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Francisco Trincão, o miúdo ambicioso que levava duras do chato que lhe dava cabo da cabeça para defender

João Filipe (mais conhecido por Jota) e Francisco Trincão (o número 17 de Portugal) foram os melhores marcadores do Europeu sub-19, com cinco golos cada
João Filipe (mais conhecido por Jota) e Francisco Trincão (o número 17 de Portugal) foram os melhores marcadores do Europeu sub-19, com cinco golos cada
KIMMO BRANDT

O ex-treinador do Sporting de Braga B, João Aroso, traça o perfil de Francisco Trincão, o jovem bracarense que foi o melhor marcador do Europeu sub-19 (a meias com Jota) e que quer ser "um dos melhores do mundo"

João Aroso, ex-treinador do Sporting de Braga B (depoimento redigido por Mariana Cabral)

A primeira vez que reparei nele foi ainda antes de ir trabalhar para o Sporting de Braga, no final da época 2016/17, porque acompanhava alguns jogos da equipa B pela Braga TV. Houve um jogo, já não me recordo ao certo qual, em que o Trincão entrou e fez logo um golo. Eu já estava a reparar nele, porque chamou-me logo a atenção a qualidade técnica que ele demonstrava - e ele nessa altura ainda jogava mais frequentemente nos juniores do que na B.

Em 2017/18, ele esteve apenas na equipa B. Quando comecei a trabalhar para o Sporting de Braga, obviamente procurei conhecer todos os jogadores a fundo e aí percebi bem como é que ele era, através dos vídeos que vi e, depois, no trabalho diário.

Há duas questões que são muito interessantes de notar no Trincão.

A primeira é que ele, por três dias, não joga no escalão abaixo. Ou seja, por três dias, ele poderia ter nascido em 2000 e ainda ter idade de júnior para a próxima época, porque ele nasceu a 29 de dezembro de 1999. Isto é um assunto pouco falado, mas que tem muito significado. Porquê?

Francisco Trincão em ação pelo Sporting de Braga B, onde jogou em 2017/18
Gualter Fatia/Getty

Porque o impacto da idade relativa é muito importante no futebol. Não é fácil encontrar jogadores nascidos no segundo semestre do ano que estejam no alto nível. E o Trincão é de 29 de dezembro, volto a dizer. Para se conseguir sobreviver no futebol, nascendo nos últimos meses do ano, é preciso ter uma qualidade muito acima da média. É preciso notar bem isto para alertar as pessoas, porque é uma situação à qual é muito difícil resistir.

Se nós virmos os plantéis dos clubes que conseguem selecionar os melhores, não é fácil encontrar jogadores do final do ano - vemos que está quase tudo concentrado no primeiro trimestre ou quadrimestre. No segundo semestre há muito poucos e torna-se difícil para esses miúdos crescerem.

O Trincão, se virmos bem, é quase um ano mais novo do que os jogadores de 1999 que nasceram no início do ano. E num ano desenvolve-se e aprende-se muita coisa. Ele próprio dizia isso: "Ó mister, sou quase um ano mais novo do que eles, só por três dias".

Depois, houve uma outra questão que foi algo muito marcante na relação que tivemos. Eu conheci um Trincão com muita habilidade, mas em que a fase defensiva não acompanhava minimamente aquilo que ele era capaz de fazer do ponto de vista ofensivo. Lembro-me de lhe dar muitas duras no treino, com muita frequência, como ele bem se recorda, precisamente para ele mudar e dar aquele clique no momento da perda da bola, para reagir de imediato e trabalhar defensivamente.

Lembro-me que fizemos algumas reuniões pós-treino em que lhe mostrava imagens do que queria e do que não queria, do ponto de vista defensivo, daquilo que era o compromisso dele. Chateei-o muito com isso, no bom sentido. No fundo, fiz aquilo que é normal um treinador fazer com um jovem e lembro-me de lhe dizer sempre isto: "Tu tens tudo para chegar lá acima... desde que tenhas também este compromisso defensivo. Acredita que tu um dia vais conseguir chegar lá e vais lembrar-te deste chato que te dava cabo da cabeça para tu defenderes."

E ele lembra-se disto, porque eu depois do primeiro jogo contra a Noruega mandei-lhe uma mensagem a elogiá-lo e perguntei-lhe: "Sabes o que é que mais gostei de ver?" E ele disse-me: "Sei, mister, foi quando perdi a bola e recuperei-a logo a seguir". Ele levou muito na cabeça, no bom sentido. Cheguei a dizer-lhe isso mesmo, para ele perceber: "Dou-te muito na cabeça, porque gosto muito de ti". Porque, obviamente, acreditava muito no potencial dele, que é muito grande. Só que tinha de lhe dizer que no futebol de hoje em dia todos os jogadores - com exceção do Ronaldo e do Messi, ok -, têm de trabalhar defensivamente, têm de ter um compromisso grande.

A verdade é que, por mérito dele, evoluiu muito nisso na época passada, a ponto de, com muito agrado meu, ter sido reconhecido por isso. Uma vez, num jogo de treino contra a equipa principal, o Abel Ferreira viu-o e disse-me: "O Trincão está irreconhecível, para melhor. Com bola, já sei o que ele conseguia fazer, mas sem bola evoluiu muito, é impressionante".

Acho que este foi um crescimento muito grande que ele teve e que vai ser muito importante para ele se conseguir impor a um nível elevado. Ele cresceu muito e teve connosco jogos a um nível muito elevado, por isso fiquei muito satisfeito por vê-lo neste Europeu.

Não gostaria de dizer se está pronto ou não para entrar na equipa principal, porque essa decisão cabe apenas ao Abel e o Abel conhece-o muito bem. Agora, o Trincão, sendo ainda um miúdo, é um miúdo que tem uma personalidade bastante interessante, porque é muito crescido. É um homenzinho - penso que essa é a melhor expressão para descrevê-lo. Por aquilo que é a maneira de ser dele, penso que se o Abel achar que lhe deve dar essa oportunidade, ele vai fazer tudo para agarrá-la, porque tem muita ambição, tem confiança nele próprio e tem qualidade, claro. E depois, lá está, para ele se conseguir impor num nível tão elevado, entre seniores, tem de ter o tal compromisso defensivo - e acho que ele já tem essas condições.

Ele diz a quem está mais próximo dele que quer ser um dos melhores do mundo. Tudo é possível, mas há tantas variáveis que podem influenciar uma carreira que nem devemos meter-lhe essa carga em cima. Ele deve continuar a seguir a sua evolução, passo a passo, patamar a patamar, porque, por vezes, quando se começa a colocar a fasquia muito alta, isso não ajuda os jogadores. E não é justo fazer isso com o Trincão. Ele tem uma ambição grande e isso é importante, porque conhecemos bem os casos em que a ambição ajudou os jogadores a chegar ao topo. Mas devemos agora deixá-lo seguir o seu caminho, sem colocar demasiada pressão. Ele é um miúdo espetacular e merece as coisas boas que lhe estão a acontecer.

KIMMO BRANDT/EPA

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