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Râguebi

No último minuto, com o último pontapé, Portugal foi buscar a história: 16 anos depois, os ‘Lobos’ jogarão um Mundial de râguebi

No derradeiro jogo da repescagem para o Mundial de 2023, a seleção nacional ainda saiu para o intervalo a ganhar, mas, na segunda parte, os EUA marcaram na primeira vez que chegaram à área de 22 metros e Portugal esteve a perder até ao minuto final, quando, depois de um pontapé de ressalto que bateu no poste, ainda teve uma penalidade que Samuel Marques, com a pressão de uma nação sobre ele, converteu. Após o feito de 2007, os portugueses voltarão ao maior dos torneios do râguebi

Diogo Pombo

Martin Dokoupil - World Rugby

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A maneira de colocar uma proverbial cenoura à frente dos olhos desencantada pela criatividade oval soa quase a brincadeira. Quando portugueses e americanos, com caras séries e alinhados à boca do túnel, se começam a abeirar do relvado, são logo boa-vindados pelo troféu Webb Elis, o caneco reservado para quem conquista o Mundial ali posto em exibição para lembrar todos do porquê de estarem no húmido calor do Dubai, prestes a correrem no final do funil da qualificação para o maior dos torneios do râguebi.

O derradeiro jogo de anos e gerações de espera, de novo jogado longe de Portugal - há 15 anos, a seleção foi buscar o apuramento ao Uruguai -, denota o musculado respeito dos norte-americanos por quem têm à frente. Insistem, de início, na estratégia cautelosa de chutarem cada bola que lhes chega aos homens mais atrasados do campo, devolvendo-a pelo ar e para a área de 22 metros portuguesa. É uma prudência com o rabo na boca pelas conhecidas valias da seleção nacional.

Esse conspirar com os avanços e recuos das equipas no campo, pelo previsível que vira a opção dos americanos pelo jogo ao pé, faz a bola cair nas mãos dos mais vertiginosos entre os portugueses a correrem embalados e com espaço para acelerarem. A danceteria perante corpos de Jerónimo Portela fê-lo ser brutalmente placado por um adversário que o ergueu ao 1.º andar, deixando-o cair e só depois caindo com ele, motivando o cartão amarelo que deu 10 minutos a Portugal com mais um jogador em campo. O tempo permitiu-lhe pressionar os EUA, empurrá-los no relvado e juntar a troca de pés de Nuno Sousa Guedes à de Rafaele Storti para o primeiro ensaio, logo aos 8’.

Mais cortejador do profissionalismo no râguebi e vindouro anfitrião do Mundial de 2031, o adversário até inaugurara o placard, aos 2’, com um pontapé de penalidade. Seria a primeira de três faltas feitas pelos portugueses na sua metade do campo, e lugares com vista desafogada para os postes. Mas quem tinha algo mais em jogo do que Portugal jogava bem menos com o risco de quem lutava por um retorno à glória de 2003, de regressar ao torneio ainda com o amadorismo na modalidade a reinar. O choque de contextos e de qualidades dos jogadores era visível.

Quando Portugal já vencia, José Uva devolveu a gentileza de um cartão amarelo (21’) numa fase de forte pressão dos EUA que nada surtiu no período de castigo. A seleção apenas sofreria três pontos com um corpo a menos, suportou a continuação do jogo direto e previsível do adversário - linhas de corrida sempre retas, com as jogadas à mão, saídas de rucks, a respeitarem o jogador do lado, havendo poucas tentativas de ludibriar as placagens. Já com 15 de cada lado, o médio de formação Samuel Marques converteu um pontapé antes do capitão norte-americano, de nome mui americano, AJ MacGinty, o imitar.

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Havia um 10-9 para Portugal ao intervalo e o descanso serviu para a seleção ressurgir mais decidida a depositar de metade de lá do campo o que fazem de melhor. As tentativas de encadear cruzamentos de linhas de corrida, passes a ‘saltar’ jogadores e pequenos pontapés para explorar as costas de adversários sucederam-se, o sapateado de Nuno Sousa Guedes era muito requisitado e o capitão Tomás Appleton teve um par de sprints que furaram de sobremaneira a linha americana. Mas, de um par de pontapés, Samuel Marques converteu apenas um, não livrando a vantagem de uma magreza que prejudicaria Portugal.

