Bem-vindos ao The Rugby Championship 2022, o torneio que reúne Argentina, Austrália, África do Sul e Nova Zelândia na mesma competição, lutando estas pelo domínio e controlo do râguebi de selecções do Hemisfério Sul, algo que, curiosamente, em outros anos (e parece quase já uma era diferente) valeu de mais ou, se quisermos, teve mais peso na catalogação do ranking mundial de nações do planeta oval.
Um torneio que, como o seu homónimo europeu, sofreu um acrescento já no século XXI, evoluindo de um sempre emotivo, dinâmico e controverso Tri-Nations, para a fórmula actual do The Rugby Championship, isto quando a Argentina (mais conhecidos pelos Pumas) conseguiu, em 2012, finalmente ser aceite entre os seus pares.
Desde esse acrescento, a Nova Zelândia, ou como são comummente conhecidos dentro e fora desta modalidade, os All Blacks, colheram oito títulos entre onze possíveis, afirmando-se como o papa-troféus entre os seus “irmãos” do sul, vocacionando uma hegemonia que começou precisamente após uma crise de resultados, pós-Mundial 2007 – aquele em que Portugal jogou, inclusivé frente aos neozelandeses.
A Argentina nunca tocou ou sequer sonhou com a conquista do troféu, apesar de nas últimas três edições terem sido capazes de derrubar, pelo menos uma vez, todos os seus rivais, algo sem precedentes e histórico.
Austrália e África do Sul somaram uma conquista cada, o que no caso dos sul-africanos pode parecer surpreendente, uma vez que o domínio atual não passa por serem os senhores do The Rugby Championship, por mais estranho que seja.
Se o Seis Nações é o apogeu anual do râguebi do Hemisfério Norte, o The Rugby Championship é quase o mesmo para o sul, sobretudo pelas rivalidades ancestrais que advêm entre nações-irmãs, como o caso dos neozelandeses e australianos, ou do estatuto de arquinimigos entre All Blacks e Springboks, com o episódio de Auckland 2013 a ser um exemplo tão perfeito como ver o "Regresso do Rei", terceiro filme do Senhor dos Anéis, pela centésima vez.
Para aqueles que ficaram minimamente interessados nessa noite de 2013, resumidamente: a Nova Zelândia estava sob alta pressão e com possibilidades de poder perder pela primeira vez em Auckland (até hoje nunca perderam um único jogo no Eden Park) frente à África do Sul, sentindo-se uma vibração tensa por entre quem estava sentado a assistir ao encontro.
Do nada, uma placagem perfeitamente legal de Bismarck du Plessis a Dan Carter acendeu um rastilho que colocou todos os participantes aos agarrões e abraços menos amistosos, crispando todo o ambiente em seu redor. Sem violência ou agressões, a calma voltou a reinar até que Romain Poite, decidiu mostrar a cartolina vermelha ao talonador sul-africano, perante o choque e surpresa de tudo e todos.
Resultado? Nova Zelândia acabou por ganhar com alguma folga, e os adeptos sul-africanos nunca mais puderam ouvir o nome Romain Poite na vida.
Se quiserem um episódio mais alegre ou adornado por uma composição cromática mais colorida, a primeira vitória de sempre da Argentina ante a Nova Zelândia, em 2020, depois de três meses fechados longe da família, em que só treinaram no campo durante uma semana e meia, e sem competição nacional ativa, é a melhor história de resiliência e crença que podem encontrar nos pergaminhos desta modalidade.
Mas o epílogo já vai longo. Entre os apontamentos históricos e as memórias dos tempos idos – não falem a um sul-africano do episódio de 2013, recomendação -, é altura de olhar para os quatro participantes e perceber onde estão, para onde irão, e o que pretendem com a edição de 2022 do The Rugby Championship.

Humanos, afinal de contas. Sam Cane, capitão da Nova Zelândia, a liderar a equipa no tradicional haka
Phil Walter/Getty
ALL BLACKS: O DESSASSOSEGO DE QUEM TUDO PODE PERDER
De super-potência com um registo avassalador em casa, para uma equipa dividida e sem rumo; de uma máquina dominante a todos os níveis e que colocava tremor em 99% dos seus adversários, para uma selecção que consentiu cinco derrotas nos últimos 11 jogos. Para um leigo, isto poderá não ser profundamente terrível, mas para um neozelandês, seja ele adepto, treinador, jogador, lenda, administrador, médico, sapateiro ou calceteiro, é tenebroso e apocalíptico.
