Pelo sotaque quando fala inglês, ninguém diria que é um rapaz nascido em Barcelona. Foram os mais de 10 anos em Inglaterra que lhe deram aquela ladainha tipicamente cockney do este de Londres, porque Héctor Bellerín não era rapaz para se agarrar à saudade, para se fechar em si mesmo, mesmo tendo saído de casa aos 16 anos para atravessar o canal, deixando La Masia, a academia do Barça, para se juntar ao Arsenal.
Em Londres, sê londrino. Os primeiros tempos passou-os em casa de uma família britânica e nos salões de snooker das redondezas. Em menos de nada já o inglês lhe saía com naturalidade e apreciava a ida semanal ao pub local para comer iguarias inglesas, o fish and chips, o sunday roast. O característico sotaque, cerrado e pintarolas, apanhou-o com o roupeiro das camadas jovens do Arsenal, confessou em tempos à “FourFourTwo”. A única coisa tipicamente britânica à qual Bellerín parece nunca se ter habituado foi mesmo à cerveja à temperatura ambiente.
Por aqui já dará para perceber que Héctor Bellerín, novo reforço do Sporting, o homem que chega com a espinhosa missão de substituir Pedro Porro, não é o seu típico futebolista. Aos 27 anos, Portugal será mais um recomeço, depois de meia época no Barcelona em que pouco jogou. Quando se estreou pelo Arsenal, aos 18 anos, era um promissor lateral direito, rápido, rapidíssimo, bom no um contra um e nos cruzamentos. Os problemas físicos terão travado algum do ímpeto inicial e acabou emprestado no ano passado ao Bétis, onde foi uma das figuras da conquista da Taça do Rei - confessou ao La Media Inglesa que usou aplicações de big data e a tecnologia para escolher o clube que melhor se adaptava às suas características. Em Sevilha, cumpriu um sonho do pai, acérrimo adepto do Bétis. Mas o regresso a Camp Nou, que deixou em adolescente, não foi o ponto de inflexão que estaria à espera.
Poderá acontecer no Sporting, que recebe aquele que a revista “Esquire” chamou de “o homem mais estiloso do futebol”. Dito assim, parece redutor. Bellerín não é apenas uma fashion victim, um dandy, um tipo que veste umas roupas fora dos moldes, paixão que, aliás, não vem do nada e tem origem na família da mãe, que tinha uma fábrica de vestuário. “Fui criado entre bolas de futebol e máquinas de costura”, disse ao La Media Inglesa.
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Para lá do jogador, há uma persona que foge ao arquétipo do futebolista ensimesmado na sua função de dar pontapés numa bola. Os filetes fritos com batatas e os assados dominicais que tanto gostava em Londres já não os come: em 2017, tornou-se vegan. Inicialmente, a ideia era apenas tentar “umas semanas”, essencialmente para expulsar do corpo os excessos do verão, mas, conforme confessou ao “The Players Tribune”, sentiu-se “tão bem” que adotou a dieta de uma forma regular, com benefícios físicos.
Em 2020 comprou uma percentagem do Forest Green Rovers, emblema da terceira divisão inglesa, considerado “o primeiro clube vegan do mundo”, onde até a iluminação do estádio e a rega do relvado são sustentáveis, tema que se tornou caro para o futebolista espanhol. Numa entrevista à BBC em 2019, falou da responsabilidade que os jogadores de futebol têm na hora de promover a preservação do ambiente. “É muito bonito mostrarmos aquilo que temos - os nossos carros, os nossos relógios - mas é preciso passar uma mensagem com mais significado do que apenas o ‘olhem o quão fixes somos’”, disse então.
A política e os futebolistas “que vivem numa bolha”
O seu sentido de estilo é mais do que uma demonstração vazia de vaidade: com o seu agora omnipresente bigode, Bellerín vê na moda, nas roupas que usa, algumas delas feitas por ele e pela mãe, uma forma de se “expressar e de inspirar outras pessoas”, disse em 2018 numa entrevista ao site do Arsenal. E expressão é algo que não deixa de promover, seja sobre moda, ambiente, direitos sociais ou política. Defensor dos direitos das pessoas LGBTQI+ e sempre com uma palavra contra o racismo, o lateral acredita que essa sua faceta foi moldada também pela vivência em Inglaterra, com uma paisagem bem mais multicultural que Espanha.
Muito ligado à família - ao pai, formado em Letras, foi buscar o gosto pelos livros -, nos dias mais complicados no Arsenal socorreu-se da terapia, que fez durante dois anos. Fala abertamente de saúde mental, tema que ainda vê como “estigmatizado” no futebol. Foi por ela que, antes de regressar a Espanha, ao Bétis, chegou a estar seis meses fora das redes sociais, onde era um ativo crítico de, por exemplo, Boris Johnson, antigo primeiro-ministro britânico: nas vésperas das eleições de 2019 encorajou via-Instagram os jovens a votarem contra Johnson, com alguns insultos ao conservador à mistura.
Recentemente, assumiu-se “de esquerda” ao diário catalão “Ara”, mas sem partido e nem por isso a favor de uma Catalunha independente, já que ambos os pais não são da região e Bellerín diz sentir-se também espanhol. Semanas antes tinha tornado pública a sua desilusão por não estar no Mundial com a seleção, mas, ao mesmo tempo, feliz por não saber se conseguiria lidar com o peso da morte dos trabalhadores migrantes que pereceram nas construções de estádios e outras infra-estruturas no Catar.
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Ainda ao diário “Ara”, Bellerín afirmou defender “um mundo global em que toda a gente seja livre de poder mover-se e sentir aquilo que queira”, entre outras declarações pouco etiquetáveis a um futebolista. Tal como a ideia de que os “futebolistas devem pagar mais impostos”.
“Venho de uma família em que havia meses em que tínhamos de fazer maravilhas para poder comer e continuo a conhecer pessoas assim, família e amigos. Com o que eu ganho, acho que tenho de pensar não apenas no meu entorno, mas também na sociedade, em que há situações muito precárias”, explicou. “Nós futebolistas estamos numa posição muito privilegiada. Trabalhámos muito e fizemos muitos sacrifícios mas devemos ser os primeiros a ajudar a estabilizar a nossa sociedade”, disse ainda, sublinhando que os futebolistas estão “desumanizados, a viver numa bolha”.
Sobre a Guerra da Ucrânia, em entrevista ao La Media Inglesa, Bellerín referiu ser “complicado” perceber que outros conflitos não mereceram o mesmo grau de importância, algo que diz ser “racista e pouco empático”.
“Não sei se é por serem mais parecidos connosco, se é porque nos pode afetar mais a nível económico e de refugiados… A guerra na Palestina está a ser completamente silenciada”, referiu, lembrando também os conflitos no “Iémen e Iraque”.
Héctor Bellerín é, assim, mais do que um lateral-direito, mais do que um futebolista, que chega para já por empréstimo do Barcelona com vontade de dar um novo empurrão à carreira. E se Rúben Amorim disse que era impossível encontrar um jogador com as características de Pedro Porro, terá no catalão mais um jogador único, principalmente fora de campo.