O cenário era repetido, parecendo passar-nos à frente como uma cassete puxada atrás, sem segredos ou novidades. O filme mostrava-nos Portugal, seleção recheada de qualidade individual como poucas no mundo, a jogar em casa um encontro no qual um empate lhe bastava para assegurar os seus objetivos. Do outro lado estava um adversário que, por anormal que seja face à história recente, tem menos talento à disposição em praticamente todas as posições do campo, ao ponto de ser legítimo questionar se algum titular espanhol caberia no onze português.
Mas tudo isto conjugava-se para nos dar, em Braga, uma segunda parte em que a equipa da casa, tendo o resultado e a valia individual a seu favor, se comportava como um amontoado de futebolistas sem plano coletivo ou soluções para multiplicar o talento disponível. Portugal, no tal guião já visto no Estádio da Luz em 2021 contra a Sérvia, esperava, esperava, recuava, recuava, olhava para o relógio.
Ao invés de surfar a onda de potencial que tem, Portugal acreditava que nada aconteceria, como se não tivesse que ir à procura do resultado e fosse este a ir ter consigo. Bernardo Silva era substituído, qual símbolo da renúncia em jogar e da crença de que nada sucederia até ao apito final. Na aposta num plano de mínimos e não de máximos, na apatia imóvel em vez da atividade agressiva.
Ao não arriscar e deixar tudo nos pés do que o adversário fizesse enquanto olhava para ele, incapaz de pegar nas rédeas do acontecimento, Portugal estava a arriscar.
Por tudo isto ser repetido e ter sido visto há menos de um ano é que não surpreendia. E foi sem surpresa, quase como aquelas inevitabilidades que nos levam a um conformado encolher de ombros, que chegou o golo de Morata aos 88' que ditou a derrota, por 1-0, de Portugal contra a Espanha. A seleção está, assim, fora da final four da Nations League mas, talvez mais preocupante do que isso, volta a deixar uma imagem de letargia e imobilismo, condizente com os últimos tempos da equipa nacional.
Os jogadores espanhóis festejam o golo de Morata
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A primeira parte foi, basicamente, um duelo entre quem queria, mas não podia, e quem podia, mas não queria. De um lado estava a Espanha de Luis Enrique, para a qual olhamos e não vemos Xavi ou Iniesta, nem sequer Silva ou Fàbregas, tampouco Torres ou Villa. Para cúmulo, Pedri e Rodri, os imberbes candidatos a sucessores, começaram no banco em Braga.
Assim, a Espanha passou a hora inicial de jogo tendo muita bola — aos 15 minutos tinha 81% de posse —, mas não ameaçando Diogo Costa, que só teve de fazer a primeira defesa aos 71'. Sem capacidade para desequilibrar ofensivamente e com uma circulação previsível, a valentia que Luis Enrique sempre promete ficou-se pelas intenções durante boa parte do duelo.
Do outro lado, estava uma seleção confortável com o resultado e com as virtudes que Espanha não tem. Se Luis Enrique não tem médios com golo, Fernando Santos tem Bruno Fernandes, que tem atração pela baliza rival quase ímpar entre os centrocampistas na Europa; se do lado de lá da fronteira escasseiam os protagonistas nas principais equipas do mundo, deste lado há gente que brilha no Liverpool, no City, no Milan, no PSG.
Nos primeiros 20 minutos, Portugal foi assistindo à circulação inofensiva de Espanha. Na parte final do primeiro tempo, a perceção das fragilidades da posse adversária fez Portugal dar alguns passos à frente e roçar o golo através de um remate de Diogo Jota, defendido por Unai Simón, e outro de Bruno Fernandes, que deu a ilusão de golo.
A sensação de que Espanha estava ali, qual presa débil à espera de ser caçada, era evidente. Depois do intervalo, Jota isolou Cristiano Ronaldo, mas o capitão não conseguiu bater o guardião rival. Espanha sangrava mas, ao invés de cheirar esse sangue para acabar com a contenda, Portugal preferiu o habitual caminho conservador, a aversão ao risco que, na verdade, é o maior dos riscos, por levar a criar uma inferioridade onde havia uma superioridade.
Unai Simón defende o remate de Ronaldo, numa das melhores oportunidades do jogo
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Durante uma hora de jogo, a defesa da casa quase não foi incomodada, liderada pela eficácia de Danilo, o médio transformado central que tem estado imperial no setor recuado português. Mas, aos 60', Luis Enrique lançou o intuitivo e inteligente Pedri, o energético e agressivo Gavi e o vertical Yeremi Pinto — a eles se juntaria pouco depois o irreverente Nico Williams.
Subitamente, aquele ideia de que nenhum espanhol entraria no onze português era menos verdadeira. Espanha passou a circular com outra intenção, outro critério, passando a ter bola dentro do bloco de Fernando Santos. Pedri bailava entre Rúben Neves e Bruno Fernandes, Gavi ganhava bolas na pressão. A resposta de Portugal era recuar, tirar do campo o talento de Bernardo Silva e a ameaça de Diogo Jota até, pura e simplesmente, deixar de jogar.
Fernando Santos ia gritando para dentro de campo, mas o que lá se via era uma equipa que nem defendia compacta — as oportunidades de Espanha passaram a surgir, primeiro por Williams e depois por Morata, ambas defendidas por Diogo Costa —, nem mordia a circulação rival. Que não conseguia ter a bola para baixar o ritmo do duelo, nem partia com perigo para explorar o adiantamento rival.
Durante largos minutos, o futebol português limitou-se a despejar bolas, que, invariavelmente, iam parar a pés espanhóis, recomeçando os ataques de la roja e o sofrimento nacional.
A entrada de Pedri, conjugada com as de Gavi e Pino, melhorou o jogo espanhol
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Já quando Portugal tinha reentrado no filme sérvio, Cristiano Ronaldo teve uma oportunidade para fazer o 1-0. Isolado perante Unai Simón, foi lento a reagir e viu Gayà tirar-lhe a bola. A conjugação de falta de velocidade, de escasso instinto matador e de apatia em frente à baliza foi uma espécie de antítese do que nos habituamos a pensar quando pensamos em Cristiano Ronaldo.
Os mitos funcionam muito pela capacidade de deixarem, no inconsciente coletivo, imagens e ideias sobre aquilo que são, mas talvez tenhamos de olhar para a realidade do mito Cristiano Ronaldo para avaliar o que ela é. Ficou em branco em oito dos últimos nove jogos que fez por Portugal, só um golo em 10 partidas entre seleção e United esta temporada, uma lentidão e falta de envolvimento coletivo que é o oposto do que o talento que o rodeia precisa para florescer.
Sem surpresa, como os finais daqueles filmes em que já sabemos o que vai suceder, o golo de Espanha chegou aos 88'. Portugal há muito que só defendia, Fernando Santos preparava-se para fazer ainda mais marcha-atrás com a entrada de Palhinha, e mesmo assim Nico Williams conseguiu assistir, dentro da área, Morata com pouca oposição, rematando o avançado do Atlético de Madrid para uma baliza deserta.
A olhar para o golo estava uma seleção que há muito só esperava e um público que já poderia intuir qual seria o final da história. Ficar à espera que nada suceda quando se tem tanto potencial para condicionar os acontecimentos é pecado que se paga caro. Depois da Sérvia, foi com a Espanha. Agora é continuar a esperar, que faltam 58 dias para o Portugal - Gana, na estreia no Catar.