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No banco com os misters

Uma dupla de sucesso, das pastelarias na Margem Sul ao futebol de alto nível na Roma: “O Paulo tem uma paciência de santo para me aturar”

Nuno Campos é adjunto de Paulo Fonseca há 15 anos, desde o tempo em que ambos tinham pastelarias na Margem Sul para ganhar a vida, enquanto treinavam nas divisões inferiores, e largaram tudo por uma paixão comum: "O Paulo dividiu comigo o salário que lhe ofereceram e passámos os dois a ganhar pouco, mas felizes por estarmos a trabalhar juntos num campeonato profissional." Em longa entrevista à Tribuna Expresso, o treinador adjunto da Roma, que confessa ser "um chato", recorda a carreira de uma dupla inseparável, que aprendeu com as dificuldades no FC Porto, usando-as para ganhar praticamente tudo no Shakhtar Donetsk, antes de chegar a Itália, onde o campeonato apresenta novos problemas táticos, mas a paixão se mantém a mesma: "Quando vamos jantar fora, já nos aconteceu vir à mesa o dono do restaurante pedir para falarmos mais baixo, porque as pessoas à volta ficam incomodadas. Porque, quando há conversa de futebol, há discussão"

Mariana Cabral

Nuno Campos e Paulo Fonseca estão na Roma desde o início da época 2019/20, depois de três anos no Shakhtar Donetsk

Gabriele Maltinti

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Estás em Itália?
Sim, estou Roma, sozinho, porque a minha família está em Esposende.

Como está a ser o isolamento?
Não é um momento fácil, nem para mim nem para ninguém, porque estamos confinados às nossas casas. Saio às vezes um pouco, mas só aqui junto ao prédio, temos de respeitar o que nos foi imposto, porque o mais importante é passar este momento. Faço algum exercício e vejo alguns jogadores que nos possam interessar, faço isso em conjunto com o Paulo. Às vezes vamos também trabalhando todos em conjunto, mas naturalmente que é um trabalho totalmente diferente do que estávamos habituados. É um momento difícil para todos. Estando aqui sozinho acho que é um pouco mais difícil, mas acredito que mesmo para uma família que esteja em casa não é fácil. Não estamos habituados a isto, mas temos de ser fortes e contribuir, à nossa maneira, para ultrapassar este momento.

Conseguem fazer algum trabalho com os jogadores?
Sim, o Nuno Romano está com essa parte mais física e trabalha todos os dias com os jogadores. Eles fazem videoconferência conjunta nas plataformas que existem, também em consonância com o departamento médico do clube, porque há também jogadores a recuperar de lesões. É um trabalho diário e é mais o Nuno a estar encarregue desse trabalho, mas recebemos as mensagens e entramos online.

Não há ainda previsão de regresso?
A informação que temos é que no dia 18 o governo vai tomar uma decisão. Possivelmente poderá começar a haver treinos de forma individual. Gostaríamos que fosse antes, porque, segundo consta, o campeonato pode recomeçar nas primeiras semanas de junho.

É pouco tempo de treino.
Sim, para treinos individuais e, depois, mais tarde, alguns treinos coletivos. Espero que possamos treinar um pouco antes. A Roma tem essa intenção e não é só o nosso clube, penso que todos os clubes aqui em Itália, porque é necessário começar a fazer alguma coisa. Embora os jogadores treinem em casa, mentalmente é completamente diferente treinar no clube, mesmo sendo um treino individual.

Neste isolamento tens estado ativo nas redes sociais, particularmente no "Quarentena da bola", até a falar com outros treinadores.
Mais do que é costume [risos].

O José Boto descreveu-te ali como "uma das pessoas em Portugal que melhor conhece o jogo e que melhor o explica". Não tens pruridos em partilhar a vossa forma de trabalhar?
Não, não temos esse tabu de não partilhar o nosso pensamento sobre o futebol. Acho que as pessoas hoje em dia têm acesso a muita informação, mas, por vezes, fazem uma ideia errada de alguns treinadores. Acho que quando demonstramos o nosso pensamento sobre o jogo, revelamos exatamente por que caminho queremos ir. E depois a nossa equipa, no jogo, mostra se é verdade o que nós dizemos. Eu tive grandes conversas com o Boto, porque ele é uma pessoa muito entendida na área e eu gosto de falar com pessoas que percebam o que estamos a dizer, porque se formos muito antagónicos na forma como vemos o jogo, é difícil termos uma conversa e eu prefiro não entrar em conflito com ninguém, cada um defende o que quer. Naturalmente, tenho mais facilidade em falar com pessoas que partilham da minha visão do jogo. O Boto é uma delas, porque gosta de equipas que assumam o jogo, que sejam protagonistas, que valorizem a bola, que valorizem o jogador. Nós não escondemos as coisas. Os jogos hoje são abertos, nós trocamos os vídeos dos nossos jogos com os nossos adversários, porque a liga italiana tem um programa que permite o acesso a todos os jogos, portanto hoje não há muito para esconder. Antigamente era um tabu falar e mostrar alguma coisa, mas acho que hoje não deve ser, porque a partilha de opiniões não significa que o outro vá conseguir contrariar o que nós pensamos. Por isso é que nós estudamos os adversários e também temos algumas nuances para tirar partido do adversário fazer isto ou aquilo. Penso que, acima de tudo, está a confiança que temos no nosso trabalho, porque quando a temos e olhamos muito para dentro não temos problemas em expor aos outros o que pensamos. Acho que vem daí esta nossa forma de ser e de falar com os outros. O Paulo é igual. O Paulo vai às conferências de imprensa e aqui em Itália os jornalistas, até é engraçado, fazem imensas perguntas táticas, e eu acho que até fica muito mais fácil para um treinador responder a este tipo de perguntas. E o Paulo explica tudo. E bem. Inclusive muitas vezes dá o onze que vai jogar no dia seguinte ou então dá alguns jogadores sobre os quais eles perguntam diretamente. A nossa forma de colocar a nossa equipa a pensar o jogo deve, por si só, ir resolvendo todos os problemas que o adversário vai colocando. Isso permite que, depois, mesmo que o adversário tente colocar determinadas dificuldades, nós já saibamos como ultrapassá-las. Esse é o nosso foco: os jogadores, lá dentro, saberem como ultrapassar as diferentes dificuldades. Respondendo diretamente ao que perguntaste: não temos qualquer problema em revelar o nosso trabalho, acho até que faz parte do nível a que chegámos, para podermos partilhar com aqueles que aprender.

No outro dia ouvi o Abel Ferreira dizer que tinha passado umas horas ao telefone contigo. Essa partilha também se faz entre treinadores?
Não falo de forma próxima com muitos treinadores, mas, com os que falo, falo muitas vezes e falo de tudo, como eles falam comigo também. O Abel é um deles e não tenho qualquer problema em partilhar com ele e com os outros, porque falamos a mesma linguagem, temos ideias parecidas. Com o Abel tenho algumas discussões, entre aspas, durante muito tempo, com alguns detalhes sobre o risco de fazer certas coisas. Reconheço que, se calhar, tenho um bocadinho mais de risco no meu pensar do que o Abel. Não quero, com isto, que o Abel faça como eu lhe digo, mas ele também não vai conseguir que eu faça como ele diz [risos]. É uma discussão sã e tenho todo o gosto em fazê-la, porque o Abel é uma pessoa que adora falar de futebol. E também gosto imenso dele como pessoa, temos uma relação próxima já há muitos anos, porque ele trabalhou próximo de nós e fez um estágio connosco quando ainda estávamos no Paços de Ferreira.

Há pouco falavas da grande quantidade de informação que existe hoje em dia sobre o jogo. Se calhar são essas conversas que transformam a informação em conhecimento adquirido e que o sedimentam.
Sem dúvida. E até diria mais: demasiada informação, para quem não tem certezas, só vai complicar. O que é que quero dizer com isto: quando nós temos um caminho em que já temos poucas dúvidas e, no nosso caso, o nosso modelo de jogo vai sempre crescendo, mas estamos só a falar de detalhes em cima de detalhes, não nos causa nenhuma diferença ler muitas informações, mas nós não aproveitamos todas as informações, muitas delas simplesmente não usamos. Quando ainda temos muitas dúvidas, porque estamos a começar a carreira e ainda não temos certezas sobre o nosso modelo, porque ainda não está sedimentado, então nós podemos correr o risco de, com tantas informações divergentes, não sabermos às tantas por que caminho seguir. Isto nas informações ao nível tático mas também ao nível das outras coisas, porque hoje em dia fala-se muito de PNL, de parte física e tudo e mais alguma coisa. Há muita área de conhecimento que, na prática, por vezes pode ajudar, mas, se for em excesso, também prejudica. Há imensas áreas em que o próprio treinador acaba por ter de fazer um filtro, porque não pode chegar com aquela informação toda aos jogadores, porque eles não vão perceber, não vão ter paciência e, se subirmos o nível, nem vão querer ouvir. Temos de conseguir ter a sensibilidade para nos colocarmos do outro lado. Faço daqui um apelo aos treinadores que estão a começar, porque há muitos que pensam que mais é sempre melhor - e por vezes não é, e acaba por prejudicar.

Nuno Campos tem 45 anos

Nuno Campos tem 45 anos

Paolo Rattini

Quando eras jogador que informação é que tinhas?
Quando era jogador não havia quase nada [risos]. Havia um treinador adjunto, um treinador principal, um preparador físico e um treinador de guarda-redes - e não no início, só mais tarde. Naturalmente eu corria muito e percebia pouco [risos]. Mais tarde, já quase no final da minha carreira, apanhei o [Jorge] Jesus e tive vários treinadores antes e posso dizer que aprendemos com todos, não é um cliché, porque realmente se calhar com alguns aprendemos o que não fazer. É mesmo assim. Agora, a visão que há hoje do jogo pouquíssimas pessoas tinham-na naquela altura, também porque não havia a informação que há hoje, não havia os meios que há. Hoje o vídeo ajuda imenso todos os treinadores e naquela altura não se usava. Ou, se havia, era para ver 90 minutos numa cassete VHS. Já começo a ser antigo, é um problema [risos].