O atual selecionador, Ian Foster, está no meio de uma tempestade que começou no dia em que foi escolhido para um dos cargos de maior visibilidade da modalidade, tendo desde então registado a pior percentagem de vitórias (67%) dos últimos 80 anos, fruto da sua incapacidade de implementar um estilo de jogo interessante ou coerente, ou de criar um verdadeiro grupo de trabalho, algo exposto em claro pela Irlanda em julho.
Salva em diversos jogos por exibições individuais alucinantes como de Ardie Savea, Beauden Barrett, Will Jordan, Samuel Whitelock ou Aaron Smith, a equipa técnica da Nova Zelândia parece estar no fim da sua 'legislatura', uma vez que 50% dos assistentes de Ian Foster já foram demitidos desde aquela sucessão fatídica de duas derrotas frente à Irlanda, no mês passado.
O momento atual é de consternação para os fãs dos All Blacks. E de total apoteose para os restantes, pois, ao fim de quase uma década, veem a Nova Zelândia ao nível de todos os outros, estando à mercê da França, Irlanda ou Inglaterra, algo nada expectável se estivéssemos a olhar pelos óculos de 2019.
Num ano em que o The Rugby Championship estreia o formato em modo tour, a Nova Zelândia vai ter de percorrer o pecaminoso caminho de jogar dois encontros em território sul-africano, o que adiciona uma camada extra de pressão que nem Ian Foster, nem a administração dos All Blacks, desejavam, podendo mesmo acabar trucidados pelos seus maiores rivais de sempre.
Porém, e para terminar, o efeito rebound pode-se dar: conseguirá Foster o estimular e reerguer os titãs da ovalidade?

Handré Pollard, o médio de abertura e pontapeador de serviço na seleção da África do Sul
Gallo Images
SPRINGBOKS: A HEGEMONIA CHEGA (TAMBÉM) AO THE RUGBY CHAMPIONSHIP
Vejamos: estilo de jogo extremamente tático, onde a imensa fisicalidade de todas as unidades dos Springboks conseguem derrubar a maioria dos obstáculos, moendo, moendo e moendo, até que o adversário ceda e perca controlo da oval, ofertando-lhes para que marquem os pontos necessários e levem a vitória no saco. Exigentes em todos os processos, minuciosos no trabalho nas fases estáticas, exemplos puros do que é a palavra “equipa” e monarcas do anticlímax, os homens de Rassie Erasmus e Jacques Nienaber foram, a par da Argentina, a única seleção a sair vencedora da sua série de jogos de julho frente a um rival do norte, mantendo total controlo, mesmo que por vezes pareça tremido.
Ao contrário dos All Blacks ou Wallabies, a África do Sul já sabe quem serão a larga maioria dos seus eleitos para o Campeonato do Mundo de 2023, tem a sua estratégia de campo (e fora dele) afinada e deverá estar a preparar os antídotos corretos para anular quer a França ou Inglaterra, olhando para este The Rugby Championship não como um fim, mas sim como um laboratório para ir acertando a sua (poderosa) orquestra.
Ao fim de quatro edições consecutivas, vão finalmente receber de volta a Nova Zelândia neste começo do torneio e, garantidamente, quererão demonstrar a capacidade não de ganhar por números largos, mas, sim, de serem capazes de dominar em todos os capítulos os seus rivais, sem ser necessário mostrá-lo exageradamente no placard.
Esse ponto é a beleza desta África do Sul de Erasmus e Nienaber - o não ir na busca desenfreada do râguebi total e sim de querer dominar nos ares, pontapés, formações ordenadas, rucks, contacto ou em qualquer outro ponto, vergando qualquer um ao seu poderio físico e sapiência desconcertante.
Depois de, em 2021, terem voltado a meter um travão nos sonhos e desejos dos British and Irish Lions de cantarem vitória na rainbow nation e de terem na outra mão a taça de campeões do Mundo em título, é altura dos Springboks tomarem o trono da hegemonia do Hemisfério Sul, e governarem a seu bel-prazer.

