FC Porto

Eis Pepe, como se nada fosse, a jogar duas horas de futebol aos 41 anos

Eis Pepe, como se nada fosse, a jogar duas horas de futebol aos 41 anos
Charlotte Wilson/Offside

Em 2016, quando a final da Liga dos Campeões se decidiu nos penáltis, Pepe estava lá com o Real Madrid. Oito anos e 110 eliminatórias depois, o defesa central continua na prova maior do futebol europeu, na galhofa e bem-disposto, a bater os seus próprios recordes de longevidade contra uma equipa treinada por alguém que tem a mesma idade (e se retirou, precisamente, em 2016). Não sabemos se este foi, ou não, o último hurra de Pepe na Champions, mas é percetível que a alma que o alimenta continua lá

Em Londres, ao fim de duas horas de bola a ir e a vir, havia um apogeu extenuante. Tinham-se visto meias descidas pernas abaixo, sintoma estético de cansaço, jogadores dobrados sobre eles próprios e com as mãos nos joelhos, cãibras a fazer coxear alguns e toda uma aura de stress a habitar no ambiente no estádio. Estava o acesso aos oitavos de final da Liga dos Campeões prestes a ir a penáltis, os guarda-redes, David Raya e Diogo Costa, sentados no banco que nem petizes na escola, diante de tablets e folhas rasuradas com indicações acerca dos hábitos de remate dos adversários com a bola parada a 11 metros da baliza. A ansiedade era palpável, mas um quarentão estava a rir.

Enquanto a tensão engordava, mais ainda, a ocasião, Kepler Laveran de Lima emanava galhofa, ria com dentes à mostra e tentava uma cavaqueira na cimeira dos capitães com o árbitro para decidirem a ordem das equipas na marcação dos penáltis. Conhecemo-lo por Pepe, embora a visão comum não o conheça assim: sorridente, quase em conversa no balcão de um café de esquina, abraçava Martin Ødegaard, o dono da braçadeira do Arsenal a emanar uma cara taciturna, o norueguês fechado a tamanha descontração. Eles conheciam de tempos idos, era o defesa central já um trintão e o médio um adolescente imberbe quando se cruzaram no Real Madrid, em 2016, passado muito revelador acerca do presente que os reuniu.

Findos 120 minutos de jogo repleto de pára-arrancas na sua área, de perseguições a avançados ou de corridas extemporâneas para se antecipar a adversários que julgavam estar a receber a bola à vontade, Pepe estava, como se nada fosse, no abismo dos penáltis. A experiência dá isto às pessoas, no caso do defesa central é factual: há oito anos, ele estava no último jogo da Liga dos Campeões decidido no periclitante momento mais individual do futebol, então foi na final madrilena entre o Real e o Atlético. Nesse ano, ouvindo o corpo a berrar-lhe com mazelas, outro tipo que esteve no Emirates, na terça-feira, disse que tinha de “ser honesto” com ele próprio porque “para jogar neste clube, tens de ser o melhor da tua posição”. Quando Mikel Arteta se retirou, Pepe andava a conquistar Champions.

Tinham e têm a mesma idade, mas a inclemência do tempo que raramente mostra piedade concedeu outra paciência ao defesa central, que chegou a Londres bem-disposto, empurrado pela relativização que a sapiência da idade dá às pessoas, a capitanear o FC Porto contra o Arsenal treinado pelo ex-médio espanhol. Um reformou-se por achar não ter nível, o outro continua a jogar no pico do nível em contexto de futebol português que por um triz não eliminou o líder da Premier League no seu quintal, a anulá-lo no jogo corrido se bem que tapar os espaços do seu lado do campo tenha limitado os dragões a não serem capazes de se espreguiçarem, por aí além, para perto da área contrária.

A guardar intempestivamente o seu retângulo, munido da técnica de desarme imaculada com o passar dos anos, lá esteve Pepe, a fazer a sua parte para, 110 jogos depois, uma eliminatória da Champions (se contarmos com finais) voltar a entroncar nos penáltis. Quando a encara um jogador que tem a bola, o seu timing e técnica de desarme, dedicando à função o pé mais próximo do adversário sem aparente destrinça de eficácia, continuam desenferrujados. A forma como controla desmarcações, se antecipa a quem julga ir receber um passe à vontade, ganha a frente e resiste a livrar-se da bola, calmo perante o instante de pressão, viram-se em Londres. O sangue em ebulição na guelra também.