Quando é que começas a perceber o jogo e quando é que começas a pensar em ser treinador?
Comecei a perceber melhor o jogo com o Jesus, no Vitória de Setúbal [2001/02]. Aí, ele mostrou-nos que o homem a homem não fazia tanto sentido, sobretudo do ponto de vista defensivo, porque ele é um treinador de zona pressionante. Começou a mostrar-nos que tínhamos muito mais vantagens em defender à zona. E ele trabalhava bem isso, o que nos obrigava a puxar pela cabeça, para pensarmos melhor o jogo, isso faz-nos evoluir. É aí que, se calhar, nasce um bocadinho a minha vontade de ser treinador, porque me fez comparar o que tinha visto com outros treinadores e faz-me pensar nas formas de desmontar os adversários. Este é o pensamento inicial de um treinador: como é que vou colocar em prática a ideia em que acredito e como vou desmontar o adversário quando ele se porta desta ou daquela forma, e como vou defender o adversário com este ou aquele comportamento. Isto deve ser a essência do treinador, questionar-se constantemente e pensar nos exercícios para tirar partido do que quer. Temos quatro momentos do jogo, com as bolas paradas são cinco, e em todos eles devemos refletir para sermos cada vez melhores em todos eles. Deve ser este o prisma inicial de um treinador. Nós podemos ver os outros todos e acho que aprendemos sempre com os outros, mas devemos pensar sempre pela nossa cabeça. Podemos entender como é que aquilo resulta para os outros, mas temos de perceber como é que vai resultar para nós, porque as equipas são diferentes, as ideias são diferentes, os jogadores são diferentes, os clubes são diferentes. Este é o pensamento inicial para um treinador que quer chegar mais longe.

No final da tua carreira de jogador, lesionas-te, arrumas as botas e passas logo para treinador?
Não, não. Fui operado ao joelho aos 29 anos, estava no União da Madeira, na 2ª Liga. Não conseguia jogar, tinha um problema com uma tendinite no rotuliano. Não quis ir jogar para um nível abaixo, porque não estava nas melhores condições e sentia que podia estar a enganar as pessoas. Então, o que é que fiz? Pus mãos à obra e abri uma pastelaria. E nunca tinha tirado um café na minha vida [risos]. Sou uma pessoa que não se fixa nas dificuldades. Se tenho um problema, procuro sempre a solução para resolvê-lo, é esta a minha forma de ver as coisas. Vi que não podia jogar, não tinha rios de dinheiro, porque na 1ª Divisão nunca fui um jogador de equipa grande e naquela altura também se ganhava menos, portanto não tinha um desafogo financeiro que me permitisse só fazer o que gostaria de fazer. Por isso abri uma pastelaria e comecei a trabalhar.

E como surge o Paulo Fonseca?
É um história interessante, porque nunca joguei com o Paulo na mesma equipa, jogámos sempre um contra o outro. Mas tínhamos amigos em comum, particularmente um em especial, que é o Quim Zé, o diretor desportivo do Mafra. Muitas vezes eu estava com o Paulo porque ou os filhos do Quim Zé faziam anos ou o próprio Quim Zé ou a esposa... O Paulo também foi treinado pelo Jesus e se calhar essa coincidência da ideia de jogo torna-nos mais próximos um do outro, em termos de pensamento. O Quim Zé permitiu-nos discutir bastante sobre a ideia de jogo e, às tantas, o Paulo precisava de um adjunto para treinar nos juniores do Estrela. Ele disse isso ao Quim Zé e o Quim Zé falou comigo, fez a ponte. Depois falei com o Paulo e foi fácil: "O que é que tu pensas sobre o jogo? Para mim, isso é o mais importante". Naturalmente, tínhamos a mesma forma de pensar, se calhar porque o Jesus tinha sido o elo de ligação. E foi assim que começámos a trabalhar juntos.

Nuno Campos e Paulo Fonseca começaram nos juniores do Estrela da Amadora, em 2005/06

Nuno Campos e Paulo Fonseca começaram nos juniores do Estrela da Amadora, em 2005/06

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E a pastelaria?
Entretanto, como te estava a dizer, tinha a pastelaria e também já tinha dois bares na praia. Mas aceitei o convite do Paulo na mesma.

Os juniores treinavam à noite?
Treinavam ao final da tarde, mas tínhamos de ir muito cedo para lá, para o Casa Pia, porque somos da Margem Sul, tínhamos de passar a ponte. Preparávamos lá o treino, já que íamos mais cedo. Depois dividíamos o campo, às vezes tínhamos de ir à baliza porque não havia jogadores suficientes, porque havia miúdos que ainda chegavam a correr da escola... Mas fizemos uma grande época na altura, até estava o [Bruno] Lage nos juniores do Benfica, com o Renato [Paiva] como adjunto. E nós andámos ali a lutar com eles para passar à fase seguinte. Acabaram por passar eles, apesar de nós termos conseguido ganhar e empatar contra eles. E empatámos os dois jogos com o Sporting. Foi um início muito giro de carreira.

Ainda te lembras do que treinaram na altura? Coisas que hoje em dia se calhar já não fazem?
Certamente fazíamos algumas, mas acho que nada de muito antagónico em relação ao que fazemos hoje. Recordo-me que o modelo de jogo era obviamente básico, não era tão elaborado, não tinha tantos detalhes. Mas já tínhamos a ideia de fazer quase tudo com bola. Nós também vivemos aquele período do [José] Mourinho, quando se fala na questão da periodização tática, e revíamo-nos naquilo, portanto o treino tinha incidência exclusivamente tática. Portanto, nesse prisma, não mudámos assim tanto, porque nunca subimos bancadas, como me faziam quando eu era jogador. Apesar de eu já ser um pouco antigo, também não sou assim tão antigo [risos].

Depois disso, vão treinar os seniores do 1º Dezembro, mas da Margem Sul até Sintra ainda é um esticão de 40 km.
Era mesmo. Nós saíamos a seguir ao almoço de casa, porque tínhamos de passar no IC19 antes da hora de ponta, quando as pessoas saíam do trabalho, e naquela altura era bem pior do que agora, era o caos. Nós treinávamos acho que às sete da noite, mas saíamos de casa logo depois do almoço e íamos para a Piriquita, porque o presidente do 1º Dezembro era o dono da Piriquita, o Fernando Cunha, e o irmão também, o Rui. Preparávamos o nosso treino na Piriquita, à mesa, a comer os travesseiros, que são fantásticos, uma verdadeira perdição. Ficámos bem mais gordos naquele ano [risos]. Era difícil comer só um. Mas foi com muito gosto que estivemos lá naquele ano, até porque houve um protocolo com o Estrela da Amadora e levámos para lá muitos juniores. Ainda hoje temos uma grande amizade com eles.

Depois passaram para o Odivelas, clube que entretanto fechou portas.
Na altura foi dar um salto, porque fomos da 3ª Divisão para a 2ª Divisão B, que agora é o Campeonato de Portugal, só que apanhámos uma fase em que o Odivelas já não tinha dinheiro. Nós fizemos um trabalho fantástico para a falta de dinheiro que havia. Tínhamos um orçamento mesmo muito baixo, levámos para lá muitos miúdos e foram eles, que ganhavam pouco, que permitiram que o projeto continuasse. Ficámos em 5º lugar, o que foi fantástico, porque o objetivo era só não descer. Inclusivamente na fase final do campeonato o presidente, o Luís Batista, mandou quase toda a gente para casa e ficámos no banco sem jogadores, para os últimos dois jogos. O [José] Marcos era o nosso treinador de guarda-redes e teve de jogar, porque o nosso guarda-redes estava lesionado e não tínhamos outro. Foi giro para quem estava a começar, permitiu-nos solidificar mais a carreira, viver na adversidade e depois saltámos novamente, para o Pinhalnovense.

Mas as coisas só começam mesmo a ser mais sérias quando vão para o Aves, na 2ª Liga: oferecem ao Paulo €2400 e ele divide-os contigo.
Estivemos dois anos no Pinhalnovense e como já era uma equipa mais solidificada na 2ª Divisão B, isso permitia-nos ter melhores jogadores. Fizemos um bom trabalho lá e ganhámos visibilidade, porque nessas duas épocas fomos duas vezes aos quartos de final da Taça de Portugal. No primeiro ano fomos eliminados pela Naval 1º Maio, que estava na 1ª Liga, e no segundo ano fomos eliminados pelo FC Porto no Dragão. E quando nós jogámos no Dragão, contra o FC Porto do [André] Villas-Boas, que era um FC Porto de posse e normalmente avassalador, ao intervalo tínhamos 50% de posse de bola. Acho que foi isto que fez com que as pessoas ficassem intrigadas, a querer saber quem eram os treinadores que estavam ali. Perdemos o jogo com dois golos do Hulk já mesmo a acabar o jogo, mas a imagem que passámos foi muito positiva. Houve logo uma série de jogadores nossos que saíram para outras equipas e nós tínhamos muitas equipas da 2ª Divisão B interessadas em nós, mas dissemos a todas que não, porque queríamos ir para a 2ª Liga. Apareceu o Aves e o Paulo foi para lá de comboio para ter uma reunião com eles. E se calhar não estaríamos aqui a conversar hoje se o Paulo não tivesse o coração que tem, porque ele fez algo que mais ninguém faria. Já teve uma proposta que era baixa, comparativamente com a maioria dos treinadores, porque vinha da 2ª Divisão B, e mesmo assim ainda dividiu aquilo comigo. Porque eles não queriam mais treinadores, tinham lá treinadores da casa, mas ele disse: "Eu venho, mas venho com o meu adjunto". E eles disseram que não tinham dinheiro para pagar a mais treinadores. "Mas eu não lhe estou a pedir dinheiro, só lhe estou a dizer que venho com o meu adjunto." O Paulo dividiu o que lhe ofereceram comigo e passámos os dois a ganhar pouco, mas felizes por estarmos a trabalhar juntos num campeonato profissional [risos]. Isto é algo que só está ao alcance de poucas pessoas, olhar para as coisas sem o mínimo de problema em termos materiais. Não é só a questão de dar dinheiro, é que aquilo nem chegava para ele nem chegava para mim, porque tínhamos as nossas famílias, mas fomos e deixámos tudo para trás. Quase pagávamos para treinar.

E a pastelaria e os bares?
Acabei por vender, porque começaram a dar prejuízo, porque não estava lá. Mas olho para as coisas sempre como oportunidades. Porque a minha vida naquela altura era confortável, em termos de negócios as coisas corriam bem. Tive um bar muito conceituado, que era o Ngaru, que tinha festas de quatro mil pessoas para a televisão, por exemplo. Só que aquilo não era a minha paixão, a minha paixão era o futebol. E quando surge uma oportunidade, mesmo a perder dinheiro, aceitei, sem pensar duas vezes. E o Paulo igual, porque ele também tinha uma pastelaria. Era a paixão que nos movia e fomos acreditando no nosso trabalho, porque acreditávamos piamente que íamos ter sucesso.

