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No banco com os misters

“Na primeira vitória, os jogadores estavam a pedir prémio ao presidente. O Jackson pediu para falar... e deixou-nos com pele de galinha”

Rui Sá Lemos tem apenas 30 anos mas, depois de aprender o que é a periodização tática, na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto - onde faltou às aulas todas do primeiro ano para acompanhar apenas as lições do professor Vítor Frade -, passou por todos os escalões de formação do FC Porto, incluindo a equipa B, até se juntar a António Folha, treinador que acompanhou durante época e meia no Portimonense e para quem só dispensa elogios, tal como para os jogadores Jackson Martínez e Tomás Esteves, exemplos perfeitos de superação no futebol

texto Mariana Cabral e fotografia Rui Duarte Silva

Rui Duarte Silva

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Estás agora a tirar o IV nível de treinador. O que é que já aprendeste?
Aprendi que um treinador tem de conseguir criar empatia e comunicar bem. Nós estamos uma semana juntos, treinadores de diferentes contextos - um vem de Inglaterra, outro vem de França, outro vem da China, outro vem do sul do país, outro vem do norte do país -, e conseguimos estar todos juntos, damo-nos bem. É porque os treinadores para serem bons e de alto nível, profissionais, têm de ter empatia e saber comunicar. Quando falo nisto, é também para fazer uma ponte para o lado de comunicar bem com os jogadores, comunicar bem com a imprensa e comunicar bem com a direção.

O facto de estares a tirar o IV nível quer dizer que vais ser treinador principal?
Sim.

A curto prazo?
Sou novo, porque tenho 30 anos, mas comecei a treinar aos 18 anos e, felizmente, tenho tido a sorte de conviver com excelentes pessoas e com gente com muito background, treinadores e jogadores, que me têm permitido cultivar as minhas raízes como treinador. Não digo que vá ser agora, porque acho que o mais importante é fazer as coisas com responsabilidade, não é fazer as coisas com pressa. É fazer as coisas com responsabilidade e bem.

Mas começar aos 18 anos parece sinal de alguma pressa.
Não, não foi pressa. Até foi uma situação engraçada. É como o jogo, tem origem num contexto. Aos 17, 18 anos entro na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto e já vou com as referências de treino e de jogo da periodização tática. Vou para lá totalmente motivado a querer saber mais sobre aquilo. Porque o [José] Mourinho teve sucesso com aquilo, o FC Porto teve sucesso com aquilo e eu queria aprender aquilo. Quando chego à faculdade, fico a saber que o professor Vítor Frade, que era quem ensinava a periodização tática, estava lá a lecionar pelo último ano. Então isso espoleta-me um outro processo: eu abdico de ir às minhas aulas todas e passo a ir só às aulas do quinto ano do curso, que eram as aulas que ele dava, e falto às minhas aulas todas. Porque entro ali sabendo que tinha um ano para aprender a periodização tática e foi isso que me motivou a entrar naquela universidade.

Então, no primeiro ano de faculdade, chumbaste?
[risos] É provável.

Mas valeu a pena?
Claro que sim. Tudo começa numa atitude arriscada de faltar às aulas para ir a outras. A partir daí, recebo um convite para fazer um estágio na Dragon Force, vou lá fazer e sou contratado na época seguinte. Uma pessoa muito importante nesse processo, que eu não posso esquecer, foi o Miguel Lopes, que era o coordenador da Dragon Force e que decide que eu devia ser contratado. Ele, além de ser o coordenador, era o treinador dos sub-13 e quando me contrata coloca-me a mim a treinar os sub-13. Isso foi o passo mais importante, que me permitiu na época seguinte ser contratado para a formação do FC Porto, que era então liderada pelo Luís Castro.

Qual foi o primeiro impacto ao ouvir o professor Vítor Frade?
Coincide muito com a opinião de todos os treinadores e pessoas que andam no futebol que o ouviram: é muito difuso. Há o sentimento de "não entendo nada do que ele está a querer dizer, não entendo as metáforas, não consigo acompanhar, estou totalmente fora disto". Mas, depois, com a aculturação, com o tempo, as coisas começam a ligar-se, começam a fazer sentido.

A partir de então a periodização tática passa a ser a tua base metodológica enquanto treinador? Ou na formação ainda não?
Na formação também, porque a periodização tática é aplicável quer à formação, quer ao alto rendimento. Temos inúmeros exemplos disso. O que é importante perceber sobre a periodização tática, é que ela não se pode resumir à ideia de que é uma teoria. Entendes? Nada que seja só uma teoria tem valor. É o impacto que essa teoria depois tem na aplicação prática. Pondo de lado a questão do jogo, que a periodização tática tem, e a questão do treino, que a periodização tática também tem, através de princípios e vetores, pensando só na forma como uma teoria influencia a prática, como tu vais depois pensar em tudo... Por exemplo, aquela ideia de, no campo, se mostrar os exercícios em papel antes de ir fazer o exercício no contexto prático. Juntar os jogadores, pegar num quadro tático ou num papel e explicar que vamos fazer este exercício. Quer com jovens, quer com profissionais, isso pode não fazer muito sentido. Porquê? Porque os jogadores têm uma inteligência muito mais intuitiva, muito mais emocional, para eles é muito difícil absorverem essa informação que estás ali a passar-lhes sem perderem o foco, sem se distraírem. Se já para nós, que não somos jogadores e que se calhar temos uma vivência maior e um foco atencional maior ao que são as palavras e os discursos, estar atento durante 5 minutos ao que alguém está a dizer é difícil, imagina para alguém que é um talento e que vive à base do intuitivo, da sensação, do feeling. Então, uma das coisas que eu percebi ao entender a periodização tática foi que o treino tem de ser muito mais apreendido pelos jogadores e isso influencia a forma como tu tens de comunicar para eles no campo. Entendes? Aquela história de fazê-los vivenciar as coisas, de fazê-los descobrir, isso não é teoria, isso faz mesmo sentido.

