Ainda estava 0-0. Não era exatamente como naqueles jogos de exibição ou em que se é Diego Armando Maradona e uma letra é uma ferramenta libidinosa e útil ao mesmo tempo. O Sporting ainda não desmontara a defesa do Boavista. Então, Marcus Edwards arrancou pela direita, atiçou o ritmo cardíaco de Alvalade e idealizou em Chermiti uma parede. Depois, tocou para trás, na área, para alguém encostar para a baliza. O toque abençoado ameaçou não chegar.
A bota de Chermiti roçou na bola como quem perde o comboio por um segundo, seguindo-se a tradicional expulsão de impropérios mudos. O timing é tudo, terá tempo para refletir o jovem de Santa Maria. Pedro Gonçalves esboçou uma intenção, mas era inviável. Restava Hidemasa Morita, que acelerou antes de travar. Vinha aí Nuno Santos, quem sabe o rei da utilidade, por isso, como se viesse pela direita, tinha prioridade. O canhoto de Castêlo da Maia, quem sabe uma testemunha do valor da sabedoria eficaz do voleibol, decidiu num segundo o desenrolar daquela jogada. Pé direito? Por favor.
Letra. Golo, 1-0.
O gesto requer uma coordenação importante dos pés, assim como um ângulo quase exato, eventualmente científico, para bater na bola com veneno e, em simultâneo, sem provocar um desequilíbrio na carapaça humana. Os artistas fazem isto como se subissem a um palco e cuspissem um monólogo decorado à saída do ventre. É inato. É aventura. É atrevimento. “É treino”, admitiu, afinal, o sorridente Nuno Santos, na ressaca da vitória contra os axadrezados. “Estou habituado a fazer isso”, assegurou. “Estou feliz por ter feito um bom golo, mas o que interessa é a vitória”, decretou o senhor objetivos, o mago da utilidade. “Agora é pensar já no jogo de quinta-feira com o Arsenal”, disse sem surpresa como quem muda para o lado B de um vinil ainda antes de o lado A terminar. Heresia.
Paco Gento, o tal craque do Real Madrid que ergueu uma quantidade obscena de Taças dos Campeões Europeus, fez um passe de letra no Espanha-Brasil no Mundial de 1962. Do outro lado bailava a magia de Didi e Garrincha, com Pelé magoado a ver da tribuna. O canhoto espanhol decidiu pedir em silêncio a nacionalidade brasileira ou, pelo menos, o passaporte para aquele mundo onde obram os especiais. Didi desperdiçou a bola perto da baliza de José Araquistáin. Joaquín Peiró recuperou a bola e Sífrido Gràcia resgatou-a com amor, tocando-a para Gento. O ponta esquerda, com um gesto malandro, enganou Garrincha, deitando o anjo das pernas tortas, e devolveu a mais bela do mundo com um passe singelo, quase desinteressado, para Gràcia. De letra. Aquele gesto, por ser tão natural e de uma brutal e mansa utilidade, foi assombroso. Gento confiava mais na sua letra do que no pé direito para fazer um passe de cinco metros. E recebeu “carradas de palmas”, segundo o narrador do jogo.