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Até já Roger, ultrapassaremos isto de alguma forma

Ténis

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Federer nunca quis um conto de fadas e não o teve no último jogo da carreira, na Laver Cup, factualmente falando. Perdeu, esvaindo-se em lágrimas no final enquanto Rafael Nadal, o maior rival tornado amigo, com quem jogou em pares na despedida, chorava como um bebé. Aos 41 anos, um dos maiores tenistas da história, provavelmente o mais elegante a alguma vez pisar um court, despediu-se em apoteose: “Estou feliz, não estou triste. Foi uma noite fantástica”. Crónica e reportagem em Londres

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Diogo Pombo

Diogo Pombo

em Londres

Jornalista

O ténis requer silêncio. Não absoluto nem sepulcral, mas, quando a bola vai à raquete, precisa de abstenção sonora onde está a ser jogado para o bem da concentração de quem o joga. É mantra em igual dosagem do quanto é tradição. E vira pecado se, com um ponto a decorrer, surge um ruído suficientemente audível que desconcentre a solidão a que um tenista é vetado em court, a ilha na qual se torna. O esguio Alex de Minaur, sem um grama de gordura, movimentara-se do seu lado da rede para receber uma resposta de Andy Murray quando a Arena O2 se recheou de uma gargalhada geral quando já estava a transbordar de gente. O australiano esbracejou, refilando enquanto desistiu do ponto.

A culpa do sacrilégio esteve no realizador aos comandos dos ecrãs gigantes do recinto que, com o ponto em andamento, mostrou a bicéfala reação tida, segundos antes, pelos comparsas sentados à beira de uma mesa de vidro, copos de água à frente, isolados numa qualquer sala a assistirem ao jogo. Já equipados, Roger Federer e Rafael Nadal contorceram-se com um riso frustrado perante a pancada falhada por Murray numa subida à rede no ponto anterior. Longe, porém ligados, os dois próximos tenistas a pisarem o campo mostravam-se em pulgas para a comunhão que encavalitou corpos nas bancadas, afagou estômagos com borboletas e espalhou ansiedade por um jogo de ténis.

As últimas vezes são amargas, não há como, a traiçoeira vida é pródiga em ratoeiras que nos dão vivências derradeiras sem nos apercebamos que não haverá mais, depois tem destas, no ténis, revelada sem aviso prévio e com uma semana de antecedência para todos marinarem a sensação de uma despedida anunciada e escalarem a amargura até esta arena de Londres, apinhada de gente, aguardar pelo que só arranca pelas dez horas de uma noite fabulosa, mas triste, história mesmo se melancólica por antecipação. E o sorriso maroto de Roger, o gritador do seu derradeiro hurrah, a entrar em court no costado de Rafa e as gargantas doidas de êxtase, a berrarem por ambos.

A poesia também tem lugar em raquetes e os 41 anos de Federer, se bem que rabugentos, irritáveis e intempestivos durante a sua adolescência no ténis, demonstraram-no de forma graciosa. Cada pancada sua um frenar de bola um pouco mais acentuado, a dar-lhe mais tempo nas cordas seguradas por ele, até quando aquece a trocar pancadas inofensivas com Frances Tiafoe o exercício de aquecimento vira um de estética e por isso o público repete apoteoses quando o suíço é anunciado pelo speaker, quando ele ganha o primeiro ponto, quando é a sua primeira vez a servir. A noite de Roger seria sempre feita com créditos ilimitados de compaixão e a sua última dança ser um dueto com o maior rival feito amigo foi um engordar de carinho.

Por oposição nisto das geometrias dos afetos, a Tiafoe e ao companheiro também americano, Jack Sock, caberia terem carapaças postas para aguentarem uma plateia que os antagonizaria sem maldade enquanto também eles participariam no encontro histórico. Os búúús graves quando um deles protestou no ponto de Federer, conseguido com a bola a ressaltar no cume do poste que segura a rede, provaram-no quando obrigaram Federer a correr contra a ferrugem nas pernas para alcançar essa pancada. À primeira ida das duplas com o traseiro aos bancos, os ecrãs mostraram um pequeno vídeo a honrar a carreira do vindouro reformado, música dramática a condizer com a puxadela à lágrima quando tanto ainda restava por trocar os quatro tenistas.

O primeiro set teve um par de bolas longas de Roger, caídas quase um metro para lá da linha, outras tantas de Nadal, mas os músculos esquentados extrairiam o melhor do suíço junto à rede, ao separador a que se manteve fiel como o último dos moicanos do serve and volley e onde mostrou, quarentão e com um joelho cheio de líquido, uma das inatas qualidades que mais lhe gabam há duas décadas: a coordenação mão-olho, essa aptidão inexplicável para malear o corpo e fazê-lo reagir a seja qual for a bola, venha como vier. Jack Sock, de longe o mais condecorado em campo (três majors ganhos em pares), fazia duplas faltas enquanto ia indicado a Tiafoe onde se deveria posicionar.