Rui Duarte Silva

Não achas que - se calhar enquanto os treinadores são mais novos, porque depois com a prática acho que isso vai mudando - um treinador se sente menos treinador quando entrega esse tipo de abertura aos jogadores? Sente menos influência direta, pelo menos.
Percebo, sim. Acho que o treinador deve ter perfeitamente definido aquilo que é a ideia dele e aquilo que tem como ideia para o exercício. Agora, a forma mais eficiente para o transmitir para o jogador se calhar é outra. Imagina um jogo com duas balizas e com uma outra baliza, mini baliza, no meio do campo. Eu acredito que a forma mais eficiente para transmitir os objetivos deste exercício não é juntar os jogadores antes, explicar que aquilo é bom, sem bola, para eles fecharem o meio, ou, com bola, que é bom para atraírem para o meio e depois explorarem outro espaço, etc. Acredito que o mais importante é: "Malta, há duas balizas, há uma baliza no meio. Cinco para um lado, cinco para o outro, vamos jogar". E se calhar na primeira pausa: "Ok, o que é que estamos a sentir? O que é que podemos tirar daqui? Onde é que a bola pode entrar mais vezes? Que espaço é importante defender?" Este tipo de comunicação é mais...

Mais a perguntar do que propriamente a responder.
Sim. É mais condizente com o tipo de jogador que estamos a treinar.

Assim obrigas o jogador a refletir?
A refletir e a viver e a sentir. Uma coisa é receber informação verbal e depois vai lá para dentro executar, outra coisa é ele fazer parte do processo e da construção de alguma coisa. Ele próprio vai dizer-te que é importante fechar o meio e que as coberturas têm de ser mais próximas, ou que aquele gajo está muito longe de ti, por exemplo. São eles que vão vivenciar isso, vão ajustar e vão ter ao encontro da tua ideia. Acho que este é um dos pontos mais decisivos para pores uma equipa a jogar bem e a ganhar.

Mesmo a um nível profissional? Ou seja, uma abordagem como a que descreves não irá demorar mais tempo a produzir efeitos do que uma mais direcionada?
Não, não. Uma coisa é não perderes o controlo da tua ideia, quando fazes isso a nível profissional, porque o facto de teres jogadores profissionais, com muitas vivências, é uma vantagem, porque eles vão dar-te background, mas também pode ser uma desvantagem, por eles terem diferentes opiniões para a mesma coisa, ou mesmo um jogador com diferentes opiniões, porque com um treinador fez de uma forma e com outro fez de outra. Tu, aí... Por isso é que é muito decisivo tu teres 100% definido para onde queres ir. Por exemplo: se tu achas que é melhor o médio estar numa certa posição e um jogador vem argumentar - porque ele vai argumentar, o jogador é cada vez mais inteligente e mais experiente -, tens de estar preparado para lhe explicar o porquê da tua ideia, o porquê de ser assim naquele momento e naquela equipa. Se não estivermos para explicar isso, perdemos logo credibilidade.

Rui Duarte Silva

Voltando um pouco atrás, à periodização tática. Não sei se leste um estudo que foi divulgado na semana passada numa revista polaca (AQUI), que sustenta que a periodização tática é apenas uma teoria, não tem comprovação científica.
Primeiro, não li. Aproveitei a quarentena para não estar parado, para continuar a desenvolver-me, e conheci pessoas novas, com muita qualidade, de diferentes países, treinadores da Austrália, como o Luc Jeggo, dos EUA, de Inglaterra, da Polónia, como o Slawomir Morawski, e claro que toda a gente aporta diferentes tipos de identidades e ideias. A metodologia de treino em Portugal dá resultados, produz bons jogadores e produz bons treinadores, porque produz treinadores que pensam o jogo, que têm capacidade de analisar o jogo e que têm capacidade de pô-lo em prática através de um bom processo de treino. E essa é a base da periodização tática. Agora, se toda a gente vai concordar? Não acredito. Se toda a gente tem de concordar? Também não acho que tenham de concordar. Mas que eu acho que tem base científica, isso acho que tem.

O Carlos Freitas, diretor-geral do Vitória SC, em entrevista recente à Tribuna Expresso, disse que havia uma excessiva importância da periodização tática em Portugal e por isso tinha ido buscar um treinador austríaco para os sub-23 do clube. Disse também que deve dar-se mais importância à componente física dos jogadores. O que pensas sobre isto?
O que é que eu penso? Primeiro, penso que o Carlos Freitas é um excelente profissional, que já produziu excelentes trabalhos em grandes clubes, como no Sporting, no estrangeiro, no Braga e agora no Vitória. Depois, o que posso dizer... Por exemplo, o Klopp conseguiu construir uma equipa muito diferenciada, muito intensa, e de certeza também muito suportada por aquilo que foram as vivências do Pepijn [Lijnders, adjunto do Liverpool] e do Vítor Matos [adjunto do Liverpool] no FC Porto e na metodologia que lá era exercida. Portanto, acho que é perfeitamente compatível. A metodologia da periodização tática existe no sentido de potenciar uma ideia de jogo como prioridade, mas se a ideia de jogo for intensa, pressionante, agressiva, de reagir à perda intensamente, de estar constantemente em pressão no jogo, acho que a periodização tática também é aplicável, se é esse tipo de ideia de jogo que queremos. O que acho importante vincar, repito, é que nem as pessoas têm de estar agarradas à periodização tática como uma teoria, porque ela é mais do que uma teoria, é algo que influencia depois a forma como vês muitas coisas, porque passas a ver as coisas de forma ligada, sistémica, nem as pessoas têm de estar agarradas a uma ideia de que a periodização tática tem a ver com um jogo de posse, circulação e ritmo lento. Nada disso. A periodização tática é uma metodologia para nós pormos em prática e exercitarmos uma forma de jogar definida pelo treinador. Não estou 100% dentro do processo do Liverpool, mas tenho a certeza que quer o Vítor quer o Pepijn têm a sua influência no processo de treino da equipa e sei quais são as ideias deles.