Aos 112 minutos, acabado de fazer mais um pique de corrida e de apagar um fogo junto à área, virou-se para o canto onde estavam os adeptos do FC Porto e celebrou a interceção de bola como se estivesse na ressaca de um golo marcado. Cerrou os punhos e abanou os braços, intenso nos gestos, um vulcão de emoção com rugas a manifestar a margem boa do pêlo que tem na venta. Ali estava o mais velho futebolista que não um guarda-redes a jogar na Liga dos Campeões, e a marcar na Liga dos Campeões, a viver o último hurra na prova com a genica de um rapazola que nunca a experimentou. Pepe não o sabia, ainda lhe faltava ser provavelmente o mais efusivo dos dragões a festejar cada pontapé convertido dos 11 metros, quando já todos estavam abraçados no meio-campo.

Em Pepe, conceda-se, houve e haverá os ocasionais excessos de intempestividade. Tão evitáveis quanto incontornáveis quando dele se fala, o defesa central levá-los-á consigo quando resolver arrumar a sua carreira. As patadas deixadas nas costas de Casquero, a apetência pelo choque a doer e o ir para os duelos, por vezes, decidido a deixar marca, não o definem, mas também não são apagáveis. Longe ficou o tempo em que a passagem do capitão do FC Porto pelo futebol seria imaculada, nem as suas duas horas contra o Arsenal o foram: no golo sofrido, poderia ter antevisto a nesga de espaço que o dotado Ødegaard deslindou para lançar Trossard, a quem Pepe já ocorreu tarde; depois, uma hesitação sua a meias com Diogo Costa quase custava outra ida da bola às redes.

O cerne do defesa nascido em Maceió e chegado a Portugal com 17 anos poderia ser encarado como falível e permeável ao erro, à semelhança de qualquer pessoa a habitar na Terra, para lhe ser louvado o finca-pé ao tempo, a sua revolta contra o esvaecer da luz: esta foi a sua 19.ª época a jogar a Liga dos Campeões e nas últimas 21 edições só não participou em duas. Voltando ao paralelismo com Mikel Arteta, seu congénere na idade, só à quinta temporada a treinar o Arsenal o espanhol conseguiu estrear-se na prova como técnico.

Pepe é intempestivo e divisivo e quiçá não seja consensual, mas ao fintar o tempo com a eficácia que não se deixa driblar em campo, mesmo com falhar aqui e ali pelos 41 anos que tem, mostra como é, provavelmente, a maior prova de longevidade na mais relevante competição de clubes que o futebol português já teve. As suas 120 partidas (é o 22.º com mais jogos) nunca irão alcançar as 183 de Cristiano Ronaldo (o líder). O capitão da seleção nacional, pai de filhos e com tantas épocas no limite dos píncaros da exigência que o manteve a produzir golos em massa, a discutir Bolas de Ouro e ganhar Champions em série, porventura, também já não será tão esponjoso como ainda é Pepe para absorver, feliz da vida, os requisitos de andar a jogar a cada três dias na Europa e a cuidar ao milímetro de tudo o que entra nessa exigência.

Porque ele lá estava em Londres, sorridente e bem-disposto, a falar a jornalistas logo após a derrota e apesar de “muito triste por ser eliminado”, afável no desabafo de que “nessa idade” procura “viver o dia a dia e fazer as coisas direitas”. Pepe explicou à “TNT Sports” que “este corpo já não tem 30 anos ou 20” e “temos”, disse assim, no plural, como se muitos soubessem o que é, “de saber escutá-lo e ouvir a nossa energia interior para ver se conseguimos ir mais”. Aos 41 anos, confessou ser “um apaixonado por este desporto” e não poderia ser de outra maneira: “Todo aquele esforço que muita gente diz ser invisível, fora das quatro linhas, é tudo: um bom descanso, uma boa alimentação e uma boa preparação fazem parte, o trabalho de prevenção também. Quem gosta, como eu gosto, dedico-me muito a isso para hoje poder ser um exemplo dentro de campo, mas fora também.”

Esta sexta-feira há convocatória para a seleção nacional, a derradeira antes de, no verão, Roberto Martínez afinar quem vai ao Europeu. Permita o corpo que diz estimar, Pepe deverá lá estar para uma quinta presença no torneio.

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