A transferência de Cristiano Ronaldo (CR7) para o clube Al-Nassr, da Arábia Saudita, aos 38 anos, pode soar a princípio do fim da carreira de um futebolista extraordinário que recebeu por cinco vezes a Bola de Ouro, troféu que consagra o melhor jogador do mundo. Para o país que o acolheu, contudo, Ronaldo é a esperança de uma grande transformação.
Entre a visibilidade que veio dar ao campeonato saudita e a animação que gera no seio de uma população de 35 milhões, em que 70% têm menos de 35 anos, Ronaldo contribui, pela positiva, para a afirmação internacional de um país agastado por uma imagem ultraconservadora e desrespeitadora dos direitos humanos e por um estatuto que depende, em exclusivo, da abundância de petróleo.
“Julgo que a ida de Ronaldo para a Arábia Saudita é uma mistura de soft power e exercício de marketing, dois conceitos que estão ligados entre si”, comenta ao Expresso David Roberts, professor no King’s College de Londres. “Diz respeito a um reposicionamento mais vasto da Arábia Saudita e à tentativa de criar uma narrativa fundamentalmente diferente, que a afaste de questões negativas e de imagens do passado” e conduza o país “em direção a um sentimento popular inequívoco mais positivo”. Para este perito em assuntos do Médio Oriente, “Ronaldo é muito importante nesse novo pensamento”.
A arma da imagem
Nos manuais de Ciência Política, soft power (poder brando) é um conceito que remete para a capacidade de influência de um país por via do exemplo, dos valores e da aposta em áreas como a cultura e o desporto. Por contraponto, o hard power (poder duro) é o recurso a meios coercivos, sejam militares ou económicos, como as sanções.
“Acredito que a Arábia Saudita esteja a investir no desporto porque reconhece que um país não pode confiar apenas no hard power. Também precisa de soft power para manter boas relações com outros países”, diz ao Expresso Danyel Reiche, professor na Universidade de Georgetown no Qatar. “Por isso, reconhece que os poderes militar e económico não bastam e que também precisa de investir na sua imagem.”
AHMED YOSRI
Pelo respeito que conquistou dentro e fora dos relvados, CR7 é uma extraordinária ferramenta de soft power para um país desesperado por reabilitar a sua imagem, degradada nos últimos anos pela campanha de bombardeamentos no Iémen e, sobretudo, pelo caso de Jamal Khashoggi, jornalista saudita crítico do regime que foi assassinado e desmembrado no interior do consulado da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia.
A investigação ao crime implicou diretamente o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MbS), homem forte do reino e principal mentor de um amplo programa de reformas com que o país se quer abrir ao mundo e no qual CR7 pode ser um peão importante.
Do Newcastle à Fórmula 1
“Ronaldo reflete a mudança na política de poder, que conta não apenas com o hard power, mas passa a visar também o soft power”, diz Reiche. Na área do desporto, “os investimentos começaram antes de Ronaldo, com os jogos [de futebol] referentes às Supertaças de Espanha e de Itália a realizarem-se na Arábia Saudita” e a compra do Newcastle United F.C., clube tradicional inglês, por um fundo de investimentos pertencente à família real saudita.
O país investiu também nos desportos motorizados, passando a acolher o mítico rali Dacar em 2020 e, no ano seguinte, inscrevendo uma corrida no calendário de Fórmula 1, o Grande Prémio de Jeddah, que este ano se realiza a 19 de março. Em 2022, a Arábia Saudita criou o torneio LIV Series, uma espécie de superliga do golfe.
AHMED YOSRI
Desde que foi lançada em 2016, a estratégia “Visão 2030” — o tal plano de reformas — tem por objetivo primordial diversificar a economia saudita e reduzir a dependência do reino relativamente à indústria do petróleo, impulsionando, por exemplo, o sector do turismo.
Em paralelo, o programa tem implícito o objetivo de aliviar o controlo wahabita — doutrina religiosa ultraconservadora, austera e puritana, que é religião oficial do Estado — sobre a sociedade. O fim da proibição de as mulheres conduzirem, em 2018, foi uma das medidas mais simbólicas e mediáticas, bem como a autorização da entrada das cidadãs sauditas nos estádios de futebol.
Concubinato é ilegal, mas…
Neste capítulo, a presença de Ronaldo e família na Arábia Saudita é desafiante. Tanto quanto se sabe, o futebolista não é casado com a companheira e o concubinato é prática interdita no reino. Os analistas ouvidos pelo Expresso desvalorizam essa condição, realçando o percurso que a Arábia Saudita vem trilhando em matéria social.
“Se é verdade que Cristiano e a sua companheira não são casados, não vejo que isso seja problema. O atual Governo saudita indicou de várias formas que está a tentar romper com o passado e não se importa com essas abordagens conservadoras da velha guarda”, diz Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”.
“O Governo muda as políticas e retira poderes e influência às crenças religiosas e afins. Nesse sentido, mesmo que a lei não seja consentânea com a realidade, não me parece que isso seja uma preocupação” para as autoridades sauditas, acrescenta o docente.
Anadolu Agency
A tolerância de que Ronaldo beneficia no que respeita à sua condição matrimonial vem em linha com uma lei adotada em 2019, que passou a permitir que turistas estrangeiros solteiros partilhem um quarto de hotel, e que levou as autoridades a fecharem os olhos a algumas dinâmicas dos habitantes estrangeiros.