Se um treinador jovem quiser saber mais sobre a periodização tática, deve fazer o quê?
É quase um paradoxo mas acabamos por ser melhores treinadores de formação depois de sairmos da formação do que enquanto lá estamos, no sentido em que percebemos como é que os jogadores se desenvolveram, quem se desenvolveu mais e quem se desenvolveu menos. O desenvolvimento do jogador faz-se quando o contexto da equipa dele estiver melhor, ou seja, quanto mais vezes conseguir ter uma equipa que remate mais, que pressione bem, que ataque mais vezes, que tire cruzamentos, que o leve ao desenvolvimento individual... Assim, e tendo uma atitude proativa, ele vai desenvolver-se melhor. Um treinador jovem tem de perceber que o jogo é jogado pelos jogadores, não pelos treinadores, tem de perceber que tem de fazer um caminho e o caminho na formação é potenciar e aprender com os jogadores e com os treinadores que tem à volta. Tendo também regras dentro da equipa, para que quando não joga não vá a correr para os braços do pai porque é escudado e cria problemas para os treinadores - nada que acontecesse no FC Porto, nesse aspeto era tudo exemplar. Por exemplo, eu sei que tive a sorte de estar numa boa formação, num ano treinei o Fábio Vieira e o Vítor Ferreira, no ano seguinte o Dalot e o Diogo Costa, depois o Fábio Silva e o Tomás Esteves... O que sentes é que o facto de estares em constante vivência com aqueles jogadores, assim como com os treinadores - na altura o Pepijn, o Fábio Moura [também ex-adjunto do Portimonense] e o Vítor Severino [adjunto do Shakhtar Donetsk] - este processo todo de envolvência é que nos forma como treinadores.

Carlos Rodrigues

Mencionaste muitos jovens, todos eles com muita qualidade. Há alguém que possas destacar?
Acho que há muitos, por isso seria injusto destacar só um. O que acho que não é injusto é falar sobre a história de um jogador que já está na primeira equipa do FC Porto, o Tomás Esteves. Treinei o Tomás nos sub-11 e ele tem uma história que é fantástica, do ponto de vista da superação e da transcendência. O Tomás treinava no Olival, que é em Gaia, e vivia e andava na escola em Arcos de Valdevez, que fica a cerca de 100 km de distância. A vida dele, penso que dos sub-10 aos sub-15, foi esta: acordar às 7h da manhã, ir para a escola, sair da escola a correr, às 16h ou 17h, para ir para o treino, numa carrinha do pai, ele e o irmão. Chegava ao Olival e lanchava a correr, para subir para o treino, enquanto o irmão mais novo, o Gonçalo Esteves, ficava a descansar na carrinha, porque ia ter treino a seguir. O Tomás saía do treino às 20h, ia para a carrinha fazer os deveres e jantar, enquanto o pai esperava pelo Gonçalo, que ia treinar das 20h às 21h30. Depois o Gonçalo descia, o pai pegava neles, chegavam às 23h a casa e no dia seguinte já estavam outra vez a acordar às 7h da manhã. Isto fez-me concluir duas coisas: aqueles que chegam lá, ao patamar em que o Tomás está - e ao que o Gonçalo se calhar também vai chegar - , têm como única opção o futebol. Porque se não fosse assim... Alguém ia fazer aquele tipo de sacrifício se não tivesse uma paixão enorme, um desejo enorme de ser jogador? Eles chegam aos 14, 15 anos, esses miúdos para quem o futebol é a única opção, e não querem saber de mais nada. Não querem saber das amigas, de sair à noite, disto ou daquilo. Só querem é uma bola e ir fazer um joguinho, se calhar jogar contra a parede, se tiver de ser. Depois, são esses que marcam pela diferença. O Fábio Vieira também é outro desses.

Achas que isso ainda se mantém nos dias de hoje, em que a sociedade está diferente e necessariamente o crescimento e a educação dos jovens também?
O futebol está a mudar e o mundo está a mudar. Pensando na formação, na geração que há agora, do digital, é a que vamos ter daqui para a frente, se calhar de forma ainda mais acentuada. Isto já não vai voltar atrás no tempo. Já não podemos estar a perder mais tempo a pensar como é que lhes vamos tirar os telemóveis, porque isso já não vai acontecer. Então, há que adaptar a nossa estratégia. Por exemplo, quando eles não jogam, de certeza que vão continuar a receber mensagens de muita gente no telemóvel, mal sai o onze e percebem que não vão jogar. Nós temos de conseguir lidar com isso e temos de conseguir, mesmo neste contexto, comunicar com eles e entrar no coração deles. Agora, acho que há um princípio muito importante nesta questão: a inovação e o rendimento andam de mãos dadas sempre. Mas tem de ser o rendimento a puxar pela inovação. Certo? Não pode ser a inovação a condicionar o rendimento. Ou seja, não é por eles terem este tipo de educação digital agora que nós teremos de alterar os valores fundamentais.