Foram então para o Aves, na 2ª Liga, em 2011/12.
Lá fomos então para o Aves e foi um ano muito bom, porque o objetivo era não descer, mas nós acabámos a época a falhar um penálti e a não subir de divisão. Lembro-me que logo no primeiro jogo que tivemos no campeonato, na Madeira, o Paulo estava desesperado com os jogadores. Chateado com eles, mesmo. No balneário, ao intervalo, foi duro.

Porquê?
Porque os jogadores na pré-época começaram a adquirir a nossa forma de jogar e estavam a fazer as coisas bem. Chegamos ao primeiro jogo do campeonato, valendo três pontos, e eles começaram a esconder-se do jogo. Já não queriam a bola, já vinha aquela velha história de que na 2ª Liga não dá para jogar. Claro que isto para nós é como estarem a dar-nos facadas. E o Paulo ao intervalo gritou com eles: "Mas vocês não têm coragem de jogar porquê? Estão a esconder-se do jogo para quê? Eu assumo a responsabilidade de tudo, não há problema. Mas não se escondam, porque isso é a pior coisa que me podem fazer". Isto é uma ideia que vem connosco desde sempre e estamos a falar de uma equipa de 2ª Liga, quando a ideia que havia em todo o lado era que na 2ª Liga não dava para jogar. "Mister, não dá, mister, você tem de se adaptar à 2ª Liga, você tem de ver que aqui não dá para isso". E nós dizíamos às pessoas: "Não temos de adaptar coisa nenhuma: os jogadores têm duas pernas, têm dois pés, são melhores do que os que tivemos na 2ª Divisão B, então vão conseguir. Mas têm de estar disponíveis para tentar." Com muito trabalho, com muita dificuldade nos primeiros tempos, mas os jogadores perceberam e foram fantásticos. Custa, no início, mas depois eles compram a ideia, porque percebem a valorização que têm. Tanto foi assim que nós, que supostamente só lutávamos pela manutenção, acabámos a lutar para subir, com uma série incrível, penso que foram 17 jogos sem perder. Os jogadores depois começam a perceber as vantagens que aquilo lhes dá e eles próprios querem ser linha de passe, querem movimentar-se como nós dizemos, acreditam na ideia e fica tudo mais fácil para todos.

Lembro-me que o Vítor Pereira, depois de sair do TSV, da 2ª divisão alemã, disse que bateu na parede muitas vezes porque não conseguiu mudar os jogadores, que não estavam habituados a sair a jogar. Já passaste por isto?
Acredito que seja verdade no caso do Vítor, claro. Há muitas dificuldades e nós tivemos estas dificuldades no Aves, não foi fácil. Os jogadores sentem-se mais confortáveis a não correr riscos, por isso, se o treinador abrir a porta a que não haja riscos, os jogadores estão como querem. Mas depois a equipa vai sofrer e o jogador também. Acredito muito que nós, com tempo, conseguimos levar a nossa ideia para a frente e depois os jogadores percebem que aquela forma é realmente a melhor e são eles que já não querem outra. Isto tem acontecido connosco em todo o lado. No FC Porto também não correu bem. Há imensos fatores para isso, nem queria entrar muito por aí. Mas isto para dar o exemplo que também não fazemos milagres. A questão é: nós temos uma forma, acreditamos cegamente nela, provamos ano após ano que resulta. Naturalmente temos de ter a disponibilidade dos jogadores, mas cabe-nos a nós, com exercícios, com vídeo, com feedback, com tudo o que temos ao nosso alcance, fazer os jogadores acreditar que este é o caminho. Precisamos de trabalhar detalhadamente e depois as coisas vão.

Paulo Fonseca e Nuno Campos entraram no Shakhtar Donesk em 2016/17, depois de um ano em Braga em que ganharam a Taça de Portugal

Paulo Fonseca e Nuno Campos entraram no Shakhtar Donesk em 2016/17, depois de um ano em Braga em que ganharam a Taça de Portugal

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Tiveram mais dificuldades?
Há sempre dificuldades iniciais. No Shakhtar tivemos muitas dificuldades quando chegámos, porque era um equipa que marcava homem a homem no campo todo. Imagine-se o que é chegar lá e dizer que agora somos zona. Ninguém acredita. O homem está ali e vão atrás do homem. E diz-se assim: "Ah, mas o Shakhtar tem ótimos jogadores". Sim, sempre tiveram. Mas marcavam homem a homem. E quando nós chegámos lá, eles não ganhavam o campeonato há dois anos, por isso é que nós entrámos. O [Mircea] Lucescu fez um grande trabalho, dentro de uma forma de jogar que é muito diferente da nossa. As pessoas acham que por serem muitos dos mesmos jogadores é o mesmo, mas não é. Foi muito difícil mudar aquela mentalidade, mas mudámos e hoje eles não vêem a coisa a poder voltar para trás. O que quero dizer com isto é que vai sempre haver dificuldades, mas é impossível no nosso caso mudarmos a nossa ideia, porque acreditamos na nossa forma de jogar, quer com bola, quer sem bola - a defesa não estar próxima da área na maior parte do tempo é, para nós, uma vantagem e é algo que acreditamos ser fundamental para o nosso sucesso. Isto para não falarmos só do momento com bola, porque há sempre a ideia, quando se fala das equipas que gostam de ter a bola, que elas não se preocupam com a organização defensiva. Não, nós preocupamo-nos muito com a organização defensiva - com os quatro momentos, aliás.

Na Roma também houve dificuldades?
Sim, quando chegámos à Roma também houve dificuldades. É um campeonato difícil, onde os treinadores preparam muito bem os jogos. Isso faz com que mudemos o rumo do nosso pensamento? Não. Podemos ter uma nuance ou outra, as características dos jogadores também podem ser importantes por causa disso, mas o grosso do nosso modelo não vai mudar nunca. Queremos ser protagonistas, queremos defender longe da nossa baliza e queremos assumir sempre o jogo para mandar nele, porque assim também defendemos melhor.

É mais fácil modelar equipas de nível baixo, em que os jogadores podem estar mais recetivos, do que equipas de nível alto, como, por exemplo, o FC Porto, onde havia jogadores com mais estatuto quando lá chegaram?
É mais fácil, naturalmente, modelar com jogadores que não tenham tanto estatuto. Acho que isso é normal. Mas há uma coisa acrescida aqui que torna as coisas muito mais difíceis: não ter tempo para treinar. Em equipas como o FC Porto e como a Roma, que jogam de três em três dias, e aqui em Itália ainda mais, porque o campeonato tem 20 equipas, os nossos treinos são treinos de recuperação, em que temos de trabalhar taticamente mas num regime sem intensidade nenhuma. Naturalmente que quando estávamos no Paços de Ferreira e tínhamos uma semana inteira de trabalho, havia muito mais tempo para passar a mensagem aos jogadores e isso é uma vantagem. Quando os jogadores têm outro estatuto, temos de saber levá-los, se calhar de outras formas, mas temos de convencê-los na mesma. Com mais ou menos estatuto, temos sempre de convencê-los. Também conheço muitos jogadores com pouco estatuto que com outros treinadores não foram convencidos a nada. Acho que isso tem a ver com a nossa forma de ser, com a nossa sensibilidade e, claro, com a nossa ideia de jogo. Sinto que, no FC Porto, não houve um problema com a personalidade dos jogadores nem com o estatuto em relação a nós, nada disso. Houve uma aprendizagem muito grande da nossa parte em muitas coisas.

Na altura bateu-se muito na questão do sistema em 4-2-3-1, por causa do duplo pivô no meio-campo.
Pois. Já tive inclusivamente oportunidade de dizer isso ao [Luís] Freitas Lobo: ele era defensor do Simeone no Atlético de Madrid, só que dizia que o Simeone jogava com um pivô à direita e um à esquerda, não era duplo. E já tive oportunidade de lhe dizer isto, por isso digo agora publicamente. Ele pediu-me desculpa, porque percebeu que estava completamente errado aquilo que ele dizia. Até porque, se há equipas que considero ofensivas no panorama do futebol mundial, são as nossas. Quando nós atacamos com os dois laterais ao mesmo tempo, por exemplo. Há poucos treinadores que tenham esta coragem. E os dois pivôs, que ele apelidava de defensivos, para mim são dois pivôs ofensivos, porque o nosso jogo passa muito por eles. Defensivos são os pivôs que só destroem e se há coisa que os nossos médios não estão lá para fazer é destruir, por isso saem valorizados todos os anos. O Seri foi parar ao Nantes e tinha proposta do Barcelona e foi para Inglaterra, o Sérgio Oliveira está no FC Porto, só para dar dois exemplos. Agora, quando se quer dizer às pessoas uma coisa e se tem a vantagem de estar num meio de comunicação como a televisão, aquilo parece que é verdade. Mas se há equipa ofensiva, e se vai haver sempre, é a nossa, porque atacamos com seis ou sete jogadores. Há poucas equipas no mundo que coloquem os dois laterais subidos ao mesmo tempo. Nós temos os alas, temos o '10', temos os dois laterais e ainda temos o avançado ali. Há equipas mais ofensivas do que isto? É difícil. Portanto, essa é uma falsa questão. Os dois médios até podem servir para atrair os adversários a abrir os espaços que queremos. Há imensas coisas que poderia explicar para as pessoas entenderem de uma vez por todas que se calhar é mais ofensivo ter dois médios de construção do que um. Porque na primeira fase de construção ajuda-nos imenso, permite-nos não sermos pressionados e termos mais bola. Noutros casos, as equipas querem ter bola, o '10' adversário anda atrás do '6' e depois jogam longo. Nós temos é de criar linhas de passe para receber a bola: quando estamos pressionados, devemos aproximar jogadores, quando estamos soltos, procuramos o espaço, seja entre linhas, seja na profundidade, seja na largura. Isto é algo que é muito claro. Pelo menos para nós, para outros se calhar não. A questão dos dois médios não vejo como nenhuma aberração, porque não faltam equipas a jogar com dois médios que são das mais ofensivas do mundo. O Guardiola só joga com um médio, mas depois joga com um lateral a fazer de segundo médio. Se tirares uma fotografia em organização ofensiva da equipa do Guardiola e da nossa, estão exatamente nos mesmos sítios, só que ele tem os dois médios a fazer como os nossos alas, por dentro, e nós temos os laterais a fazer dos alas dele. Só que as pessoas quando não entendem as coisas, criam barreiras, porque se a bola não entra, já se acha que está tudo mal.

A experiência no FC Porto acaba por ser positiva na mesma, já que o insucesso obriga a que haja reflexão?
Antes de te responder a isso, deixa-me dizer que vamos parar ao FC Porto porque fazemos algo no Paços que é histórico.

