Dois toques inócuos na bola tinha Gonçalo Ramos aos 17 minutos, ainda fresco para se digladiar com os matulões Akanki e Schär, mais esses dois dos três centrais suíços, donos da musculatura que o português não dispõe agarrada aos ossos, nem precisa nisto do futebol jogado pelo músculo guardado na cabeça. Nessa andadura do relógio ele provou-o, rato no repentismo da decisão tomada e incisivo a receber a bola orientadamente, na área, para a frente do seu pé esquerdo: protegendo-a do adversário com o corpo, embalado nesse movimento e sem mirar o alvo, rematou à bruta para a nesga do ângulo superior da baliza mais próximo.
Ao terceiro e quarto toques na bola, Gonçalo Ramos marcava um golo.
À primeira titularidade na seleção, logo entre as feras figuradas de o estar a fazer em jogo a eliminar de um Mundial, o avançado, ainda um projeto de jogador para a posição face aos tão-só 21 anos que luz, aproveitou a mostra de passividade que a Suíça não mostrara nos 15 minutos iniciais. Ele e um rapaz a jogar ainda mais solto de constrangimentos - João Félix, pedindo logo a bola num lançamento lateral, foi quem a picou suavemente, à altura da canela e esgueirando-a acima dos arranha-intenções que eram as pernas de dois adversários, para a fazer chegar a Gonçalo Ramos.
O quinto toque do avançado na bola, na área e de costas voltadas à baliza, segurando um central, assistiu um remate de Otávio a embrulhar a melhor jogada tricotada da seleção até então, aos 22’. O sexto, no minuto seguinte, para receber um passe longo e cheio de efeito do mais sem trela em campo, livre de constrangimentos posicionais; o sétimo para rematar essa bola que nos embrulhanços da corrida contra um adversário ainda lhe ressaltou nas pernas, vendo o guarda-redes Sommer a defendê-la, em esforço, com uma palmada.
Foi à cabeça de Gonçalo Ramos que o cruzamento do deambulante João Félix, a espalhar caos na vida dos suíços pelo centro-esquerda do ataque, apontou, sacudido por um corte socorrista da cabeça de Schär que adiou, por segundos, o 2-0. O conforto de Portugal refestelou-se a partir daí, com o avançado a não participar por aí além na fluidez das posses de bola, dando-se como apoio frontal para companheiros o usarem de parede mais perto da área, onde era ativo nas pequenas diagonais com que rasgava o espaço entre o trio de centrais da Suíça. Sem a bola, aplicava uma pressão nas ações no defesa em quem Portugal conseguia orientar a saída de trás do adversário, quando a lograva condicionar.

Chris Brunskill/Fantasista
Gonçalo jogava como o avançado que sucinta as suas ações com a bola em poucos toques, se oferece em movimentos de rutura no espaço ou de apoio em jogadas de passes curtos e se aplica nos momentos defensivos, para a seleção ser pressionante na primeira instância em que a Suíça tentar injetar ideias nas jogadas. “Opção estratégica”, definiu-o Fernando Santos, repetidamente questionado acerca do substituto de quem raríssimo era ser expectável uma substituição. Terá sido mais uma opção acertada.
Estava a escritura deste laurel de MVP a Gonçalo Ramos em andamento e o selecionador nacional já na conferência de imprensa a repartir-se em justificações. “É muito dinâmico, ataca bem os espaços nas zonas exteriores, competitivamente é forte”, acrescentou sobre os 21 anos e 169 dias do avançado que, por mais camadas estrategistas deposite o treinador nas explicações, acabou a reforçar o arrojo de Fernando Santos em bater o pé a uma posição. Em ter a coragem de assumir o desgosto público por uma atitude de um capitão com aura de intocável e de lhe dar um seguimento prático.
A inclusão da energia de Gonçalo Ramos para ser uma referência participativa na frente juntou-se à manutenção de Diogo Dalot na defesa, inultrapassável nos duelos e disposto a ser um lateral para se oferecer no espaço, não só no pé; ao desamarrado João Félix para dar os toques e desvios à bola onde lhe aprouver, com um sorriso; ao Bernardo sempre na bola, a ditar-lhe os caminhos; a Bruno Fernandes com várias opções a oferecerem-se na sua frente sem um jogador-foco em quem sempre se urja colocar um passe. No compêndio de uma lei de Murphy ao contrário onde tudo o que pode correr bem, saiu bem, foi o avançado a ser o ponto que provou vários pontos.

Sebastian Frej/MB Media
Encontrou o seu 19.º toque de Gonçalo Ramos veio do curto movimento de ataque ao primeiro poste, antecipando-se ao adversário assim que Dalot ganhou a linha de fundo e cruzou rasteiro, para o 2-0, aos 51’. O seguinte para ser um apeadeiro na brisa que Félix pareceu ser a tabelar como se nada fosse com o calcanhar de Otávio, tocando depois em Ramos para ser ele, rodopiando sem custos na receção, a lançar o 3-0 de Raphaël Guerreiro. O 23.º interação dos seus pés com a bola foi uma concha para a picar docilmente sobre o corpo de Sommer, tombado na relva como os queixos de muito boa gente. Era o 5-0, aos 67’.
O hat-trick do estreante em titularidades na seleção, primeiro a deixar um trio de golos num só jogo deste Mundial. Só é mais velho do que Pelé na lista de homens a consegui-lo se, por momentos, considerarmos o brasileiro um humano ao invés de um mito. Gonçalo Ramos sairia de campo aos 73’, tinha tocado 26 vezes na bola, cúmulo de eficácia no meio de tantos sorrisos a quem o selecionador ainda ousou dizer, ao intervalo, que se estavam a “divertir um bocadinho demais”. A substituí-lo veio Cristiano Ronaldo, antecipador deste feito em 2018 já depois de Pauleta (2002) e Eusébio (1966) o desbravarem.
Gonçalo Ramos não é a pólvora, muito menos o disparo que dispensa outros avançados ou retira propósito a Ronaldo, como se tal fosse possível, justificável, sequer defensável. Jogar um não invalida o outro. Mas o que um dá ao jogo dos outros que jogam na seleção - à qual a vontade recente de Fernando Santos é dar uma boa ‘anarquia’ com bola -, expõe aquilo a que o outro a limita pela especificidade do que pode dar.