Como disseste, passaste por muitos escalões, desde os sub-11, até à equipa B - que é uma experiência muito complexa, porque está sempre dependente da equipa A - e até ao futebol profissional. Que diferenças foste notando nesse percurso?
Foi um crescimento quase linear, fui sentindo que ano após ano o nível ia aumentando de complexidade. Ano após ano, teria de estar melhor para corresponder à realidade. Tive mesmo muita sorte em conviver com excelentes treinadores e com excelentes jogadores, que me fizeram perceber o que é importante.

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Como é que conheceste o Folha?
Foi na formação do FC Porto. O Folha foi para adjunto da equipa B, depois para adjunto da equipa A e depois ficou como treinador principal dos sub-19, o único a conseguir ganhar o campeonato nacional de sub-19 duas vezes seguidas em 20 e tal anos. Comecei a trabalhar com ele aí, nos sub-19. Esse foi um período muito importante para mim, porque vinco muitas das minhas vivências naquilo que foi trabalhar com ele. Trabalhei também com o Luís Castro, no meio desse período, porque eu estava na equipa técnica dos sub-19, com António Folha, Fábio Moura, Vítor Severino, Paulinho Santos, Rui Teixeira, e depois é precisa uma pessoa na equipa B, na equipa técnica do Luís Castro, com as valências que eu ia conseguir aportar, mais em termos de análise do jogo e da preparação para o jogo, portanto nessa época fico nas duas equipas.

Isso foi quando o FC Porto B ganha a II Liga?
Sim, foi muito bom. Trabalhar com o Luís Castro foi muito bom para mim, porque ele é um excelente gestor de processos, é um excelente líder, comunica muito bem e aprendi nesse contexto a elaborar a minha informação e o meu discurso de forma muito mais concisa e muito mais objetiva. O FC Porto B ganha a II Liga nesse ano e a equipa sub-19 ganha o campeonato nacional de juniores, portanto foi bom porque estive envolvido em ambos. Depois o caminho seguiu.

Mencionaste o Paulinho Santos, que é um treinador que anda mais nos bastidores: que impacto tinha no balneário?
Muito, muito. Muito importante na estabilidade emocional da equipa. Uma excelente relação com o treinador, uma excelente relação com os elementos diretivos e uma excelente relação com os jogadores, com quem consegue dar um murro na mesa quando é preciso dar um murro na mesa e a quem se consegue aproximar no final de um treino em que o jogador está mais em baixo. Isso é fundamental e, lá está, isso também faz parte da periodização tática, porque olhamos para as coisas como um todo.

Hoje em dia parece que já é fixe jogar em 3-4-3, mas vocês no FC Porto B do Folha já o faziam.
[risos] É, agora já é fixe. Acho que isso está a evoluir e as equipas têm dinâmicas cada vez mais interessantes, com transição de sistemas, porque atacam num e defendem noutro, e até há diferentes variantes do 3-4-3. Nós, naquela altura, fizemos isso no que foi uma decisão corajosa do treinador, do Folha, porque não era muito comum. E isso acaba por demonstrar um bocado aquilo que ele é: um excelente treinador, com grandes ideias, com uma personalidade muito autêntica e que tem estilo. E a melhor forma de representar isso foi a forma como ele pôs a jogar essa equipa. Vamos a factos, que eu gosto de ser conciso e objetivo: nesse ano, a equipa B tem muito talento à disposição, tem Diogo Leite, Diogo Queirós, Diogo Costa, Diogo Dalot, Galeno, Fede Varela, André Pereira, Bruno Costa... muito talento à disposição. E, nesse ano, a melhor forma de potenciar esses jogadores todos foi criar uma forma de jogar bastante, como dizer, desafiante. Porque o Diogo Leite lá atrás jogava em um para um contra o ponta, tinha de cobrir muito espaço, os centrais tinham muitas funções de cobertura por fora e à frente; os laterais, como o Dalot, tinham de andar muito, e ele jogou à direita e à esquerda, em zonas interiores e exteriores, cruzava de pé direito e de pé esquerdo, fazia golos; o Galeno, na frente, tinha espaço para desequilibrar; o André baixava para tocar; o Bruno pegava no meio, pegava por fora, o Rui Pires e o Luizão, que também jogavam ali, tinham as suas funções de pressão e construção... Ou seja, toda a gente era, de certa forma, um bocado condicionada pela estrutura, que levava os jogadores ao limite, mais do que aquilo que eles estavam à espera. Foram levados ao limite e corresponderam totalmente - mérito para quem teve esta ideia.

Quando foram para o Portimonense, inicialmente também tentaram implementar o 3-4-3, mas ainda no início da época mudaram para o 4-3-3.
Sim. Quando entrámos no Portimonense, lá está, contexto: temos de entender que a forma de jogar é importante mas tem de se adaptar ao contexto. Ou seja, queríamos ter uma forma de jogar ofensiva, olhos nos olhos com os adversários, foram essas as ideias do treinador António Folha.