Em 2012/13, o Paços termina o campeonato em 3º lugar.
Um amigo meu diz-me que, em 40 anos de futebol português, isto foi o mais difícil de fazer: pôr o Paços de Ferreira no 3º lugar do campeonato. Obviamente fiquei hiper satisfeito com aquela campanha. Depois vamos então parar ao FC Porto e olho para os oitos meses no FC Porto, hoje, como a maior aprendizagem das nossas vidas. Se calhar os troféus que ganhámos a seguir, no Braga e no Shakhtar, tiveram muito a ver com a passagem pelo FC Porto. Porque agora, à distância, vejo isso como algo muito positivo que nos aconteceu, porque aprendemos muito, preparou-nos muito para o que vinha a seguir. Voltámos ao Paços depois do FC Porto e aí há que dar 200% de mérito ao Paulo, pela coragem demonstrada em regressar. Nós quebrámos aquele dito: "Não voltes a uma casa onde já foste feliz." Demonstrámos que podemos ser felizes mais do que uma vez no mesmo sítio. Naturalmente as pessoas ajudaram-nos imenso, temos um carinho especial por todos eles, pelos jogadores, pelo staff, sentimos que estávamos em casa. Tivemos nova época de sucesso, lutámos até à última para ir à Europa. A aprendizagem no FC Porto ajudou-nos a criar as bases para a carreira que construímos a seguir, sem nenhuma dúvida.

Em 2013/14, começaram a época no FC Porto, mas não a terminaram

Em 2013/14, começaram a época no FC Porto, mas não a terminaram

Alex Grimm

Quando ias para o FC Porto, ias treinar com alegria?
Naturalmente podemos ter um ou outro dia que custa mais um bocado [risos]. Mas o momento em que me senti pior no FC Porto não foi a ir para o treino, porque no treino eu sentia que nós íamos sempre com vontade para melhorar a equipa. O mais duro eram outras coisas. O momento em que me senti mais triste até hoje no futebol foi quando a minha filha teve de ouvir bocas no colégio, inclusive de professores. Isso foi duro, para mim e para a minha esposa. Hoje isso já está ultrapassado, a minha filha está no 12º ano e está feliz. Sabemos que o futebol é muito efémero e já tivemos muitos momentos com alegria nos vários clubes. Posso enaltecer também o grupo de trabalho do Braga, quando nós, 50 anos depois, ganhámos uma Taça de Portugal que toda a gente queria que entrasse no clube, porque era algo ambicionado há muito tempo. Aquela época correu tão bem, com os quartos de final da Liga Europa e com a cereja em cima do bolo a ser a Taça, aquele troféu que toda a gente tem sempre a ideia de conquistar - e eu já tinha perdido uma como jogador do Campomaiorense.

O Rui Quinta contou-me que quando se sentou no banco do FC Porto pela primeira vez tiveram de lhe dizer para respirar, porque ele estava assoberbado. Sentiste algo assim?
Apesar de não ter sido um grande jogador, joguei nos grandes estádios de Portugal, por isso não consigo olhar para isso dessa forma. Não senti essa diferença, porque aquilo era o meu mundo. Lembro-me que era jogador no Setúbal e falava com o Mourinho e já ele tinha o sucesso que tinha. Portanto era uma coisa normal. Naturalmente que quando entramos num jogo da Liga dos Campeões, porque aí nunca tinha estado, e ouvimos o hino, sentimos aquele frio, aquele arrepio. Mas depois o meu foco é só o jogo. Há muitas pessoas que depois me perguntam sobre o ambiente do estádio, se ouvi quando cantaram assim ou assado, mas não oiço nada [risos]. Estou tão focado no trabalho, no olhar para o jogo para ver como posso ajudar, que não vejo mais nada.

O que vês durante o jogo?
Nós temos uma forma de trabalhar em que o Paulo normalmente olha para a zona onde está a bola e foca-se ali, e eu tenho de estar focado na zona contrária, a verificar a preparação para a perda, por exemplo.

Há alguém a falar contigo durante o jogo?
Sim, o Tiago [Leal] vê o jogo lá de cima da bancada e vai falando comigo.

E filtras o que chega ao Paulo?
Sim, a nossa forma de funcionar é essa. O Paulo vê o jogo no seu todo, eu estou a olhar para a outra parte onde não está a bola, como acontece na preparação para a perda, porque nós atacamos com muitos jogadores e não pode haver descuidos, porque estamos mais expostos do que os outros, se calhar. O Tiago diz-me coisas e algumas já estou a detetar e já disse ao Paulo ou diretamente ao jogador, mas às vezes ele deteta coisas da outra equipa, ou porque houve uma alteração, ou uma mudança tática, ou está a abrir um espaço que não tínhamos pensado que fosse abrir. Às vezes dou a informação ao Paulo, às vezes não digo e espero o momento certo para depois dizer, outra vezes até digo diretamente aos jogadores, se estiverem próximos. Como nós olhamos todos para o jogo da mesma forma, fica muito fácil trabalharmos em conjunto. Lá está, o Paulo é uma pessoa fantástica, que permite coisas que se calhar outros não permitem. Sinto-me um privilegiado porque o Paulo permite-me ter a intervenção que eu quiser, como quiser, para os jogadores, para o campo ou para ele. Isso permite-me decidir como fazer. Se sinto que é algo mais macro, que é necessário corrigir algumas posições, aí posso dizer ao Paulo para que ele depois diga a dois ou três jogadores, quando houver oportunidade. Temos esta forma de trabalhar em conjunto. O Tiago fica lá em cima, mais o Luís, que corta as imagens, para depois ao intervalo mostrarmos, se quisermos.

No início dos jogos, o Tiago diz logo se o adversário está posicionado nos vários momentos como esperavam, por exemplo?
Sim, sim. Sobretudo aqui em Itália, porque há imensos treinadores que mudam de sistema de jogo sem o terem feito até jogarem contra nós. Há aqui equipas que por vezes até já jogaram em dois sistemas, nós observámos e colocámos a possibilidade de jogarem num ou noutro, inclusive passamos essa informação aos jogadores, quando apresentamos o adversário, e depois quando vemos a ficha de jogo já podemos ficar desconfiados para o caminho que aquilo vai tomar. Quando começa o jogo é que temos então a certeza e se for necessário dizemos aos jogadores, porque é totalmente diferente jogarem com três centrais ou jogarem só com dois, por exemplo. Aí, identificamos logo isso para eles saberem. Mas temos a vantagem de já termos preparado antes várias coisas, por isso quando nós lhes dizemos que o adversário está a jogar com dois ou três centrais, eles já sabem o que têm de fazer. Tal como quando dizemos, por exemplo, se eles pressionam com dois, com o avançado e com o '10', ou três, já com os alas, eles já sabem o que têm de fazer perante as diferentes situações.

Nesse caso, qual é o peso da estratégia na vossa forma de trabalhar?
Queria deixar só um aparte em relação à estratégia: por vezes confunde-se a estratégia com uma mudança radical, como o sistema de jogo ou outras coisas. Para mim, a estratégia é uma pequena nuance que permite, tal como acabei de explicar, que o jogador vá melhorar a primeira fase de construção, por exemplo, ou a pressão à frente. Isso são pequenas nuances que nos vão trazer vantagem ao jogo, não tem nada a ver com mudar tudo, porque o adversário joga assim ou joga assado. Imaginemos que eles jogam com dois avançados e nós deixamos de jogar com dois centrais e passamos a pôr três centrais. Não mudamos isso dessa forma e não considero isso estratégia, acho que isso é uma mudança radical do nosso modelo, para mim, porque o nosso modelo é baseado em coisas específicas e detalhadas em que a estratégia não muda a intenção.

Então não achas que é subverter o vosso modelo quando vão a Hoffenheim jogar, com o Shakhtar, na Liga dos Campeões 2018/2019, e mudam o vosso sistema para passar a jogar em 5-3-2? Ganharam o jogo, mas não da forma dominante como habitualmente procuram fazer.
Boa pergunta. E já o fizemos este ano, com o Parma, para a Taça - e ganhámos também. Vou explicar-te o pensamento, para te responder: tanto o Hoffenheim como o Parma tinham uma característica comum, que era a tentativa constante de explorar a profundidade ou a mudança de corredor com uma bola longa no lateral contrário projetado. Jogo interior havia muito pouco, em ambas as equipas. A grande dificuldade para nós era controlar a largura e a profundidade, porque se controlamos a profundidade, deixamos a largura, e não queríamos mudar a nossa forma de pensar em relação ao nosso ala. Porque poderíamos controlar a largura, como muitos fazem, baixando o ala a ir atrás do lateral contrário, fazendo uma linha de cinco, mas em vez de ser com três centrais, fazendo com o ala e os outros quatro defesas. Isso iria tirar-nos capacidade de atacar, daí não querermos fazê-lo essa forma. Por que razão pensámos em colocar três centrais então? E no jogo contra o Parma até foi o Cristante, que é médio, a jogar a central: porque não ia alterar muito o nosso modelo. Íamos defender curtos na mesma, mas a controlar sempre aquele último homem que é difícil de controlar, que é o lateral contrário projetado, com o nosso quinto homem. A nossa equipa não ia baixar, claro que foi obrigada a baixar muitas vezes pelo Hoffenheim, mas não queríamos baixar para perto da área, queríamos só controlar aquele passe longo, quer na profundidade, quer na largura, e essa linha de cinco a ser composta pelos três centrais permitia-nos ter o ala solto, sem estar preso ao lateral contrário, porque depois não iria conseguir atacar. Acho que resultou muito bem para os dois jogos.

Mas lembras-te do primeiro golo contra o Hoffenheim, por exemplo?
Não me lembro, relembra-me, por favor.

Penso que é o central do Hoffenheim que entra no vosso meio-campo com a bola controlada, descoberta, e coloca-a na profundidade, com um dos vossos centrais a não retirar a profundidade e o golo a surgir por aí.
Mas aí já é um erro individual.