“O relaxamento das normas sociais não começa com o facto de Ronaldo morar com a sua companheira sem serem casados”, diz Reiche, investigador nas áreas do desporto, política e sociedade. “Há muitas mudanças sociais em curso na Arábia Saudita e o desmantelamento da polícia religiosa em 2016 foi, na minha opinião, a maior de todas.”
Abaya e niqab já não são obrigatórios
Formada na década de 1940, a chamada Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício destruía instrumentos musicais, invadia salões de beleza, rapava cabeças, chicoteava pessoas e queimava livros. Difícil é imaginar como atuaria perante um casal com um estilo de vida e exposição mediática que vão além do que é aceite na Arábia Saudita, ainda que o uso da abaya (túnica comprida) e do niqab (véu quase integral) já não seja obrigatório em público para as mulheres.
Roberts não acredita no potencial de contestação social que a falta de sincronia entre o quotidiano de Ronaldo e a realidade saudita possa originar. “Não acho que o Governo saudita sinta pressão de movimentos sociais dentro do país. É muito controlado e controlador, está aos comandos da narrativa.”
AHMED YOSRI
A nova estrela do Al-Nassr F.C. (“A Vitória”, em árabe), um dos principais clubes de Riade, é campeão dentro e fora dos relvados. Ronaldo tem mais de 550 milhões de seguidores na rede social Instagram, mais de 160 milhões no Facebook e quase 108 milhões no Twitter.
A sua companheira, a influencer argentina Georgina Rodriguez, é seguida por cerca de 47 milhões de pessoas no Instagram. Se, em público, “Gio” procura primar pela discrição, nas redes sociais posa para as selfies com a ousadia de sempre.
Através das redes sociais, o casal funciona como vitrina para sinais de mudança no país que é o guardião dos dois principais lugares santos do Islão — as mesquitas de Meca e de Medina.
Acusações de sportswashing
A 3 de janeiro, quando foi apresentado em Riade, o próprio CR7 reclamou um papel nesse processo. “Tive muitas oportunidades… Muitos clubes tentaram contratar-me, mas dei a minha palavra a este clube para desenvolver não só o futebol, mas outras áreas deste país fantástico”, disse na conferência de imprensa.
“Quero dar uma visão diferente deste clube e deste país. É por isso que aproveitei esta oportunidade.”
A opção do futebolista português pela Arábia Saudita, Estado não muito cotado nos rankings de respeito pelos direitos humanos, motivou a Amnistia Internacional a emitir um comunicado ao estilo de apelo.
“Cristiano Ronaldo não devia permitir que a sua fama e estatuto de celebridade se tornem uma ferramenta saudita de sportswashing [uso do desporto para melhorar a reputação e mascarar ações merecedoras de condenação]. Devia usar o seu tempo no Al-Nassr para falar sobre a miríade de problemas com os direitos humanos no país.”
FAYEZ NURELDINE
Circunscrevendo o impacto do português ao sector desportivo, Ronaldo pode contribuir fortemente para o desenvolvimento da modalidade no reino e noutros países árabes, à semelhança da importância de Pelé no aumento da popularidade do soccer nos Estados Unidos. O “rei” jogou no Cosmos de Nova Iorque entre 1975 e 1977 — os Estados Unidos organizam o Mundial em 1994.
A Arábia Saudita não parece disposta a esperar tanto pelo seu momento. Depois de o futebol ao mais alto nível ter chegado ao Golfo Pérsico com o Mundial no Qatar, em 2022, a Arábia Saudita parece ansiosa por também acolher esse torneio.
Notícias recentes dão conta de que o reino terá sondado o Egito e a Grécia no sentido de uma candidatura conjunta ao Mundial de 2030. Com o anúncio do(s) país(es) organizador(es) previsto para o próximo ano, uma candidatura saudita poderia robustecer-se com o apoio de Ronaldo.
Ronaldo contra Portugal?
“Não tenho a certeza de que 2030 seja hipótese realista para a Arábia Saudita, já que acaba de realizar-se um Campeonato do Mundo no Qatar”, diz Reiche. “Mas é certo que a Arábia Saudita quer ter o seu Mundial um dia, mesmo que não seja em 2030.”
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A eventualidade de Ronaldo se tornar uma espécie de embaixador do projeto colocá-lo-ia em rota de colisão com as pretensões de Portugal, que já está na corrida em conjunto com Espanha e Ucrânia.
“É provável que, se a Arábia Saudita lançar uma candidatura ao Mundial de 2030, vá querer que Cristiano desempenhe um papel fundamental nisso, obviamente”, diz Roberts. Em relação à possibilidade de ir contra o seu país, “acontece o mesmo com Messi, suspeito que fosse um momento estranho para ambos”.
Lionel Messi entra em campo porque também a Argentina está na corrida pelo Mundial de 2030, num projeto conjunto com Uruguai, Chile e Paraguai. O astro argentino é ainda embaixador da campanha Visit Saudi, do Turismo da Arábia Saudita. Se esta concorrer ao Mundial de 2030, é bem possível que Ronaldo e Messi passem, por fim, a fazer parte da mesma equipa… saudita.