Imaginem a arbitragem como um edifício. Um edifício que, como qualquer outro, deve ter uma base sólida e segura. Uma base que suporte o peso e a dimensão de tudo o que é construído depois. Em cima. Acima.
A analogia, que vale para tantas áreas das nossas vidas, faz sentido porque ilustra a importância dos alicerces no crescimento de quem arrisca abraçar a carreira. Neste caso, essas raízes, essas fundações, moram nos múltiplos campeonatos distritais organizados, com mérito e sacrifício, pelas vinte e duas associações de futebol do país.
Na arbitragem ninguém começa a meio ou no topo. Ninguém tira cursos intensivos na FPF ou Liga Portugal: tem que se começar por ‘baixo’. Lá em baixo. Nas bases, no futebol de formação, nos regionais.
Hoje em dia, qualquer jovem de 14 anos pode frequentar o curso de árbitro, que não sendo sempre gratuito (é inacreditável que ainda não o seja), permite-lhe o conhecimento básico das regras e o saber prático suficiente para lançar-se de apito numa mão e cartões na outra.
Esse arranque é gradual e adequado ao seu grau de crescimento: primeiro vêm os jogos dos mais pequenitos, depois outros mais a doer, com outra dinâmica e intensidade. A evolução é paulatina, mas mais rápida do que o desejável, porque a escassez de recursos é uma realidade incontornável.
Numa altura em que tanto se fala do crescimento maciço do número de atletas federados (e bem), porque é que não se consegue ter a capacidade de ‘seduzir’ mais pessoas para a arbitragem? Porque é que não se faz também desse um objetivo a atingir?
Para mim, é muito claro: não há vontade política nem investimento. Investimento sério, ponderado, planeado. Não há pensamento estratégico sobre isto. Não há atuação abrangente, coordenada e ponderada, que fale a uma só voz.
Nestas coisas, é preciso identificar o problema, pensar na solução e atuar. Atuar com amplitude e firmeza. Com consciência e consistência.
Tenham noção que não há aqui nenhuma narrativa fatalista. A verdade dos factos é indesmentível: todos os fins de semana há centenas (!) de jogos oficiais sem árbitros nomeados, porque os poucos que cada associação dispõe não conseguem dar ‘vazão’ a tanta exigência (mesmo arbitrando seis e sete jogos por fim de semana).
Meus amigos, este é um problema sério, que origina depois outros que bem conhecemos: o cansaço origina falta de qualidade, intolerância, más decisões e essas geram discordância, desconfiança, violência. É uma bola de neve que está longe de começar aí, mas que também começa aí.
O futebol que se joga em 2023 e que orgulha tanta gente pelos números crescentes que ostenta, não é compatível com a continuidade de um drama que existe há décadas e que não parece incomodar ninguém.
É preciso fazer melhor! É preciso aprender a recrutar mais. É preciso saber manter. É preciso cativar gente para a arbitragem, arranjando estratégias para que não desistam ao primeiro insulto, ao primeiro percalço.
A solução não é fácil, mas passa por pôr mãos à obra, abrir os cordões da bolsa e envolver todos na solução: clubes, associações de futebol, escolas, autarquias locais e FPF.
Se o aliciamento for maior, se a perspetiva de carreira estiver bem definida, se a sensação de segurança aumentar, se os pais dos mais novos pessoas perceberem que a arbitragem pode ser uma excelente alternativa à carreira ‘menos conseguida’ de jogador, os números sobem.
Mais quantidade é, neste caso, sinónimo de mais qualidade porque quanto mais árbitros, maior a possibilidade de filtrar os mais qualificados. Aqueles que tecnicamente provam mais. Aqueles que, em termos de valores e conduta humana, mostram-se diferenciados. E sim... nesta carreira, qualidade humana é tão importante como competência em campo.
Em princípio de ano, fica o apelo a quem tem obrigação institucional de definir estratégias e de mudar um paradigma que tem décadas de estagnação e esquecimento.
A arbitragem é o tal edifício enorme, que não começa no topo, por muito que seja esse que aguce o apetite de todos.
É preciso cuidar da base.