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Kelly Slater, uma história sem fim

O melhor surfista de sempre já tem 45 anos e este podia ser o balanço de uma carreira, mas é só mais um capítulo. A temporada arranca dentro de semanas e, sim, ele é outra vez candidato ao título mundial

Ricardo Marques

Kelly Slater é o melhor surfista do mundo

Buda Mendes/Getty

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Há palavras que devem ser usadas com cautela. No desporto como na vida. Vejamos o seguinte exemplo: “Este número 20 joga bem, tem o toque de bola do Ronaldo”, poderá dizer alguém a assistir a um qualquer jogo de futebol. “Estás doido?”, responderá o interlocutor, “o Ronaldo é um deus”. A palavra-chave aqui não é Ronaldo, é deus. Claro que haverá sempre quem pense o contrário e veja no 7 do Real Madrid um verdadeiro diablo. Para esses, o deus chama-se Messi. Diálogos deste tipo não têm fronteiras e ouvem-se a propósito de qualquer modalidade, do ténis ao basquetebol, da Fórmula 1 ao golfe... Discutir quem é o melhor num determinado desporto é como discutir a existência de Deus. É tudo uma questão de fé. Exceto, claro, se o assunto for surf. Se a praia for essa, então a única hipótese é aceitar a verdade, e a verdade é apenas uma: Kelly Slater é deus. Há provas.

Seria de esperar agora um longo parágrafo com todos os feitos do superssurfista americano que completa 45 anos. Linhas e mais linhas capazes de convencer o mais cético dos céticos. Lá chegaremos. Ou meia dúzia de frases sobre a fotografia que ilustra estas páginas, com Slater a mostrar mais estilo a surfar com uma porta de madeira do que a maioria dos mortais numa prancha topo de gama. Lá chegaremos também. A prova da divindade de Slater obriga a um desvio no tempo, até à página 102 da revista “Surfer” de agosto de 1989. Kelly tinha 17 anos, vivia com a mãe, os irmãos e o padrasto numa casa arrendada na Florida — da qual teriam de sair poucas semanas depois — e havia um colchão arrumado ao canto do quarto. “Ele dorme como um anjo: enrolado de lado, as sobrancelhas escuras ligeiramente levantadas e abraçado à almofada. A sua expressão de adulto e os seus impressionantes olhos de jade desapareceram; transformaram-se num repouso de criança, imóvel e divino. Um rosto em paz com um mundo que o trata de forma tão gentil. Ou assim parece...” A descrição — onde sobressaem palavras como ‘anjo’ e ‘divino’ — é de Matt George, um dos mais respeitados jornalistas do mundo do surf.

Por esses dias, Kelly Slater era a next big thing, a esperança, o miúdo fenomenal que iria devolver aos Estados Unidos da América o título mundial de surf e acabar de vez com o domínio australiano que começara a cair na década de 80. Kelly tinha acabado de assinar um contrato com a OP (Ocean Pacific) e outro com a Rip Curl, além de garantir que mantinha debaixo dos pés as melhores pranchas do mundo. Tinha conquistado mais campeonatos amadores do que qualquer outro surfista, ganhava mais dinheiro do que muitos profissionais e, acima de tudo, era uma espécie de pequeno Tom Curren. E Curren, recorde-se, era tudo aquilo que qualquer miúdo como Slater queria ser (os miúdos cresceram e querem o mesmo). Ainda assim, Matt George, que passou cinco dias a viver com Kelly (dormiu no mesmo quarto, acompanhou-o até na sala de aula), parecia mais impressionado do que convencido. “A sua técnica não é a mesma. Não é tão mágica como a de Tom... nem tão espontânea ou instintiva. Provavelmente, nunca será. (...) O seu surf nunca será tão único como o de Tom... tão original ou etéreo”, escreveu o autor. Slater nunca será Curren. O tom era este.