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Em qualquer ponto e até ao segundo em que algum dos intervenientes lhe injetasse um nico de espetacularidade escutava-se, agora sim, o som do silêncio, esse vazio provocado pelo espanto onde nem a criançada a servir de apanha-bolas sussurava junto ao court. Várias trocas de bola houve com os quatro a farejarem a rede, sem pudores em baterem pancadas com mira ao corpo ou a espreitarem nesgas de espaço entre os adversários. Esta variante é uma arte que joga com outros feitiços que não são evocados quando apenas há dois humanos a testarem a precisão do outro. “É inacreditável quando não jogas pares”, ouviu-se Nadal dizer numa ida ao banco, não ouvido por mim, mas por quem engordava o número de espetadores pela televisão.

Desabituados e sem rodagem, pouco importou para quem os via na arena onde a preocupação pairou no ar no break point contra ‘Fedal’ com 4-4, diligentemente smashado pelo suíço na rede após uma resposta em balão de Sock a um serviço do espanhol. Em cada pausa, ao longe, viam-se os de azul a rodearem quem não tem tesouros por caçar no teste, afinal diz-se o quê a quem farto está de contar histórias de ténis pela raquete e por isso se entende o taciturno Björn Borg, o capitão protocolar, um corpo de cicerone presente no banco que se levantava e guardava as mãos atrás das costas a cada intervalo. Ocasionalmente, batia palmas na linha da cintura se o ponto ganho o justificasse.

Dedicou uma quantas aos rivais virados parceiros no 6-4 com que fecharam o set, a alegre comoção ainda se espalhava pelas bancadas quando Roger e Rafa se encaminharam para o balneário, levando a reboque os restantes da Team Europe e fazendo o rei sueco, cujo legado foi deposto por Federer em Wimbledon (cinco vitórias contra oito), reparar tarde na evasão e seguir já sozinho atrás dos pupilos. No court ficou a Equipa do Mundo, quase todos sentados a ouvirem John McEnroe, a outra parte grisalha da maior das rivalidades anteriores ao bromance hispano-suíço, calçado com a descontração de uns All Star nos pés.

Porque há diferenças e, como esta, a maioria é inofensiva, se todos fôssemos iguais na nossa feitura isto de viver carecia de piada, mas se Jack Sock e Frances Tiafoe recorrem muitas vezes a um choque de punhos para celebrarem pontos ganhos, os trintões de centenas de aventuras no ténis batiam as palmas, apertavam as mãos, prendiam-se nos olhos um do outro a cada demonstração de superioridade de aptidão que os safava quando eram mais empurrados para o fundo do court ou jogavam os pontos como lhes aprazia, e não como a variante de pares aconselha. Ou seja, quando era o lendário talento, a brutal capacidade tenística a fazê-los prevalecer.

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Mais ainda perante a ascensão dos americanos, martelos pneumáticos de bolas velozes que quebraram a cantoria do cisne para um 1-2 no segundo set, mas incapazes, lá está, de algo tão irrelevante para o jogo quanto majestoso no atestar de uma anormalidade excelsa, estapafúrdia se nos propusermos a compreender como o faz parecer fácil: quando um balázio servido por Sock raspou na rede, ressaltou no piso e se dirigiu a Federer, ele fatiou a bola com a raquete e fê-la pairar no ar à sua frente, abolindo a gravidade por instantes até a agarrar com a mão esquerda. Pedaços de genialidade até no cerrar das persianas.

A devolução do break para o 3-3, quando o canhoto com o pulso feito de top spin e o destro com sapateado de bailarino fundiram a precisão de cada um para fazerem mais bolas beijarem as linhas para responderem à maior força posta nas pancadas pelo duo adversário, mais jovem e bruto no estilo que punha nos pontos. Com o jogo a acercar-se da hora e meia, o impiedoso tempo, amigo de ninguém, antipatizava-se com os dois mais batidos no ténis e com especial afinco em Federer, como era uma questão de relógio até acontecer. O mais ligeiro dos contra pés colava-lhe as solas ao campo, o trote que era o máximo a que se movimentava fazia com que cortejasse o poder da adivinhação no segndo antes de Tiafoe ou Sock encostarem as raquetes à bola.

