A síndrome do “soco bêbado” soa a termo divertido, então se escolhermos um sinónimo como “murro embriagado” o potencial de sorriso aumenta, mas, em 1928, foi a definição pela qual Harrison Martland se ficou ao observar os efeitos notados por vários pugilistas nos EUA ao serem esmurrados, repetidamente, como forma de vida dentro de um quadrado rodeado por cordas. Comparando os seus relatos de consequências neurológicas registado em 23 boxeurs às autópsias que fez aos cérebros de mais de 300 corpos, o médico cunhou coloquialmente a expressão que, nas lunetas científicas, nos leva a outras como concussão e traumatismo craniano.
Ou Encefalopatia Traumática Crónica, abreviada em CTE na sigla inglesa, que Bennet Umalu utilizou em 2005. Nos anos seguintes, o médico ergueu-se contra toda uma indústria do futebol americano, a provável modalidade americana mais adorada pelos americanos onde lutou pela criação de protocolos que protegessem os jogadores contra pancadas na cabeça para lá dos meros capacetes. A sua demanda acabaria em filme protagonizado por Will Smith, a película popularizou-o e o médico reclamaria depois a autoria do termo. “Soava intelectualmente sofisticado, com um acrónimo muito bom”, diria, recordado pelo “Washington Post” que situou em 1949 o primeiro uso do termo CTE por um neurologista britânico.
O risco de atletas contraírem esta condição tem vindo a ser mais discutido, mesmo que a custo e aos empurrões, nas modalidades que envolvam choques físicos. Este século, a preocupação tem crescido no râguebi. Crescem as denúncias de antigos jogadores que sofrem com sintomas de CTE e demência, entre os quais constam Steve Thompson, campeão mundial com a Inglaterra em 2003, ou Carl Hayman, antigo All Black que marcou um ensaio a Portugal na edição de 2007. Ambos integrarão o grupo de 185 antigos jogadores que estão a processar a World Rugby e as federações inglesa e galesa por negligência, acusando-as de serem responsáveis pelas doenças neurológicas de que hoje padecem.
Na acusação tornada pública em dezembro de 2020 e noticiada, na semana passada, como tendo destino quase certo e para breve nos tribunais, queixam-se da inação das três entidades em educar os jogadores sobre os perigos de lesões cerebrais, em limitar o contacto nos treinos, em reduzir o número de partidas no calendário competitivo e manter, ou aumentar, o período de 21 dias em que um jogador deve ficar longe do qualquer atividade de campo caso sofra uma concussão. Este último ponto é um dos que, na terça-feira, constou noutra investida feita na World Rugby.
Quiçá aproveitando o ímpeto mediático crescente, a Progressive Rugby enviou à entidade uma lista de recomendações para mitigar, de vez e de forma decidida, o risco de ocorrerem traumatismos cranianos durante jogos. Entre as medidas está a aplicação de multas e castigos, como a retirada de pontos, aos clubes que não cumpram os protocolos já existentes sobre o regresso dos jogadores à competição após sofrerem uma concussão. “O râguebi tem de carregar no botão de reset agora mesmo. Estamos a falar do cérebro, o órgão mais crucial, mas vulnerável que temos”, alertou John Fairclough, um cirurgião ortopédico que é membro da organização, citado pelo “Rugby Pass”.

Brendan Moran/Getty Images
É mais uma voz crítica da postura de quem governa a modalidade oval, que não tem sido a líder do movimento que advoga por maior regulação para prevenir o risco de concussão no râguebi. “Não há outra opção que não a de reduzir drasticamente o número de impactos [na cabeça] recebido por um jogador no decurso da sua carreira”, acrescentou o mesmo médico. Em abril, o grupo de advogados que trabalha com o grupo de ex-atletas - então eram ‘apenas’ 75 e não os 185 atuais - estimou que 400 antigos jogadores já terão morrido devido a problemas neurológicos causados pela prática da modalidade ao alto nível.
Em novembro do ano passado, um estudo da Universidade de Durham, do norte de Inglaterra, que examinou 83 jogadores em atividade concluiu que cerca de metade dos que já sofreram, pelo menos, cinco traumatismos cranianos ao longo da carreira já revelam sintomas de depressão, enquanto dois terços têm alterações nos comportamentos de irritação e fúria. “Pouco vale a pena viver a vida assim” foi uma afirmação com a qual concordaram oito em cada 10 atletas que participaram no estudo. No mesmo mês, a World Rugby anunciou estar a trabalhar em “novas diretivas” para clubes e seleções reduzirem o contacto físico entre jogadores nos treinos.
Foi a última vez que a entidade se pronunciou oficialmente sobre a adoção de medidas neste tema. Na terça-feira, entre as recomendações da Progressive Rugby constavam várias que coincidem com o propagado, há quase um ano, pelo organismo que manda no râguebi: tornar obrigatório o limite semanal de 15 minutos para o treino corpo a corpo e com contacto; qualquer jogador ficar, no mínimo, 21 dias fora de competições se sofrer uma concussão; “punições severas”, entre multas e deduções de pontos, para clubes ou seleções que não cumpram com as regras; ou o mínimo de oito semanas anuais de descanso, incluindo duas durante a época.
As exigências feitas à World Rugby são tão crescentes quanto o reporte de casos de ex-jogadores com Encefalopatia Traumática Crónica ou outro tipo de problema neurodegenerativo associado a anos e anos das suas cabeças a serem apanhadas no meio de pancadas cruzadas. O râguebi é sinónimo de contacto físico, o choque entre corpos é inevitável e, nos anos mais recentes, é notória a preocupação dos árbitros em punir com cartões amarelos e vermelhos qualquer contacto feito com a cabeça dos jogadores. Sejam quais forem os problemas neurológicos, focar a ação na prevenção e não tanto no castigo pós-lesão na cabeça parece ser cada vez mais a prioridade mais redonda do mundo oval.