E teve?
E teve. Existe muito a ideia no futebol de que o futebol é um momento. Ok, o futebol é um contexto emocional e costuma dizer-se essa frase, mas não podemos esquecer os factos. A segunda época se calhar não correu tão bem, porque as coisas não encaixaram tão bem, e o lado do calendário também não ajudou. Aí entende-se o porquê de se dizer que o futebol é um fenómeno de causalidade não linear, ou seja, nós mesmo fazendo o mesmo processo, com outro tipo de condições iniciais, porque apanhámos logo no início o FC Porto, o Benfica, o Sporting, o Braga, tudo de seguida, isso criou logo um sentimento de que o campeonato estava a correr mal, entendes? Isso é totalmente diferente de começar com outro tipo de sorte no calendário. Uma das situações que não foi tão positiva na segunda época foi essa: o sentimento inicial que se criou, fruto do lado do futebol que tu não controlas.

De uma época para a outra houve muitas entradas e saídas de jogadores, o que imagino que também terá influenciado.
Também, também. Pensando em factos, vês que na primeira época há um nome em comum a tudo isto: primeira vitória em 30 anos na I Liga contra o Sporting, primeira vitória de sempre na I Liga contra o Benfica, melhor pontuação da história do Portimonense na I Liga, aumento de 1500% em termos de vendas do clube. Há um nome em comum a isto tudo...

Nakajima? Estou a brincar, já percebi que é o Folha.
[risos] Também teve muito mérito e muito peso, mas o Nakajima não jogava sozinho, jogava com o Paulinho, com o Jadson, com o Jackson, com o Dener, com muita gente à volta.

Rui Duarte Silva

Voltando atrás, o que aconteceu então na mudança do 3-4-3 para 4-3-3?
Ah sim, era a questão do contexto. Quando chegámos, tínhamos uma noção da equipa e entendemos que poderia funcionar. Olhámos para jogadores que se calhar não estavam tão bem cotados no momento, no futebol português, e pensámos "este gajo pode encaixar aqui e outro ali"...

Por exemplo?
Um exemplo desses foi o Manafá, que era um extremo, se calhar o quinto ou sexto extremo, e nós, nós não, o treinador é que o transformou num lateral ofensivo, que levava a equipa para a frente, e ele acabou por valorizar a carreira dele e ser transferido [para o FC Porto], foi mais um. Mas chegámos ali à 4ª jornada e o plantel mudou um pouco porque recebemos muitos médios e achámos que fazia mais sentido, dado o número de jogadores à disposição para certas posições, passar a jogar em 4-3-3 e não continuar em 3-4-3. Jogámos num 4-3-3 que depois, como já muitas equipas fazem, se desdobrava em 3-4-3 com bola. Porque, com bola, tínhamos o Tormena, o Jadson e o Ruben, e o Manafá, que era o nosso lateral esquerdo, funcionava como extremo. E o Tormena agora está no Braga.

Então as ideias podem ser sempre as mesmas em qualquer sítio, mas o sistema depende dos jogadores que tens. É isto?
Acho que é uma conclusão justa.

Na segunda época em Portimão as coisas não correm tão bem e acabam por sair em janeiro de 2020.
Sim. Acho que foi mesmo aquela questão do impacto do calendário, os resultados iniciais que tivemos. Isso acabou por não criar uma química muito boa. Experimentava-se uma coisa... Não pelo lado dos jogadores, porque os jogadores foram sempre excecionais em termos de empenho e dedicação. Mas as coisas não corriam bem. E o treinador decidiu não ser um problema e decidiu sair, à 17ª jornada, quando a equipa estava um ponto abaixo da linha de água.

O Folha quando anunciou a sua saída disse que não era "um rato"...
[interrompe] Não quero falar sobre isso.

E disse também que tinha havido colegas treinadores a ligar para o presidente do Portimonense, enquanto o Folha ainda lá estava. Lembras-te disso?
Sim, lembro-me. O que posso dizer é que uma coisa eu sei: os valores do Folha não são esses. Por isso é que acredito que ele tenha dito isso, para marcar claramente a diferença. Porque o António Folha chega à I Liga sem empresário. Entendes? Sem nenhum empresário a ligar para os presidentes para colocá-lo lá. Foi pelo fruto do trabalho dele e pela visibilidade que teve ao ganhar quatro anos seguidos no FC Porto. Teve convites de vários sítios, no final da época, e optou pelo Portimonense. Não foi através de nenhum empresário.

Vocês continuam a ser uma equipa técnica ou ficaram livres, depois da saída do Portimonense?
É assim, nós temos uma relação emocional muito forte. Nós já trabalhamos juntos há muito tempo. Há a questão do treinador português, que é muito valorizado lá fora. Porquê? Porque as pessoas que contratam o treinador português, para todo o tipo de contextos, sentem que aporta qualidade no trabalho, qualidade no empenho e marca a diferença. Sem contar com as pessoas que estão em equipas técnicas portuguesas, ainda temos o Vítor Matos no Liverpool, o Simão Freitas que está a coordenar o maior clube de formação na 1ª Liga na China, o Jorge Maciel no Lille... Ou seja, tudo gente que saiu e que singrou e que está a demonstrar qualidade no seu trabalho.