Steve Christo - Corbis
WALLABIES: NO CAMINHO DE AFINAR UM CANGURU AINDA VERDE
Austrália, campeã do Mundo em 1991 e 1999, seleção que ofertou mais de duas dezenas das maiores lendas do râguebi e detentora de uma soberba que advém do facto de terem revolucionado a modalidade em certos momentos... o que esperar deles em 2022?
Dave Rennie, o homem do comando, tem evocado que os The Rugby Championships e as janelas internacionais de verão ou outono servem para encontrar os 33 jogadores ideais que irão levar a Austrália a grandes feitos já no próximo Mundial, sabendo, no entanto, que a conquista deste torneio anual poderá ser o catalisador perfeito para que os atletas australianos acreditem na possibilidade de surpreender o Mundo em 2023.
Com um râguebi veloz, mesclado com apontamentos anárquicos – às vezes contraproducentes -, alterando o sentido da bola instantaneamente de maneira a apanhar a oposição desprevenida, esta Austrália está em busca de atingir um patamar superior na competência do trabalho mais aborrecido do pack avançado e de garantia das suas plataformas de ataque/defesa, que por vezes cedem fácil e inesperadamente quando tudo apontava para outro sentido.
Os Wallabies de Dave Rennie são um Dr. Jekyll and Mr. Hyde. As aparições do louco antagonista surgem quando menos se espera, o que já significou a amargura da derrota quando detinham a felicidade da vitória nas mãos, depois de um trabalho imenso da ciência de Rennie.
Entre a auspiciosa juventude de Noah Lolesio, Harry Wilson, Fraser McReight ou Tate McDermott – todos eles com margem para serem as próximas estrelas da Austrália -, e a avolumada experiência das atuais lendas como Michael Hooper, Samu Kerevi, Nic White ou Allan Alaalatoa, os Wallabies podem, finalmente, acreditar em conquistar o The Rugby Championship.

Só uma (2015) de nove edições do Rugby Championship não teve a Argentina como última classificada do torneio
PABLO GASPARINI/Getty
PUMAS: ENTRE GANAS, PASIÓN E INSTABILIDADE MENTAL
A Argentina é uma seleção que dança entre o tango apaixonante de Nicolás Sánchez, Santiago Cordero ou Matías Moroni, e a 'crueldade' surrealista expressa por Pablo Matera, Facundo Isa ou Tomas Lavanini. Continua a procurar o caminho certo da afirmação e de, realmente, estar no mesmo patamar que os seus parceiros do Hemisfério Sul.
O que não ajuda na procura ou construção desta via Puma no século XXI? Trocar de equipa técnica por três ocasiões nos últimos cinco anos e deixar-se cair em intrigas palacianas, com polémicas permanentes que só mutilam os objetivos a curto/médio/longo prazo.
Com a saída de Mario Ledesma e a ascensão do australiano Michael Cheika, além da aceitação de que os jogadores a atuar fora da Argentina são elegíveis para jogar pelos Pumas, a Argentina parece começar a colar as peças de uma equipa que, em 2015, entusiasmou os amantes da modalidade: chegaram às meias-finais do Campeonato do Mundo e precisavam somente de realizar ligeiras alterações para encontrar a paridade com os outros três titãs do Hemisfério Sul.
Não vão lutar pelo título, não. E dificilmente fugirão ao último lugar do The Rugby Championship, contudo desengane-se o leitor se acha que vão ser uma espécie de saco de pancada dos Springboks, Wallabies ou All Blacks, pois muito possivelmente irão infligir dano não só na linha de ensaio, como no registo de vitórias.
A falta de confiança dos argentinos tem sido parte do tendão de Aquiles que vem limitando o seu crescimento, com derrotas somadas nos últimos minutos de jogo ou a incapacidade em pontuarem apesar de estarem 20 minutos seguidos dentro dos últimos cinco metros do ataque. Esta é uma das missões de Michael Cheika para 2022 e 2023.
Com o início da competição marcado para este sábado, 6 de agosto, o torneio vai decorrer até 24 de setembro, com rivalidades e hegemonias a serem jogadas em campo; com ansiedades e expectativas a atingir o seu timbre máximo. Temos tudo para ter uma edição memorável e decisiva para o futuro de alguns, pelo menos.