Mas como acabas por não controlar a profundidade na mesma, a minha questão é se não seria mais efetivo ter mais gente à frente a pressionar, para que a bola não ficasse descoberta e não a lançassem na profundidade.
E nós tínhamos como objetivo pressionar, mas o problema é que a forma de jogar do Hoffenheim é difícil de contrariar, porque eles conseguem quase sempre criar uma linha de passe de forma a ficar com a bola descoberta para lançar. E o grande perigo deles não era interior, era realmente desse quinto homem que aparecia lá. Acho que isto foi conseguido, mas nesse jogo realmente fizemos uma série de coisas mal feitas, porque nós inclusive estávamos com mais um em campo e em vez de termos a bola passámos a ter menos bola, uma coisa que até é estranha. Mas, como te disse, o objetivo era controlar aquele quinto homem, porque o pressionar muito à frente com eles não ia resultar, porque eles são uma equipa muito forte fisicamente e quando batem direto, se a nossa equipa ficasse comprida eles iriam ter vantagem, até porque nós no Shakhtar tínhamos uma equipa pequena. Queríamos ficar curtos porque mesmo que eles batessem longo nós estaríamos próximos da zona da bola. Mas seria muito difícil pressioná-los de forma tão efetiva que eles nunca conseguissem colocar a bola longa. E, depois, tendo bola, queríamos na mesma circular e ter o domínio do jogo. Com o Parma foi igual e aí até conseguimos controlar melhor, porque o peso de um jogo da Liga dos Campeões também é superior ao peso de um jogo da Taça e mentalmente o jogador não sente tanta pressão e isso passa a ser mais perfeito.

Sentes isso?
Sim, muitas vezes não é só o treino, a questão mental conta muito. O jogador sente a pressão de jogar ou contra determinadas equipas ou em determinadas competições. Porque eles fazem muito bem as coisas durante uma série de tempo, às vezes, no campeonato, e depois chega um jogo da Liga dos Campeões e parece que ficam amedrontados. Isto é mental e é algo que demora a conseguir superar. Por isso é que se diz que o Real Madrid é uma equipa de Liga dos Campeões, que aquilo é a praia deles, porque eles não sentem o mínimo de receio ao jogarem na Liga dos Campeões com o Barcelona, com o Bayern, com outra equipa qualquer: para eles é sempre igual porque já estão habituados. Não se atemorizam com o jogo. Isto, mentalmente, é uma coisa engraçada. Por exemplo, nós, no Paços, quando íamos jogar ao Estádio da Luz ou ao Dragão ou a Alvalade, tínhamos mais dificuldade em descomprimir os nossos jogadores do que propriamente passar-lhes a mensagem, porque eles estão ávidos de ouvir tudo, mas precisam de ficar mais soltos para não deixarem de ser iguais ao que faziam. Sabemos que isto é mental mas é difícil de conseguir, porque advém de muitos anos de prática negativa. Quando eu era jogador, se perdêssemos por 1-0 com um dos três grandes, parecia que era uma vitória. Aquilo custava-me muito a encarar de ânimo leve, mas era o que sentíamos nas pessoas à nossa volta, inclusive nos diretores. É uma questão de mentalidade e é algo difícil de alterar. Numas equipas demora mais do que noutras, mas é preciso fazer crescer o jogador mentalmente, porque também é isso que depois o liberta para ir a qualquer campo jogar como sabe.

Contra estas equipas, como o Hoffenheim ou o Parma, que sabem que irão constantemente buscar a profundidade, mantêm as mesmas referências para a linha defensiva ou permitem que ela afunde mais do que o habitual, para haver menos profundidade nas costas?
Nós aqui em Itália tivemos de ajustar ligeiramente a referência, diria que mais uns dois passos para trás. Mas, atenção, se nós alongamos demasiado a equipa, os jogadores do outro lado são bons... O treinador até pode ter a intenção de jogar frequentemente mais longo, mas se os jogadores sentem que não conseguem, vão pôr a bola entre linhas e passam a criar-nos problemas ali. Assim controlamos uma coisa, mas se depois os adversários se apanham de frente para nós, então já temos um problema ainda mais acrescido. Temos de ter sempre um equilíbrio entre uma coisa e outra. O treinador busca sempre a perfeição, mas ela não existe. A nuance que temos agora em Itália é que, em caso de dúvida, baixam dois passos. Mas não podem estar já lá, isso é diferente. Porque se for assim os adversários matam-nos de outra forma: recebem entre linhas e viram-se para os nossos defesas, e isso é um problema ainda mais difícil de controlar a seguir. Nós tentamos trabalhar muito isso, mas, lá está, a falta de tempo para trabalhar tudo leva a que, por vezes, não sejamos tão perfeitos como uma equipa que tem a semana toda para trabalhar. Os nossos jogadores estão bem identificados e já fazemos muitas coisas bem feitas, mas ainda fica a faltar sempre muita coisa ao nível do pormenor. Agora, para te responder, se nós não controlamos bem a profundidade, é um problema, mas se nós tentamos também antecipar demasiado cedo o problema, criamos outro problema, que é o espaço entre linhas [risos]. Portanto temos ter o equilíbrio entre o melhor de dois mundos.

Achas que é possível ver o modelo logo na sua plenitude no primeiro ano numa equipa?
Não, não acho possível. Não digo que não nos aproximemos disso o mais rapidamente possível, mas naturalmente que não é o mesmo. Nós olhamos para o Shakhtar no nosso terceiro ano e não é comparável com o Shakhtar do primeiro ano. Ok, ganhámos muitos títulos, em nove títulos na Ucrânia ganhámos sete, portanto uma pessoa que olhe para os títulos não vê diferença, mas não é disto que estou a falar. O modelo de jogo da equipa está muito mais enraizado ao terceiro ano, com as indicações a poderem ir cada vez mais ao detalhe, ao contrário do que acontecia no início, em que as solicitações têm de ser mais macro, não podemos ir ao detalhe de algumas coisas quando elas ainda nem sequer estão dominadas. Inclusivamente no Shakhtar, no terceiro ano, se quiséssemos mudar o sistema de jogo, não havia problema nenhum, porque eles já estavam tão identificados com tudo que não iam deixar de fazer aquilo que nós queríamos com bola. Se fosse logo no primeiro ano, ia ser muito mais difícil, porque não estava ainda adquirido o primeiro sistema e a forma habitual da equipa. Aí, a mudança cria mais dúvidas. Após um ano, as coisas ficam melhores e isto não tem a ver com resultados, tem a ver com a nossa forma de jogar.

Em Itália há então dificuldades acrescidas porque o modelo ainda não está consolidado, mas como os adversários são tão variados nas formas de jogar, isso complica ainda mais a abordagem aos jogos?
Por exemplo, as nossas nuances diferentes na primeira fase de construção são coisas que os jogadores facilmente percebem e não olham para isso como uma grande mudança. Aqui em Itália, os jogadores estão muito habituados a trabalhar muito taticamente com os treinadores que apanham, nas várias ideias de jogo, por isso facilmente apreendem quando é para fazer isto desta ou daquela maneira. O que digo é que há coisas mais detalhadas, nas várias posições no campo, que levam mais tempo, porque não temos tempo para trabalhar tudo de uma vez. Não fazemos um jogo no treino e começamos a dar feedback de tudo, temos de selecionar as coisas. Na primeira fase de construção temos várias formas e eles já as dominam. A pressionar, também temos várias formas, em função do adversário, e eles também já as dominam. Mas, no meio destas duas coisas, há muitas outras coisas que são difíceis. Não podemos treinar tudo, porque não temos tempo, e também não podemos estar sempre a dar feedback de tudo e mais alguma coisa. É o tempo que nos faz aprimorar os detalhes. Por exemplo, se estamos a construir a três e a ser pressionados, os nossos jogadores têm de se aproximar, mas têm de entender quem é que tem de se aproximar e se se aproximar aquele, então onde é que os outros têm de se colocar para apanhar o espaço livre. Isto é uma coisa que leva tempo, porque primeiro temos de ver como nos movimentamos e onde nos colocamos para sermos linha de passe na primeira fase de construção, e só depois podemos avançar para a outra parte. Temos de ir por partes e, com o tempo, os jogadores vão conhecendo os espaços livres e vão percebendo os espaços livres e as melhores formas de se movimentarem, dependendo também da bola e do adversário, porque pode ser entre linhas, pode ser na profundidade, depende se o colega está pressionado, se não está, depende de muitas coisas. Depois de irem percebendo esses detalhes todos, vão sendo cada vez menos pressionáveis.

A equipa técnica da AS Roma, 5º classificado da Serie A

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Relativamente à construção, vocês deixam que os jogadores decidam como querem fazer ou indicam previamente qual a melhor forma para aquele jogo? Isto porque tanto variam entre a construção com dois centrais, com o médio entre os centrais ou com o lateral direito a construir a três com os centrais, sendo que nesse caso o ala desse lado fica por fora mas no corredor oposto o ala fica dentro e é o lateral a ficar por fora. E se isto tem também a ver com as características dos jogadores ou não, já que o Spinazzola e o Florenzi já ficaram a construir, mas também já foram largos, o Kluivert também já ficou por fora, mas também já ficou por dentro...
Tem a ver com várias coisas, sim [risos]. Mas eu explico. Por exemplo, se temos o Under em campo... Principalmente no início da época, sabíamos que era um jogador que, por dentro, não nos dava o que já começa a dar agora. Porque ele não compreendia o jogo interior como hoje já vai compreendendo. Também é preciso ver que tivemos muitas lesões e, por vezes, tivemos de colocar alguns jogadores mesmo sem eles conhecerem as coisas tão detalhadamente como gostaríamos. O Under, se ficasse por dentro, era fazer com que ele não tivesse sucesso, então tivemos de arranjar uma forma de ajustar isto com o nosso lateral, porque se o nosso lateral se projeta constantemente, então o Under não pode estar aberto. Começámos então a baixar o lateral direito, para construir a três, e assim já podia estar o ala aberto daquele lado, mas do outro lado ficava a funcionar tudo como estava antes. Só que com os adversários a perceberem as coisas, nós também vamos mudando. Não mudamos drasticamente, mas, lá está, vamos criando nuances para que o adversário não saiba como fazer. Quando nós sabemos que o adversário nos pressiona de determinada forma, podemos dizer ao médio - ou melhor, treinar, porque isto não basta dizer -, por exemplo, para ir receber ao corredor, com os laterais a projetarem-se. Porquê? Porque nos vão pressionar de determinada forma. Noutros jogos temos interesse em que o médio receba no meio dos centrais, ou que seja o lateral a construir. Isto tem de ser tudo trabalhado várias vezes, mas a determinada altura basta dizer ou fazer no treino de forma mais estratégica, antes do jogo, que eles já sabem. Também o dizemos na apresentação em vídeo do adversário, tendo em conta que eles fazem isto, nós iremos fazer assim, etc. Começamos logo a desmontar como vamos tirar vantagem. Mas isto para te responder: é uma indicação dada por nós, não é feito só por eles. Eles têm é de saber fazer das mais variadas formas, para depois saberem aplicar e por que razão estão a aplicar. E, se o adversário mudar, basta nós dizermos assim: "Eles agora estão a dois". E aquilo já representa um feedback que lhes diz que já vão fazer de outra forma.