Por que razão não voltaram ao ativo no início desta época?
Ah, isso não sei. Se calhar os projetos que apareceram para o mister não corresponderam à ambição e ao percurso dele nos últimos anos. Uma coisa importante é... Deixa-me só fazer esta metáfora aqui. Tu tens um clube em Inglaterra e para fechares a contratação de um jogador, às vezes, isso depende do estado de humor de um investidor que está no Texas, por exemplo. Ele vai ter de validar o valor da transferência para tu conseguires assinar com um jogador. Isto demonstra o quê? Demonstra que as estruturas dos clubes estão a crescer muito. Significa também que temos de pensar, quando estamos dentro das estruturas dos clubes, de forma empresarial, porque agora um clube quase tem uma empresa dentro dele, porque tem várias áreas e várias especialidades que funcionam para a equipa de futebol ganhar e para o clube ser produtivo. Portanto, quem está lá tem de tomar decisões racionais. Esta metáfora para vir desembarcar nisto: o futebol é emocional, o futebol é o momento, mas quem está nos clubes também tem de olhar para aquilo que são os resultados de forma fria, com realidade, não só de forma emocional.

Rui Duarte Silva

Disseste há pouco que trocaste experiências com treinadores de outros países. Aqui em Portugal costuma dizer-se que os treinadores portugueses são os melhores do mundo. Concordas?
Acredito que os treinadores portugueses, para onde vão, marcam a diferença, porque têm ideias desenvolvidas e conseguem colocá-las em prática, e se calhar chegam lá e encontram problemas e encontram soluções para esses problemas. Os treinadores portugueses são proativos. E depois têm uma identidade de jogo que é diferenciada. Tu vês, por exemplo, o trabalho que o Luís Castro está a desenvolver, chegou lá ao Shakhtar e a equipa mantém uma identidade muito forte. Vês o Paulo Fonseca e a identidade da Roma, o Jorge Jesus... O treinador português tem uma forma de estar no futebol que é muito proativa. Agora, não acho que se deva só circunscrever esta qualidade ao português, porque há quem também tenha este tipo de qualidade. O importante é ser proativo, viver o contexto e analisá-lo, independentemente das decisões que tenhamos de tomar. O futebol é um paradoxo e os treinadores portugueses são os melhores do mundo. A melhor maneira que tenho para demonstrar isso é com o exemplo de um dinamarquês: Rasmus Ankersen.

Dos dinamarqueses do Midtjylland?
Sim, que também está no Brentford. No Midtjylland, o trabalho fala por si: era uma equipa de sexto ou sétimo lugar e agora é tricampeã, acho eu. Mas o exemplo que quero dar é o do Brentford. Não é um treinador português, mas é pela proatividade da ideia, que é o que eu acho que o treinador português também tem como melhor qualidade. O Rasmus Ankersen chegou ao Brentford e viu que, estando em Londres, por muito bom trabalho que se fizesse na academia, para formar jogadores para a equipa principal, os jogadores daquela zona são sempre todos aspirados pelas equipas com mais recursos financeiros, Chelsea, Tottenham, Arsenal, Crystal Palace - não tem hipótese nenhuma. Ele tem de mudar o paradigma. E é isto que eu acredito que é a grande qualidade do treinador português. Então o que é que ele fez lá: acabou com a academia, fez uma equipa só, antes da equipa principal, uma equipa que vai de sub-17 a sub-23. E assim consegue atrair os jogadores que provavelmente iria perder para os sub-17 ou sub-18 das redondezas, porque agora consegue garantir-lhes que a presença naquela equipa implica um X número de jogos ou treinos na equipa principal, portanto é praticamente uma equipa B na qual um jovem de 16 anos pensa: "Eh lá, posso ir para o Brentford porque estou mais próximo de jogar no Championship e quem sabe, no futuro, na Premier League, do que noutro clube em Londres em que o caminho pode ser mais longo e mais difícil, com mais concorrência."

Em Portugal também já começamos a ver projetos com perspetivas diferentes: o do Vitória de Guimarães, o do Famalicão, mesmo o do Portimonense, com uma série de jogadores japoneses, por exemplo.
Sobre o Vitória de Guimarães, só vejo por fora, mas penso que a ideia deles é boa, porque é conseguir entrar em mercados que são inatingíveis, como o mercado francês e o alemão, através da antecipação, indo buscar jogadores mais jovens. Se calhar os jogadores que foram buscar agora, se fosse daqui a dois anos já não os conseguiam ir buscar. Prepararam-se bem, anteciparam-se e assim conseguiram trazê-los, como foi o caso com o Marcus Edwards, por exemplo. Em relação ao Portimonense, é um clube que tem muito boas infraestruturas, que em cinco anos teve um crescimento exponencial, passou de um campo de batatas, podemos dizer assim [risos], que era o centro de treinos e o estádio, para ter o melhor relvado da I Liga, para ter um centro de treinos, para estar a construir outro ao mesmo tempo em que está a aprimorar o primeiro... Isso demonstra a visão futurista do clube e o facto de estar muito bem alicerçado nas vendas que faz e que lhe permitem manter a ambição de ser um clube da I Liga.

