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Duarte Gomes

Duarte Gomes

ex-árbitro de futebol

Jogador do Salgueiros que encostou a cabeça a um árbitro foi absolvido. E a FPF repreendeu o árbitro, decisão inacreditável de tão má

Duarte Gomes critica a decisão do Conselho de Disciplina da FPF, lamentando como “um órgão com esta responsabilidade não entenda que o árbitro está para o desporto como o juiz está para um tribunal”. O antigo homem do apito teme que “quando ‘amanhã’ voltarmos a ver situações como esta (vão acontecer), saberemos que a responsabilidade não será apenas de quem deslizou em campo, mas também de quem normalizou o deslize”

Duarte Gomes

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Recordam-se daquele episódio em que Amadu Turé, jogador do Salgueiros, teve dois momentos infelizes num jogo de futebol, primeiro agredindo um adversário e depois encostando a cabeça à do árbitro? Foi durante um Salgueiros-Marítimo B, disputado há cerca de dois meses e meio.

Pois bem. Soube-se agora que o Conselho de Disciplina da FPF decidiu absolver o atleta de qualquer agressão, punido-o com um jogo de suspensão... por palavras. Vou repetir: o Conselho de Disciplina, depois de todas as diligências que tomou (e que passaram seguramente pelo visionamento de imagens), entendeu que aquela atitude não teve relevância disciplinar.
Mas fez mais: conseguiu considerar que a interrupção definitiva do jogo por parte do árbitro tinha sido totalmente injustificada, atribuindo ainda a pena de “repreensão por escrito” ao juiz do encontro (no caso, por atraso no envio do relatório).
Em resumo: Amadu Turé foi absolvido de agressão, depois do que fez; o árbitro foi castigado devido a incumprimento de um formalismo técnico. Percebem a gravidade do que estamos aqui a falar?
Como o tal encosto de cabeça não resultou em sequelas físicas nem pareceu muito duro ou impetuoso, vá, o Conselho de Disciplina entendeu que não se passou nada. Isto é francamente censurável e é, seguramente, uma das deliberações mais injustas que vi por parte de um órgão disciplinar. É quase lesa-futebol, por passar para o exterior mensagem perigosa.
O que se pode inferir dali é que um comportamento de um atleta em relação a um árbitro, que implique contacto físico, mas que não resulte em ossos partidos, fraturas expostas ou sangue a jorrar... é ‘normal’. Faz parte. Não é um gesto agressivo.
Mais. É o juiz visado quem tem que se pôr a pau, porque se a queda não parecer adequada ou se o momento não for muito dramático, perde o direito de terminar o encontro. Um direito que as leis de jogo expressamente lhe concedem caso entenda não estarem reunidas condições para a sua continuidade.
É, de facto, inacreditável de tão mau.
O que aconteceu não defende o desporto nem protege os seus valores universais. O que aconteceu é a antítese do que se espera, porque o que se espera é travão a fundo e não incentivo.
A questão era até fácil de analisar:
Um jogador, seja ele quem for, que tenha gesto ameaçador, agressivo ou potencialmente agressivo em relação a um árbitro (repito, a autoridade máxima em qualquer atividade desportiva), tem que ser responsabilizado, mesmo que a sua atitude responda a um instinto primário, a uma precipitação momentânea. Mesmo que não existam consequências físicas. Mesmo que o contacto não pressuponha assistência médica ou internamento hospitalar.
A sanção disciplinar deve existir e, claro, ser proporcional à dimensão do ato. Que os adeptos ainda vejam a figura do árbitro como o eterno mau da fita, o provocador sistemático, autor de tudo o que é perverso no jogo.... vá que não vá. Agora, que um órgão com esta responsabilidade não entenda que o árbitro está para o desporto como o juiz está para um tribunal... enfim.
Pensem comigo: se, num julgamento, alguém decidir encostar a cabeça à do magistrado, só porque não gosta do que ele disse ou decidiu... o que acham que acontece? Será que alguém vai julgar o juiz pela forma como caiu, ou pelo atraso na leitura da sentença, ou vão focar na ação, na causa, no momento feio, responsabilizando o autor?
Caramba! Será que é assim tão difícil de entender? Ninguém pode “atacar” fisicamente um juiz, um árbitro, a figura da autoridade, em lado nenhum! No tribunal, no ringue, no pavilhão ou no relvado! É zona vedada! Proibida! Está para lá de qualquer liberdade possível! Não pode acontecer! Nunca!!
E essa verdade vale para aqui, como tinha que ter valido no caso que envolveu Matheus Reis (que fez muito pior a João Pinheiro, sem nenhuma consequência disciplinar) e nos casos de Marafona, Luisão ou até do nosso conhecido Tiquinho Soares, que apanhou oito jogos de castigo por algo exatamente igual, feito no Brasil.
Não se trata de ‘matar’ pessoas de bem que tiveram momentos infelizes. Trata-se de responsabilizá-las pelas suas condutas, tal como eu me responsabilizo (e já fui responsabilizado) pelas minhas.
A justiça desportiva ficou com a sua imagem de credibilidade beliscada e isso é incontornável. Quando ‘amanhã’ voltarmos a ver situações como esta (vão acontecer), saberemos que a responsabilidade não será apenas de quem deslizou em campo, mas também de quem normalizou o deslize.
Estamos todos sujeitos à crítica e qualquer órgão disciplinar é parte fundamental da justiça e da verdade que se espera no futebol. Nunca pode ter perceção exterior diferente.