Por exemplo?
A questão do lateral baixo cria superioridade no corredor lateral e, contra equipas que por dentro são fortes, mas que não sabem pressionar no corredor, tínhamos essa nuance, porque quando o médio alargava ao corredor, além do ala, tínhamos então três jogadores no corredor e as equipas acabavam por não nos conseguir pressionar. Isto são nuances que foram criadas sobretudo para nós termos a bola. Eles querem pressionar, não está fácil de sair desta pressão, então como é que nós criamos a solução para a pressão deles? Para nós, não é a bater a bola, é a criar nuances. Num jogo vai ao corredor, noutro jogo não vai ao corredor porque eles pressionam de outra forma. Isto parece difícil e confuso, mas todas as nuances têm o mesmo propósito: como é que nós vamos mandar no jogo? Nós não podemos ser pressionados. Eles vão tentar pressionar e o nosso trabalho é criar o antídoto para não sermos pressionados, porque só tendo uma primeira fase de construção muito forte é que nós vamos mandar no jogo. As equipas com uma primeira fase de construção mais fraca quando são pressionadas não conseguem jogar nem mandar no jogo. Não há linhas de passe, as coisas não são claras, é natural que batam longo. Depois se calhar até marcam golo e dizem que está tudo bem, pronto. Mas nós não temos essa visão.

Além da disputa pelos lugares cimeiros da Serie A, a Roma estava nos oitavos de final da Liga Europa, antes da paragem provocada pela pandemia

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Giampiero Sposito

Depois, já entrando em criação, há aquilo de que falaste há pouco: a preparação para a perda. Normalmente fazem-na com dois centrais e dois médios, certo?
Sim, normalmente dois centrais e dois médios, mas também já foi com dois centrais, um lateral e um médio. Lá está, porquê esta preparação para a perda assim? Quando nós projetamos dois laterais ao mesmo tempo, somos se calhar dos mais arrojados que há, porque colocamos muitos jogadores à frente da linha da bola, mas se não nos prepararmos bem para a perda, aquilo não leva ao sucesso, porque vamos sofrer golos. Aqui em Itália mais ainda, porque as equipas são muito fortes em contra-ataque e têm obviamente muito bons jogadores. Se não nos prepararmos bem, depois temos dificuldades em defender os contra-ataques. Não interessa a forma como fazemos, interessa é fazê-lo bem. Ultimamente tem sido com dois centrais e dois médios. Se tivéssemos um lateral, dois centrais e dois médios teríamos vantagens defensivas? Possivelmente, mas também nos traria desvantagens ofensivas. E voltamos à mesma questão: somos muito mais loucos por atacar bem do que por defender. Se calhar outros treinadores preferem fazer ao contrário, preferem deixar lá mais defesas, mas a nós ia faltar-nos aquele lateral para entrar, quando as equipas fecham dentro e não nos dão o espaço que queremos.

Em teoria, quando se defende, normalmente diz-se que a contenção se faz a direcionar o adversário para fora, para os corredores laterais. Quando estão a controlar o contra-ataque adversário, já que não têm laterais a defender e têm dois médios e dois centrais, a contenção ao portador é feita em direção ao corredor central, porque estão lá jogadores vossos, ou em direção ao corredor lateral?
Primeiro, se tirares uma fotografia à nossa preparação vês que os nossos centrais nem parecem centrais, quase parecem médios, porque estão tão à frente. A mensagem que passamos aos jogadores é que os adversários não podem passar por eles. Ou fazemos falta ou ganhamos a bola. Se por algum motivo os adversários conseguirem ficar enquadrados, então temos a intenção de levá-los para fora. Por norma, o nosso feedback, seja em que posição do campo for, é para não irem à queima e para orientarem para fora. Aqui tentavam muito o desarme por eles próprios e tentámos retrair isso com mais paciência, com o orientar o adversário para fora, em todas as zonas. Na preparação para a perda, os centrais estão sempre muito altos, portanto é fundamental ou fazer falta ou ganhar a bola, porque estamos ali em risco.

Imaginando que conseguiram escapar-se e ultrapassar essa pressão...
É juntar, controlar a profundidade, juntar, recuar, não ir à queima...

Os médios fazem de laterais, nesse caso?
Sim, o médio faz de lateral, porque muitas vezes tem de ir para o corredor.

E o lateral quando vier faz de médio?
O lateral quando vier pode fazer de médio ou, se há tempo, por exemplo, se a bola saiu para o outro lado e o lateral e o médio podem trocar, então trocam. Mas a intenção clara inicial na perda é ter um médio próximo de quem está livre, se não não estamos bem preparados para a perda da bola. Os médios têm uma importância muito grande na construção e depois têm uma importância muito grande na preparação para a perda. Até mais um deles do que o outro, porque muitas vezes acabamos por ficar ali só com três jogadores, porque as equipas dificilmente deixam mais de dois jogadores à frente. Já é uma loucura deixarem três à frente contra nós. Por exemplo, com o Cagliari, eles deixaram três à frente e nós fizemos golo. O risco existe nos dois lados. Se eles ganharem a bola, podem atacar com aqueles, sim, mas, se não ganham a bola, também podem sofrer golo, porque nós temos mais jogadores a atacar. Isto é o gato e o rato. É um jogo de coragem e nós gostamos sempre de ter coragem para o lado do ataque [risos]. Se calhar é uma loucura nossa. Aliás, para muita gente aqui em Itália nós somos loucos. Eles dizem-nos: "Mister, é uma loucura, vocês têm de defender com o lateral do lado contrário". E nós dizemos: "Então mas quem é que ataca, se não estamos a conseguir desequilibrar do lado da bola?" Voltamos aqui à questão da insanidade mental que temos às vezes, porque olhamos para as coisas em termos ofensivos. E bem, porque acho que o futebol tem de ser assim. Foi isto que nos fez chegar à Roma e construir a carreira que construímos até hoje. Essa é que é a verdade. Por muito que as pessoas possam ter outras ideias, há uma coisa que acho que é evidente: as pessoas do futebol e mesmo os adeptos lembram-se muito mais das equipas que são avassaladoras em termos ofensivos do que as que só ganham a defender com todos atrás da linha da bola.

Por exemplo?
Por exemplo, o Di Matteo foi campeão europeu com o Chelsea, mas o Di Matteo desapareceu do mapa. Agora, o Di Matteo pode responder-me assim: "Ganhei uma Liga dos Campeões e tu não ganhaste nenhuma ainda. Tu é que és o bom?" [risos]. Tem razão mas eu vejo as coisas neste prisma. Acho que o Paulo vai marcar algo no futebol. Acho que já está a marcar, aliás. Os jogadores do Paulo colocam-no num patamar entre os cinco melhores do mundo, isto para mim não é novidade, porque já o achava antes, mas naturalmente não fica bem nós dizermos isto. Agora, dito por jogadores que já apanharam alguns dos melhores treinadores do mundo, acho que é algo que nos marca. Porque os jogadores não dizem só por dizer, se fosse só por dizer, dizia só que era bom. Acho que é a ideia de jogo que marca. Se os jogadores despissem a camisola e colocassem só uma camisola branca, acho que as pessoas que percebem mais de futebol conseguiriam distinguir se aquela equipa é do Paulo Fonseca, e é isto que não está ao alcance de toda a gente. É uma equipa de autor. Há quem não goste, tudo bem, mas eu digo o mesmo do Simeone. É uma equipa de autor também, mas na vertente oposta. O treinador conseguiu colocar os jogadores a fazer o que ele quer, com todo o mérito. Mas eu gosto mais é da outra parte, dá-me mais prazer. E é um prazer enorme ver os nossos jogadores a crescer e ver a equipa a crescer. Os resultados vêm a seguir, depois do crescimento dos jogadores e da equipa. Porque nós não somos loucos, andamos todos nisto para ganhar, porque quem não ganha anda pouco tempo nisto, e nós já estamos aqui há uns aninhos. Acredito que o nosso sucesso não tem a ver só com os resultados, tem a ver com a forma de jogar.

Nuno Campos e Paulo Fonseca já passaram por uma dezena de clubes juntos

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ANDREAS SOLARO

Há aquele exemplo que vocês contaram numa reportagem ao 11 sobre a forma como prepararam o jogo com o City, mas recordas-te de mais momentos em que vêem perfeitamente em campo o que treinaram?
Por exemplo, o último jogo do campeonato contra o Cagliari, em termos ofensivos, tem lá tanta coisa que nos deu prazer... Porque nós treinámos e aquilo saiu. Fizemos quatro golos, sofremos três, naturalmente não ficamos satisfeitos por sofrer três golos, mas ficámos satisfeitos pela forma como conseguimos fazer aqueles quatro golos.

És dos que prefere ganhar 4-3 ou 1-0?
Prefiro 4-0 [risos]. Vamos dividir isto por partes: para mim, temos de tentar ser melhores em todos os momentos do jogo. A nossa equipa não é só de ataque organizado, não é só de organização ofensiva. Pelo contrário, nós temos de ser cada vez melhores em transição ofensiva. O que nós queremos é que, quando somos obrigados a entrar em organização ofensiva, e somos muitas vezes, temos de ser competentes para ultrapassarmos aquela muralha de muitos jogadores do adversário, e isto não está ao alcance de muitas equipas. Nós temos de ser cada vez melhores na transição ofensiva, porque se pudermos atacar contra menos jogadores, melhor, mas eles têm de entender que se não há condições para atacar rapidamente, então não vamos, porque não queremos perder a bola facilmente, de forma estúpida, entre aspas. Temos de entrar em ataque organizado e conseguir ultrapassar as barreiras dos adversários. E se passarmos para os outros dois momentos do jogo é igual. Temos de ser muito fortes na transição defensiva, porque de outra forma não vamos ter sucesso, porque atacamos com tantos jogadores que depois não temos sucesso se não formos fortes na transição. Tal como temos de ser fortes na organização defensiva. Só que, para nós, a organização defensiva não é à beira da área, é subidos e juntos, com todos a ter os comportamentos que temos de ter. Não sei se fugi à tua pergunta [risos]. Ah, o Cagliari. Sim, há imensas situações dessas. Quando nós vemos crescer o nosso modelo de jogo e a nossa equipa se torna forte o suficiente para haver poucos adversários que nos fazem frente, isto é o que nos dá mais prazer.