Há pouco, quando falámos dos jogadores do Portimonense, não falámos de um dos mais importantes: o Jackson Martínez.
Excelente, excelente. Excelente homem, excelente profissional e um exemplo para todos os que coincidiram com ele lá no Portimonense. Posso contar uma história sobre isso. Ele chega à 5ª jornada e nós temos um jogo, já não me lembro contra quem [Vitória de Guimarães], em que estávamos empatados quase no fim e depois marcámos o 3-2 e ganhámos o jogo. Foi a primeira vitória da época e os jogadores, aqueles mais jovens, no fim estavam muito entusiasmados, a mandar aquelas brincadeiras e a gritar para o presidente: "Prémio, prémio". O Jackson tinha chegado uma semana antes e, portanto, sem necessidade, sem preponderância - não é sem preponderância, porque preponderância ele teria sempre -, mas se calhar ainda sem aquele à-vontade para intervir naquele momento de euforia, mas ele levanta a mão e pede para falar. E diz assim: "Os prémios vão chegar com o tempo, o dinheiro vai chegar com o tempo. Aquilo que não pode acontecer é isto: eu entrei aos 70 e tal minutos, tínhamos acabado de sofrer o 2-2, e eu vi na cara de alguns que já não íamos conseguir ganhar. Já não vi entusiasmo e já não vi crença. Por isso, aquilo que eu quero pedir a todos é isto: temos de correr até ao último minuto, seja qual for o resultado." Eu ouvi aquilo e fiquei com pele de galinha, porque aquilo foi totalmente antagónico ao momento emocional que se estava a viver ali, mas foi tão na mouche, tão perfeito para cultivar o espírito que tínhamos de ter naquela equipa. E pronto, a partir daí, foi o que foi. Muito bom.

Aitor Alcalde Colomer

Como é que ele aguentava os treinos e como é que o geriam?
Ele estava em sofrimento. Lembro-me que ele chegou, fez o primeiro treino e, no caminho para o autocarro, perguntei-lhe: "Então, como é que conseguiste ultrapassar a dor?" E ele respondeu assim: "Eu não ultrapassei a dor. Eu agora aguento a dor". Portanto, essa é uma condicionante dele. Ele tem uma dor que, com o devido descanso, lhe permitia recuperar e estar disponível para o jogo e jogar. O que é que nós fazíamos em termos de treino: dávamos descanso e só o colocávamos nos contextos em que nós, sincronizados com o departamento médico, sentíamos que eram os melhores para ele estar presente. Às vezes treinava a meio da semana, que era onde fazíamos de situação de maior orientação coletiva e isso era bom para ele. E depois também era colocado, ou nesse dia, ou noutro dia, num exercício de finalização, por exemplo, porque isso é o pão para a boca dos pontas de lança. Se eles não os fizerem, sentem que não estão bem. Era assim que nós o preparávamos para os jogos.

Ou seja, ele não treinava o que os outros treinavam.
Não, treinava muito menos.

Achas que o adepto comum percebe que há jogadores que têm de ser diferentes dos outros?
Lá está, para o adepto comum há a questão do emocional. Se nós só virmos o futebol pelo lado emocional, pelo momento, chegamos a esse tipo de conclusões. Neste caso, quem estava por dentro entendia o contexto total e via o quê: que ele só tinha condições de ajudar a equipa se fizesse este tipo de preparação. E, quando estava em campo, podias ir aos dados do GPS e ele era dos que corria mais e tinha mais acelerações de alta intensidade. Ou seja, o empenho dele era sempre muito grande.

António Folha começou a carreira de treinador como adjunto do Penafiel, em 2005/06. Depois passou pelos sub-14, sub-15 e sub-19 do FC Porto, até subir para a equipa B portista, em 2016/17

António Folha começou a carreira de treinador como adjunto do Penafiel, em 2005/06. Depois passou pelos sub-14, sub-15 e sub-19 do FC Porto, até subir para a equipa B portista, em 2016/17

Filipe Farinha

Como estavam distribuídas as funções na vossa equipa técnica, liderada pelo Folha?
O Folha era o treinador principal e era o líder do processo e orientava tudo em termos de ideia de jogo e do que queria construir no treino. O Fábio [Moura] era o número dois, sendo responsável pela área do que construir em termos de treino para chegar à ideia de jogo e também em termos de definir e operacionalizar a estratégia para o jogo. Eu, nesse lado de operacionalizar e definir estratégias, e também de criar contextos de exercício, e depois a fazer a ligação com os nossos observadores - no primeiro ano, o Bruno Lopes, muito boa pessoa e muito bom profissional.

Depois foi treinar os sub-23.
Exatamente, na segunda época. E depois tivemos o Manuel Fonseca como observador. Eu fazia essa ligação para canalizar a informação que vinha dos treinadores e da observação, para depois prepará-la e apresentá-la aos jogadores. E tínhamos também o Ricardo Pessoa e o Pedro Silva, como treinador de guarda-redes.

Que peso tinha essa observação dos adversários na vossa forma de trabalhar?
O peso da observação na semana passava por manter sempre a lógica proporcional pelos dias todos. Ou seja, a nossa ideia é o mais importante, mas a nossa ideia vai jogar contra uma outra ideia, portanto, se calhar a nossa construção a três, com o Tormena, com o Jadson ou o Lucas, e com o Rúben, num jogo contra uma equipa que nos pressionasse com dois avançados, era um tipo de construção, mas num jogo contra uma equipa que nos reconhecia essa qualidade e já nos mandava três à pressão, se calhar já tínhamos de dar soluções aos médios, ou para aparecer por fora, ou para aparecerem por dentro, para conseguirmos fugir disso. Ou seja, não vemos as coisas de forma estanque, temos a nossa ideia, que vai confrontar outra ideia, e que nós vamos ter de preparar para o dia de jogo. Fazíamos isso à quarta, à quinta, à sexta e ao sábado, ou seja, nos dias todos. Não guardávamos um dia exclusivamente para a estratégia.