Mesmo quando se colocaram no lado bom de um 5-4, a fragrância do cansaço chegava às narinas de todos os presentes que até clássicos da eurodança tocados na década em que Roger virou profissional aproveitavam para puxar pela dupla europeia, trauteando e batendo palmas. Ninguém se queria libertar do desejo de os ver a ganhar na despedida do mais antigo deles e essa vontade acrescia perante a penumbra a espreitar nas evidências. Com 5-5, os americanos chegaram a estar com um 0-40 no serviço de Nadal, que cá de cima do quarto andar da arena parecia grunhir e sprintar no fundo do court pelo amigo, disputando pontos sozinho. Cada vez mais, o corpo mostrava o mundo o porquê da despedida do suíço.

Não seria agora que Federer gemeria, gritaria ou faria caras de mau a rugir contra o findar da luz, nunca houve um tenista assim no suíço e foi o espanhol a cerrar os dentes pelos dois, tantas foram as vezes que Nadal fez sair o coração boca fora do suíço - aquela derrota em 2008, na final de Wimbledon, ou a que Roger admitiu estar “a matá-lo” em 2009, em lágrimas na Austrália - que aqui em Londres se espremeu para o compensar. Sock e Tiafoe, porventura atraídos pelo irromper de um esforço individual para resgatar uma despedida, pareciam bater em bolas de metal que só iam para o íman na raquete do espanhol. O 6-5 adiou o segundo set para o tie break onde as diferenças de velocidade de bola e poderio no serviço vergariam os mais anciãos.

Logo a seguir viria a invenção mui Laver Cup de um super tie break para ver quem chega primeiro aos 10 pontos, uma corrida à moda de ténis em que Roger e Rafa corriam contra o tempo, mas o tempo deles, intangível mesmo que visível, tão nas nossas barbas que só os tolos poderiam menosprezar a grandiosidade de estarmos a assistir aos últimos pontos disputados por ambos. Porque, de certa forma, indo-se Federer vai uma parte da pirâmide erguida por Nadal e também uma costela da grandeza de Djokovic, que os animava do banco dali tão perto. Três tenistas entremearam-se uns nos outros e elevaram-se à medida que se foram digladiando.

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E as lendas rugiram num arranque de 3-0, seriam travadas num 4-4 que fez Jack Sock correr, pular e socar o ar quando já havia duas horas no jogo e os americanos lá caíam, às vezes, na armadilha do confesso “meio saudável” Roger, que os convidava levaram pontos à rede onde a mestria morava mais de um lado. Uma das apoteoses da noite surgiu neste desfecho, quando Federer fisgou um ás para o 6-5 antes de ser ele a adoçar a bola que deu o 7-7, mas, perdão, escrevi cedo demais e fingimos que se trata de tinta e papel, porque apoteoses iguais ou maiores houve no 8-8 e mais acentuado quando Roger teve um match point no serviço. Cada pessoa na arena teve uma pistola no telemóvel esperto, raro era quem não estava a filmar quando Federer não converteu um conto de fadas.

De indubitável tristeza, com a pitada de tragédia, o final não querido aconteceu com a derrota de Rafael Nada e Roger Federer. Um desfecho condizente com o que dissera e repetira em tempos, garante de não imaginar um conto de fadas quando chegasse o dia em que o resto do mundo, mesmo com ele vivaço da silva, parasse para se aperceber da exemplar magnitude que todos presenciámos no ténis. A possibilidade de haver perfeição na elegância de raquete na mão apoderou-se do recinto e mergulhou-o para uma melancolia partilhada em massa.

Vinte Grand Slams, mais de cem títulos e para lá de mil e quinhentos jogos depois, o mais majestoso dos tenistas acabou a esvair-se em lágrimas no court, choroso a trocar abraços com os seus, porque assim os chamou, os seus, depois de abraçar cada um dos tenistas presentes Roger continuou a chorar, a esfregar as mãos pelos olhos, a regurgitar palavras quando lhe pediram enquanto Nadal se inundava em lágrimas ao ver uma quota-parte sua partir. Ao realizar como o ténis estava a perder uma dos grandes, talvez o maior, certamente o mais elegante.

E “foi uma noite feliz”, disse Roger Federer nas folgas de ar do seu afogamento em curso. O suíço assegurou que “ultrapassaremos isto de alguma forma” e, fazendo-nos crer que as cascatas a escorrerem-lhe pela cara eram de somenos, garantiu estar “tão contente por ter aguentado” a derradeira dança. Dificilmente se sentirá mais felizardo do que toda a alma que o viu jogar, à distância ou de perto. Passou um cometa pela Terra que decidiu ficar por cá uns tempos antes e por diante haverá agora dias para serem as histórias contadas sobre ele a impedirem que haja silêncio sobre quem foi este particular tenista, matéria de lendas.

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