Relativamente à organização defensiva, quando a bola está no corredor lateral, vocês colocam o lateral em contenção e o central em cobertura próxima...
[interrompe] Houve treinadores a dizer que quando há movimento entre central e lateral, aquilo resultava, mas eu coloquei a questão ao contrário: se o meu central bascular... Ah, aliás, até foi por causa do Abel, porque o Abel falou nisto: eu tenho um ala forte no um contra um, então não quero que o meu lateral suba, quero que o meu ala faça um contra um. Mas eu coloquei a questão ao contrário: então se o meu central for fazer cobertura ao meu lateral, já não há um contra um, é um contra dois. Mas posso dizer-te como pensamos em relação a isso que ias perguntar: a basculação do central para nós é importante, ao contrário do que fazem outros treinadores. Porquê? Para nós, o que comanda é a bola e o espaço. A bola está lateralizada, então o nosso central não deve estar centralizado, porque o nosso central anda com a bola, tal como o lateral anda com a bola, para ir pressionar o ala contrário. A bola moveu-se, a equipa moveu-se - isto é um princípio macro nosso, fácil de implementar. A questão da cobertura: naturalmente pode ser uma cobertura mais afastada ou mais próxima. Se temos um ala que é muito forte no um contra um, é muito rápido, está sempre a pedir a bola na frente, então o nosso central pode chegar-se de forma mais próxima e aquela cobertura vai dar-nos mais vantagem em relação ao adversário. Se não há nenhum jogador por ali, se não há um movimento de rutura entre central e lateral, aquele central pode bascular, mas não precisa de ir tanto, porque pode haver um movimento de rutura entre central e central. Lá está, isto é uma nuance de dois ou três metros para cá ou para lá, em função do que nós conhecemos dos adversários. Quando nós mostramos o adversário, nós também mostramos isso: "Atenção que este ala faz sempre isto e isto, vai sempre para fora, quer ganhar em velocidade. Então é preciso o lateral não ir à queima e o central estar lá a controlar".

Mas no caso do ala adversário baixar para a construção deles, o vosso lateral irá segui-lo e abrir o espaço entre lateral e central?
Depende, depende. Se o lateral deles passar o nosso ala ou ficar na linha do nosso ala, é o nosso ala que o apanha. Se o ala deles está mais fundo, é o nosso lateral que o apanha. Se, por exemplo, eles têm três centrais, podemos pressionar à frente com o nosso ala a ir pressionar o central da ponta, já o nosso lateral é obrigado a ir mais fundo. Mas nós preparamos uma estratégia para que o nosso ala saiba que o nosso lateral está a ter tempo de ir. Porque se o nosso ala vai muito rápido pressionar o central adversário e o nosso lateral, porque às vezes são 40 metros, ainda não teve tempo de lá chegar, então acabou a pressão, porque entra o passe, o adversário vira-se para a frente e já foi. Dizemos então ao ala: só sais a pressionar o central quando o lateral começar a correr para a frente. Obrigamos o nosso lateral a dizer "podes ir" e isto é o suficiente para ele saber. É um detalhe.

Então e ao contrário: perto da própria baliza continuam com o central a fazer cobertura no corredor lateral ou pedem-lhe que fique no corredor central para controlar o cruzamento?
Boa pergunta. Tu fazes-te [risos]. Quando há uma iminência de cruzamento e já passamos o bico da área para baixo, em direção à bandeirola de canto, digamos assim, então aquele central, sempre que pode - porque às vezes não tem tempo - deve vir em diagonal em direção ao primeiro poste, não ficando em zona morta, que é o que chamamos à zona em frente ao primeiro poste mas mais à frente, porque se a bola passa por cima dele, ele não faz ali nada. Agora, se há um movimento entre central e lateral, então o central tem de ir apanhá-lo.

E irá outro jogador para o primeiro poste?
Sempre que o nosso central sai do corredor central, o nosso médio do lado contrário - e olha aqui a vantagem de jogar com dois médios - vem para perto do central que fica no corredor central, porque pode ter de fazer ele de central. Ali ainda está na iminência de poder fazer, portanto fica lá perto. Se tiver de entrar, entra, se tiver de sair para a pressão mais à frente, porque afinal o adversário rodou a bola para aquele lado, então sai, e o outro central volta a juntar-se. Nessa questão do central bascular, tem de haver uma perceção clara e tem de haver um feedback claro do treinador, porque senão o jogador defende-se: "Mister, eu ia para o primeiro poste porque ia haver cruzamento". E a bola entrou num movimento de rutura entre central e lateral e o adversário vai cruzar sozinho. Nós temos de dizer assim: "Não, só do bico da área para cá, porque o espaço depois é tão pequeno que à partida é difícil haver aquele movimento de rutura e se houver tens tempo de lá chegar". Se ainda não for esse o momento, controlas todos os movimentos que existirem nas costas do lateral. Há treinadores que preferem que seja o '6' a ir lá. Eu faço a pergunta ao contrário: e se a bola roda e vai acontecer o mesmo no corredor contrário? O '6' tem tempo de ir a um lado e ao outro?

Se calhar se tiver dois médios...
Aí é mais possível, sim, mas mesmo com dois médios o segundo médio às vezes está basculado. Mas depois há outra coisa, porque quando a bola roda, normalmente o segundo médio também é obrigado a sair para ir pressionar à frente, portanto depois já não tem tempo também. Daí preferirmos que seja o central a fazer isso. Para falar sobre este detalhes podíamos ficar aqui horas [risos].

Ranieri e Nuno Campos

Ranieri e Nuno Campos

Paolo Rattini

Já falámos sobre a dificuldade em implementar o modelo que se quer logo no primeiro ano, por isso pergunto-te o que achas que ainda está a faltar à Roma atualmente.
A Roma é um clube fantástico. Este é considerado o ano zero para toda a gente, é o ano em que começamos a construir uma ideia de jogo, a querer construir uma equipa forte, o que demora tempo e naturalmente talvez necessitemos de mais um ou outro reforço. Penso que já lançámos as bases para que a próxima temporada seja melhor. O objetivo é ficar no 4º lugar. Nós estamos muito satisfeitos com toda a gente, aliás, estamos apaixonados pela cidade e pelo clube, porque as pessoas têm sido todas fantásticas, a remar no mesmo sentido, a tentar ajudar e temos um feedback ótimo dos jogadores e do staff, o que nos deixa muito motivados para continuar a trabalhar. Como já te disse, tivemos muitas lesões, mas era uma problema que também já vinha do passado. Esta época temos menos 16% de lesões do que houve na Roma na época passada, o que ainda assim continua a ser estranho, porque são imensas. Mas o primeiro factor para haver lesões é o historial anterior. Mas mesmo em lesões musculares a percentagem baixou muito mais, só que tivemos lesões de operações, ao cruzado, menisco, maxilar, quinto metatarso... Também tínhamos aqui um problema com os relvados e o clube fez um esforço grande e mudou os relvados todos de treino. Acho que todos têm tentado ajudar nas mais variadas áreas e nós também pensamos as coisas em conjunto, não somos pessoas de tomar medidas isoladamente, porque o Paulo é uma pessoa de consensos. Isto também tem a ver com a equipa técnica dele: o Paulo é uma pessoa tão aberta à discussão que me sinto um privilegiado em fazer parte da equipa técnica e acho que também posso falar por todos os outros elementos, porque temos abertura total para discutir todos os temas que quisermos. Não só nós mas toda a estrutura do clube também. Naturalmente ele toma a decisão final, mas o debate de ideias permite-nos sempre acrescentar qualquer coisa e as dúvidas fazem-nos pensar. A decisão depois é do Paulo, mas ele ouve toda a gente. É um prazer muito grande e uma felicidade enorme para mim poder trabalhar neste contexto, com uma equipa técnica que eu considero das melhores do mundo, pela forma como debate e como discute tudo. E o Paulo é o grande responsável por isto acontecer. Mas não deve ser fácil para ele, falo por mim, porque sou muito chato e não é fácil aturar-me, é preciso uma paciência de santo [risos]. Mas sei que ele também que reconhece que eu e os outros temos um papel importante nisto tudo. Isto para te dizer que este é o nosso ano zero e que o tempo irá ajudar-nos a consolidar mais as coisas. Quando a época parou, estávamos bem outra vez, mas antes tivemos um período menos bom, também pelas lesões em jogadores fulcrais e não é fácil ultrapassar esses momentos. Estávamos em crescendo e acho que os jogadores estavam satisfeitos, sentimos que eles vão para o treino com prazer e isto é o melhor que se pode querer num grupo de trabalho.

Qual foi a equipa mais desafiadora que apanharam em Itália? Talvez a Atalanta, pela marcação que faz? E fora de Itália, já agora.
Começo por fora, porque no Shakhtar, apesar de nós termos conquistado aqueles títulos todos, penso que a nossa visibilidade advém daquele ano em que temos o City e o Nápoles no grupo e conseguimos o feito extraordinário de passar nesse grupo dificílimo, que ainda tinha o Feyenoord, que era o campeão holandês na altura.

O ano do Zorro.
Exatamente [risos]. Nesse ano, foi muito desafiador defrontar o Nápoles do Sarri e o City também, claro. Acho que foram as mais desafiadoras que apanhámos até hoje, pela forma de jogar, pelo jogo de autor que tinham, fácil de identificar, mas difícil de contrariar, acho que um pouco à nossa imagem.

Paulo Fonseca vestiu-se de Zorro quando o Shakhtar passou a fase de grupos da Champions, em 2017/18

Paulo Fonseca vestiu-se de Zorro quando o Shakhtar passou a fase de grupos da Champions, em 2017/18

NurPhoto

Identificar o que uma equipa faz não é o mesmo que saber como contrariá-la em campo.
Quando um treinador consegue fazer isso, é porque está entre os melhores. Porque, ok, as pessoas conseguem estudar e perceber o jogo, conseguem ver o que uma equipa faz, mas se não conseguem contrariar em campo, então é mérito do outro. E agora aproveito esta deixa para responder à outra parte da tua pergunta, porque isto é um bocado a Atalanta. O treinador tem todo o mérito em ter criado algo, também já com três anos de treino com aquela equipa, o que ajuda a solidificar as coisas. Mas ajuda a solidificar porque são boas ideias, se forem más não solidifica nada [risos]. O Gasperini consegue o feito de criar tantas dificuldades às equipas adversárias, porque os jogadores não têm posições fixas. Ele faz um pouco como nós, mas de forma ainda mais aleatória. Quando falavas da nossa primeira fase de construção ter várias variantes, a Atalanta ainda faz de forma mais aleatória. Ele tem um central que tem seis assistências, porque cruzou seis vezes para golo. Tem um lateral que cruza para o outro lateral, que penso que também já tem seis golos. Ou seja, há muito mérito do treinador e da equipa e é desafiador preparar jogos assim.