Bruce Bennett

Kelly passou as três décadas seguintes a provar o contrário. Não só era tão bom como Tom, como era melhor. Se há algo que os últimos 28 anos provaram é que Slater é melhor do que todos. (Este é o tal parágrafo). Podemos começar pelos onze títulos de campeão mundial. O primeiro chegou em 1992, o último em 2011. Pelo meio, entre 1994 e 1998, houve cinco consecutivos. Foi o campeão mundial mais jovem e o mais velho, aos 39 anos. E para os que pensam que não chega lá desde 2011, a verdade é que tem sido sempre um dos mais sérios candidatos, acabando quase sempre no top 10. É o surfista profissional com mais vitórias em campeonatos (54) e mais vitórias numa época (7). Agora vamos pôr tudo em perspetiva. John John Florence, o atual campeão mundial e uma espécie de protegido do deus, nasceu em 1992, mesmo a tempo de ver Kelly ganhar o primeiro título. Gabriel Medina e Filipe Toledo, os fenómenos brasileiros, ainda nem sequer tinham nascido. O mais assustador é que nenhum deles quer ter Slater pela frente numa prova. Ninguém quer. Dizem que ele é capaz de entrar na cabeça dos adversários, de os derrotar ainda na areia.

Isto podia ser suficiente, mas é apenas uma parte da história. Ao domínio absoluto no mar — na abordagem às ondas, na qualidade e fluidez e poder das manobras, na imprevisibilidade do seu surf e na inata capacidade de se tornar o centro das atenções dentro de água —, Slater somou o controlo de tudo o resto. Todos querem ser assim. Para muitos é um guru da alimentação saudável, o que explica que chegue aos 45 anos em melhor forma do que muitos surfistas profissionais com metade da sua idade. Para outros, é o dono da empresa que produz a roupa que vestem. Nunca serão Kelly, mas podem ficar parecidos. O mesmo raciocínio vale para as pranchas. Qualquer um pode ter uma Sci-fi igual à de Slater, apenas para confirmar aquilo que toda a gente sabe, mas opta por esquecer: uma prancha pode melhorar o desempenho de um surfista, mas a prancha não faz o surfista. É precisamente o contrário. Atente na fotografia: Slater está em cima de uma porta. De madeira. Resumindo: comam como ele, vistam como ele, ponham os vossos pés nas pranchas que os pés dele pisam. Vivam como Kelly e estarão mais perto de Slater.

Em pessoa, o campeão é reservado. Anos e anos de conferências de imprensa, horas e mais horas perdidas a assinar autógrafos e milhares de entrevistas têm este efeito. Fala pouco da vida pessoal. Namora há anos com a havaiana Kalani Miller, companheira inseparável, depois de um romance com Pamela Anderson (com quem contracenou na série “Marés Vivas”). Tem um filha de 20 anos, Taylor, que viveu sempre com a mãe. “Costumava chamar-me Kelly-papá”, contou Slater no livro “For the Love”. “Embora não seja fácil admitir, não estive tão presente para ela quando devia, e isso é algo em que penso todos os dias sem exceção.” Por vezes, até os deuses reconhecem as suas falhas.

A construção do argumento Slater-deus podia acabar aqui. Mas falta a derradeira prova, aquele fato irrefutável capaz de assegurar a divindade. Sem problema. A história até é engraçada. Lemoore é uma cidade californiana do interior, com 24 mil habitantes, cercada de campos agrícolas e a quase 200 quilómetros do Pacífico. A típica small town USA onde nada acontece. O local ideal para um milagre. Às 6h20 de 5 de dezembro de 2015, numa manhã fresca e com algum nevoeiro, num terreno a poucos quilómetros do centro, formou-se uma onda perfeita que rebentou ao longo de 200 metros. Tinha o tamanho ideal, não era nem muito rápida nem muito lenta e até fazia um tubo. Seguiu de norte para sul, em direção a umas pequenas cabanas junto à margem de um lago. Ali, no alpendre, de braços abertos e um enorme sorriso, estava Kelly Slater — o homem que construiu a onda perfeita.

A expressão na cara de Slater é familiar a todos os surfistas. É a cara com que ficam quando encontram uma onda perfeita e sem ninguém na água. É a expressão que não conseguem evitar quando o amigo apanha a maior onda do dia. “No momento em que ele entrou na água, um pequeno grupo de rapazes saiu do parque de estacionamento e foi sentar-se no paredão”, escreveu Matt George em 1989. “O Kelly tem sempre muita gente a ver”, disse-lhe um dos miúdos. Era assim aos 17 anos. É assim aos 45. O mundo inteiro de boca aberta a olhar para ele.

Texto publicado na edição de 11 de fevereiro de 2017 do Expresso