Agora a quantidade de informação e de softwares tecnológicos são uma ajuda para os treinadores?
Falei desta questão lá no curso de treinadores. Cada vez mais, por causa desta era do digital, somos bombardeados com o crescimento, por exemplo, de empresas de análise de jogo, de softwares de análise de jogo, até há equipas que já são guiadas pelo data, pelos dados. O que eu gostaria de deixar presente é isto: as metodologias de treino, as que agora vamos utilizando e discorrendo sobre elas, têm 20 anos e só agora começamos a aferir bem e a fazer as coisas se calhar de forma muito mais concisa do que fazíamos há 20 anos. A informação, os data, apareceram no futebol há cerca de cinco anos, há pouco tempo. Não podemos tomá-los já como conclusivos e como produto final, cinco anos depois, quando as metodologias demoraram tanto tempo a serem aperfeiçoadas. Estive a pesquisar sobre isso e dou um exemplo: em muitas redes e plataformas digitais de observação de jogadores que existem, pesquisando pelo tackling... Por exemplo, vamos lá pesquisar um bom defesa que seja bom no tackling. Mesmo as fórmulas que usam para aferir a percentagem de eficácia do tackling nem são um produto final, às vezes temos de desconfiar. O exemplo que te queria dar era este: pegando nessa variável, eles vêem os tackles que o jogador ganhou e dividem pelos tackles que ele ganhou a somar com os tackles que ele perdeu. Ou seja, ganhou 60, perdeu 60, então vai dar uma média de 50% de eficácia. Mas, muitas variáveis que existem no jogo não estão contidas nesta questão e as conclusões que vais tirar pegando nessa variável, com essa fórmula que é utilizada, vão enganar-te. Utilizando essa fórmula, este estudo foi feito na Premier League de 2018/19, o melhor defesa era Martin Kelly, do Crystal Palace, isto quando tinhas Van Dijk e outros excelentes defesas naquela prova. Depois, colocando algumas variáveis nesse tal fórmula - e o estudo foi este -, como faltas quando se tenta fazer uma interceção, o que não estava contido, ou o tentares ir para um tackle e eles fazerem uma tabela e passarem por ti, porque isso também não conta como um tackle perdido... Aplicando estes novos indicadores, esse tal jogador que era o melhor defesa passou para 23º da lista. Entendes? Conclusão: o data é muito importante...

Mas a análise qualitativa é mais importante?
Sim e antes disso até: o data é muito importante, vai crescer ainda mais, porque ainda tem um potencial enorme, e temos de lhe dar tempo para crescer, enquanto vamos retirando a informação útil, mas temos de ser nós a manusear o data, ou seja, o rendimento é que controla a inovação, não é a inovação que nos controla a nós. E depois há a tal análise qualitativa.

Recentemente os expected goals (xG), por exemplo, ganharam mais preponderância e utilidade.
Sim, mas também esses vão melhorar. Porque tu vais à Goalpoint e, no mesmo jogo, o xG é um valor, e no Wyscout é outro. Portanto, temos de dar tempo para isto crescer.

Como é que defines o tipo de futebol que há em Portugal? Há um futebol semelhante ou há muitos diferentes dentro da I Liga?
Acho que o futebol na I Liga tem um excelente nível. Os treinadores preparam muito bem as equipas e têm boas ideias. É natural que com mais qualidade à disposição consigas ter uma ideia de jogo mais atrativa do que uma ideia de jogo mais pragmática, com menos recursos. Por exemplo, Vítor Oliveira: excelente trabalho em todos os clubes por onde passou, conseguindo potenciar ao máximo os jogadores que tem à disposição. Enquanto não houver centralização dos direitos de TV e tivermos de andar neste ritmo, enquanto os clubes precisarem de vender para sobreviver, a margem de crescimento é apertada.

Se fosses para um clube com poucos recursos e pouca qualidade individual, como jogarias?
Acho que teria de pensar que a minha ideia tem de ser produtiva o suficiente, aperfeiçoá-la ao contexto, para cumprir os objetivos, porque isso é o mais importante. No futebol o importante é cumprir os objetivos definidos porque o futuro de muitas pessoas depende disso. Mesmo com menor qualidade individual pode ter-se mentalidade vencedora.

Para fechar, agora que estás desempregado, que perspetivas futuras tens?
Olha, vou partilhar aqui uma história engraçada que aconteceu agora no curso de treinadores, onde nos fizeram exatamente essa pergunta sobre o futuro. Eu era dos últimos a responder, porque começaram da esquerda para a direita, e só tinha o Hugo Freitas, adjunto do Custódio, atrás, portanto eu era o penúltimo a responder. A pergunta era: onde é que nos vemos daqui a 10 anos? E eu a pensar: "Mas o que é que eu vou responder a isto..." É claro que uma pessoa se vê sempre no melhor sítio possível, mas não queria ser presunçoso ao ponto de dizer que queria ganhar isto e aquilo, portanto estava ali na dúvida sobre o que iria responder. À minha frente estava o Jorge Couto, que é adjunto do Boavista e por quem tenho muito carinho, ele tem uma personalidade fantástica, é uma pessoa excelente. Ele deu uma resposta que me serviu. Ele disse: "Como fui campeão como jogador no Boavista, daqui a 10 anos gostava de ter o prazer de fazer do Boavista campeão outra vez como treinador adjunto, porque o Boavista tem condições e potencial para isso". E eu a pensar: "Ok, já sei como me vou pirar da resposta". E é a mesma forma como me vou pirar agora. Virei-me e disse: "Prof, já tenho tudo definido: se o Jorge Couto quer fazer do Boavista campeão daqui a 10 anos, eu quero estar com ele" [risos].

E agora a resposta a sério...
Sair da zona de conforto. Preciso de desafios para continuar a evoluir e para chegar ao topo, que é onde quero chegar e ficar lá por por muitos anos.