Recentemente perderam contra eles, 1-2.
Nós fizemos um jogo na casa deles muito bem preparado defensivamente. Acabámos por perder, mas até foi uma situação injusta, porque eles não criaram praticamente ocasiões de golo. Já ofensivamente não conseguimos sair bem das amarras criadas por uma equipa que marca homem a homem no campo todo. Se eu digo que ele ofensivamente cria coisas difíceis de contrariar, defensivamente também as cria. Ele tem um grupo de trabalho com jogadores muito vocacionados para aquela forma de defender, muito agressivos, fortes fisicamente e por isso consegue ter muito sucesso com aquela forma de marcação. No passado teve algum insucesso, inclusive chegou ao Inter e não conseguiu, mas é um treinador a quem tiro o chapéu, porque conseguiu montar uma equipa que é competente nos vários momentos. Nós também temos de caminhar para a nossa equipa ser cada vez mais completa e cada vez mais identificada com todos os momentos do jogo, para podermos bater-nos com a Atalanta e com as outras. Acho que nós, depois de passarmos pelo campeonato italiano, estamos preparados para qualquer campeonato do mundo, porque as nuances em termos táticos que temos aqui obrigam-nos a ter uma preparação para os jogos que acho que não vamos encontrar nos outros campeonatos.

Achas que em Portugal falta um pouco desse arrojo tático, mais variabilidade na forma como as equipas se apresentam?
Há treinadores que têm esse arrojo. Já falei sobre o Vasco Seabra e mesmo o [Luís] Freire, mas o Vasco conheço mais detalhadamente. Têm ambos esse arrojo, são ambos de uma geração nova e vão ser muito bons treinadores no futuro. Em Portugal temos muitos treinadores a querer aprender como mandar nos jogos mas a quem ainda falta a ligação para o último terço, e isso faz com que eles não sejam tão ganhadores, o que também faz com que não sejam vistos como alguém que tem sucesso. Mas isso vai fazer parte do crescimento deles. Se conseguirem identificar as melhores formas de ligarem o jogo no último terço para serem incisivos, vão tornar-se bons treinadores. Se ficarem só pela primeira fase de construção, vai ser mais difícil. Fora do país temos imensos treinadores com muito sucesso e não há apenas treinadores com esta ideia de jogo, podem ter muito sucesso de outras formas. Mas ganham e têm mercado. Agora, o que eu acho mais difícil é em ataque organizado conseguir desmontar o adversário na procura dos espaços, porque é de uma compreensão muito mais detalhada do jogo, não está ao alcance de todos. Mas quando conseguimos chegar a esses detalhes, fica difícil pararem-nos. Só há uma forma de dificultar, que é amontoar toda a gente ao pé da área. Pode ser porque o treinador quer ou porque não consegue de outra forma. Mas depois essas equipas também têm mais dificuldades em atacar. Agora, acho que há mais treinadores a perceber mais o jogo, só têm de conseguir passar bem a mensagem aos jogadores e perceber com ser incisivos no jogo, porque não chega ter a bola. E eu acho que vai haver aí muito bons treinadores.

Na altura em que entraram na Roma, o Totti saiu, porque disse que não tinha sido consultado sobre a vossa entrada. Ficaram com receio que as palavras dele pudessem ter um efeito negativo nos adeptos?
Nós não falámos com o Totti, mas obviamente temos todo o respeito pelo Totti. É um deus em Roma e com todo o mérito, porque tem uma carreira incrível. Quando se fala em Roma, fala-se em Totti. Acho que foi natural ele ter dito aquilo, porque não nos conhecia de parte nenhuma e se calhar conhecia outros treinadores, acho que isso é normal. O que acho que é algo que só está ao alcance das grandes pessoas é o facto de, depois disso, o Totti ter dado entrevistas a dizer que nós somos muito bons e que podemos ajudar a Roma e até que precisamos de reforços. Isso está ao alcance de poucos, porque teve de contrariar o que ele tinha dito antes. O Totti merece todo o nosso respeito e é um prazer enorme ouvir isso da boca dele. Estamos apaixonados pela Roma, sinceramente, é um prazer muito grande estar aqui.

Os treinadores estão sempre lado a lado no banco

Os treinadores estão sempre lado a lado no banco

Baptiste Fernandez

Há quanto tempo estás com o Paulo?
Há 15 anos.

Não estás farto dele, nem ele de ti?
Eh pá, o Paulo é capaz de estar farto de mim [risos]. Eu não estou farto, porque para mim é muito fácil trabalhar com o Paulo. Difícil é para ele, porque tem de trabalhar comigo. Ele tem a paciência de um santo para me ouvir, mesmo quando tenho uma opinião contrária à dele, ele deixa-me dar a opinião. Mas ele tem tudo para estar chateado comigo [risos]. Mas para mim é um privilégio trabalhar com o Paulo e com toda a equipa técnica, penso que acrescentamos todos muito uns aos outros. O Paulo pensa muito em nós e dá-nos esta liberdade que se calhar não teríamos com ninguém, se calhar outros treinadores não teriam esta paciência. Tenho aqui um grupo de amigos e todos os que vêm integram-se facilmente, como foi o caso do Nuno e do Luís. O Paulo acho que sabe que somos quase a família dele e pode discutir o que quiser dentro de quatro paredes, mas quando vamos lá para fora o que sai é a ideia do treinador.

Quando vão todos jantar fora, conseguem falar de outra coisa que não futebol?
[risos] Quando vamos jantar fora, já nos aconteceu vir à mesa o dono do restaurante pedir para nós falarmos mais baixo, porque as pessoas à volta ficam incomodadas, porque a conversa é de futebol e quando há conversa de futebol, há discussão [risos].

Mas eles em Itália falam alto.
Pois falam, por isso imagina [risos]. Inclusive houve um jantar num sítio em que havia karaoke e as pessoas queixaram-se porque não estavam a conseguir ouvir a música [risos]. É um prazer muito grande fazer parte desta equipa técnica, com muita paixão pelo jogo. Acho que é a paixão que faz a diferença entre o sucesso e o insucesso.

Como não havia paixão pela pastelaria...
[risos] Tenho outros negócios agora, porque a minha filha monta a cavalo, faz concursos internacionais e tem os cavalos dela, e nós temos cavalos de investimento. Temos cavalos que iam competir no campeonato do mundo e no campeonato da Europa, agora já não vai haver, mas iam lá, tal como vão às provas da Longines, que é como se fosse a Liga dos Campeões dos cavalos. É um nível mesmo alto. Temos investidores que querem entrar no negócio connosco, porque temos cavaleiros fantásticos a trabalhar connosco. E também tenho alguns negócios no imobiliário, mas a paixão pelo futebol é a maior e vai durar a vida toda. Um dia, quando me reformar, não sei como vou conseguir desligar-me do futebol.

Investes e compras um clube.
Olha que se eu ganhasse dinheiro suficiente para comprar um clube numa divisão já interessante, porque também temos de ter algumas condições de trabalho, quem sabe se a minha reforma não será passada a transmitir o meu conhecimento nesse clube? Porque acho que o conhecimento não deve morrer connosco. Nós estamos num patamar em que passamos por tantas experiências, com ideias formadas sobre tudo o que tem a ver com futebol, que acho que não devemos morrer com o conhecimento. Tenho todo o gosto em poder fazer, um dia, uma coisa assim. Para já, porque não consigo ficar em casa de pantufas à lareira [risos] e depois porque é algo que me daria um gozo especial, passar conhecimento para jovens, formar treinadores...

Em 2015/16, conquistaram a Taça de Portugal no Braga, algo que o clube não conseguia há 50 anos

Em 2015/16, conquistaram a Taça de Portugal no Braga, algo que o clube não conseguia há 50 anos

Carlos Rodrigues

Já fizeste algumas formações.
Já fiz muitas, sim. Já fui à Escola de Rio Maior, à Associação de Setúbal, já dei cursos no quarto nível de treinador na Ucrânia, coisa que nem podia fazer, porque só tenho o terceiro nível [risos]. De vez em quando dou, não só porque preciso dos créditos mas que porque não tenho problema nenhum em partilhar conhecimento, porque acho que temos uma dívida com o futebol. Fui jogador, agora sou treinador e vivi a vida quase toda no futebol, por isso sinto que tenho uma dívida de gratidão com o futebol e acho que posso pagá-la a passar o meu conhecimento para os outros. Claro que durante uma época nunca temos muito tempo, mas no dia em que me reforme, num clube... Desde que possa pôr as coisas à minha maneira, claro, não me vão fazer nunca jogar longo ou defender junto à área [risos].

Se calhar agora tens de ir para a Ásia ganhar dinheiro.
Na nossa vida nunca podemos dizer que não a nada, porque isto nem sempre é uma vida programada e planeada, com sucesso, portanto não descarto nada. A paixão é treinar e isso pode ser ao mais alto nível, num nível intermédio, num ótimo país, num país menos bom... A paixão de treinar tem de estar cá sempre.

Normalmente aponta-se Inglaterra como o grande destino para os treinadores.
Acho que nós estamos numa das melhores ligas do mundo. A partir daqui, acho que é tudo possível ao nível das melhores ligas do mundo. Penso que um dos passos naturais para um treinador do nível do Paulo é experimentar os melhores campeonatos do mundo. Acho que isso é inevitável, não sei quando, mas agora estamos muito felizes na Roma.

Para terminar: um dia vamos ver-te como treinador principal?
[risos] Quando eu tenho um treinador principal com quem posso falar da forma que já expliquei anteriormente, que me deixa numa posição completamente confortável para dar a minha opinião sobre tudo, para liderar exercícios, para me sentir útil, para me sentir feliz, não sinto a mínima necessidade de querer ser treinador principal. E isto não tem a ver com comodismo, porque se há equipa técnica que é inconformada é a nossa, porque estamos sempre a discutir tudo para melhorar. Agora, são tantos os pontos positivos por trabalhar com o Paulo, é o que me faz ir todos os dias para o treino com alegria, junto não só de treinadores, mas dos meus amigos... Já tive convites, mas sinto-me tão bem, tão realizado no que faço todos os dias, que quero continuar a fazer isto. Não tenho essa ambição, sinceramente. Se o Paulo um dia se chatear comigo, porque eu sou muito chato e sou difícil de aturar, eh pá, só tenho de dizer: 'Paulo, muito obrigado, deste-me o privilégio de trabalhar com um dos melhores do mundo e aprendi imenso contigo. Agora deixa cá ver se não tenho de abrir uma pastelaria outra vez'" [risos]. Mas penso que o Paulo está satisfeito com o meu trabalho, mete uns tampões nos ouvidos e aguenta [risos].