continuou a pressão e ganhou a bola, tendo logo ali perto Musrati, que deu a sequência perfeita ao lance, respeitando a diagonal curta de Horta, que depois ofereceu o golo a Ruiz com um toque de classe, de calcanhar.

Isto não quer dizer que a primeira pressão do Braga é infalível, tal como não o são os seus ataques, mas quer dizer que todos os jogadores estão bem identificados com o que têm de fazer, o que dificultou muitíssimo a vida ao FC Porto. E, caso essa primeira pressão fosse batida, a equipa bracarense baixava toda rapidamente, reagrupando novamente num 4-4-2, mas agora, no meio-campo defensivo, de forma muito mais curta e muito mais compacta do que anteriormente, procurando essencialmente nunca deixar o adversário entrar com bola controlada no espaço interior do seu bloco, à frente do seu setor defensivo.

Foi também por isso, por ter bem identificado como e quando defender de uma ou outra maneira, que o Braga conseguiu manter a vitória até ao fim, apesar de ter ficado com apenas 10 jogadores. É certo que o momento de organização ofensiva foi praticamente inexistente na 2.ª parte, mas a forma como a equipa se compactou centralmente em terrenos mais baixos, em 4-4-1, praticamente só permitiu ao FC Porto ir aos corredores laterais para procurar cruzamentos para chegar mais perto da baliza.

“A nossa identidade é a flexibilidade. Fizeram-me uma questão pertinente um dia destes, num fórum. Perguntaram-me sobre o peso da estratégia no nosso jogo. Eu respondi assim: o peso da estratégia é todo e nenhum.”

A fluidez do jogo do Sporting de Braga parte, primeiramente, da capacidade de execução dos seus intérpretes, obviamente, mas só é sustentada pelo pensamento sistémico de Carlos Carvalhal, que não olha para a sua equipa e para o seu modelo como algo estanque: antes inclui nele diversas variantes e contempla já dentro daquilo que são os padrões da equipa, a atacar e a defender, os constrangimentos que o adversário pode apresentar.

É, por isso, uma equipa completa.