À primeira chegada dos EUA aos 22 metros nacionais, só aos 57’, os nascidos no país onde a ovalidade mais prezada é a do futebol inventado por eles carregaram com o mesmo estilo basilar de jogo. Aproveitando os quilos de músculo e centímetros de corpulência a mais, marraram várias fases consecutivas contra os português, com corridas a direito, forçando e fustigando a linha até marcarem o ensaio (convertido) que lhe daria uma vantagem de 16-13 - e mal piorado para Portugal, acresceu a isto um cartão amarelo que valeria nos 10 minutos seguintes.

E tocou à seleção sofrer, levar com uma fartura de sofrimento para aguentar o mesmo estilo de ataques martelados contra corpos com que os EUA prosseguiram a sua estratégia. Os nervos nas decisões e os picos de ansiedade, notados a cada apito do árbitro, eram claros como a água. Jerónimo Portela precipitava-se nos pontapés, Nuno Sousa Guedes não escondia o cansaço, Samuel Marques multiplicava-se em esbracejares de ânimo, pedindo calma, chamando a cabeça de cada um para o momento. A igualdade numérica chegou um pouco para lá dos 70 minutos, com o precipício do tempo cada vez mais escorregadio.

A pressa inimigava-se de qualquer ação, até ao mais simples dos ataques. A cada minuto, Portugal já tentava de qualquer maneira sem sacudir os erros no manuseamento de bola. No derradeiro par de minutos, a seleção encostava os EUA à área de 22 metros sem aparentar um vislumbre de conseguir evitar uma queda tão perto do destino. Mas, quando já só meros segundos restavam para o soar da corneta dos 80 minutos, um atabalhoado ruck fez o árbitro levantar o braço - na última das posses de bola, Portugal jogava a vantagem. O esgar de salvação aparecia.

Martin Dokoupil - World Rugby

Seguindo o jogo, os portugueses reciclaram a bola com mais uma fase de corpos a bateram uns contra os outros até que Jerónimo Portela, há pouco falível nos pontapés territoriais, se encheu de acerto para, a 50 metros do par de torres na traseira do campo dos EUA, pontapear a bola que subiu, subiu e seguiu até bater num dos postes e quase entrar, com a tabela, pelo lado bom do travessão. Ouviu-se logo um apito, ao som do qual Portugal ainda tinha uma bonança.

Porque, jogando a lei da vantagem e não entrando o chuto do médio de abertura português, a seleção tinha direito a um pontapé de penalidade no lugar onde o árbitro assinalara a tal falta. Era a mais de 40 metros do alvo, distância prolongada pelas toneladas não palpáveis de pressão que Samuel Marques, o chutador de serviço, teria canalizadas para a sua chuteira direita. Dezasseis anos de espera, de esperanças, de avanços e recuos, afunilados num pontapé aos postes.

Este intangível pesaria horrores, ou talvez não.

O chuto de Samuel Marques foi glorioso, a bola a ilusoriamente lenta, amansada no meio dos postes pela história a repetir-se. Os três pontos garantiram um inusitado empate, o mais raro dos resultados no râguebi que era suficiente para Portugal garantir a ida ao Mundial e imediatamente se ver uma invasão de campo. Tudo aos pulos, às cavalitas, aos abraços, todos com sorrisos e lágrimas partilhados entre companheiros de seleção, familiares que viajaram com eles para o Dubai e até outros jogadores portugueses, não convocados, mas a fervilharem com a ocasião.

Na transmissão televisiva, ouviam-se os gritos de alegria de Tomaz Morais, o selecionador da façanha de há 15 anos, a quem se pediu que comentasse este novo pedaço de euforia. Quando estes portugueses estiveram em França, em 2023, ter-se-ão contado 16 anos desde a única vez que Portugal estivera em Mundiais, igualmente nesse país. À espera da nova fornada dos ‘Lobos’ já estavam Austrália, Gales, Fiji e Geórgia, nações a vários mundos de distância (à exceção dos georgianos) em realidade oval, mas a história não se importa com isso.

Afinal, os portugueses voltarão a aproximar-se do troféu que lhes piscara o olho há quase duas horas.