O João Pedro Sousa não existe antes de junho de 2019 na comunicação social.
Não te posso dar o porquê disso. Se calhar tem a ver um bocadinho com a minha pessoa. Trabalhei numa equipa técnica em que o meu objetivo era trabalhar com o Marco [Silva] e com a restante equipa, portanto não fazia sentido nenhum ir para a imprensa ou coisa do género. Vejo isso de uma forma muito natural, como muito provavelmente acontece com muitos colegas meus que também ocupam cargos de treinadores adjuntos. E ainda antes disso, enquanto jogador, é natural que não apareça nada sobre mim, porque de facto fui um jogador fraco [risos].
Realmente não encontrei nada.
Fui mesmo um jogador fraco, infelizmente [risos].
O Famalicão anuncia a tua contratação no final de maio. Sentiste muita desconfiança nessa altura?
Repara, quando dei este passo estava certo daquilo que queria e do que ia encontrar. Sou uma pessoa confiante, nunca tive qualquer dúvida, receio ou insegurança com essa decisão.
Sim, mas referia-me às pessoas à tua volta.
Tenho a certeza que estava preparado para corresponder à aposta que as pessoas fizeram em mim. Sei que muitas pessoas tiveram dúvidas, e se calhar continuam a ter, sobre esta minha função de treinador principal, mas é o meu trabalho do dia-a-dia que vai dar respostas às pessoas que ainda não acreditam.
Já te passava pela cabeça há muito tempo ser treinador principal?
Bom, quando comecei a tirar o curso de treinador, já há bastantes anos, a primeira ideia era ser treinador principal. Depois, proporcionou-se ser adjunto, através de uma pessoa muito amiga minha, o Artur Jorge. Na altura não estava a treinar e foi com agrado que aceitei esse desafio. As coisas foram decorrendo naturalmente, senti-me confortável na função. Depois desse primeiro passo, surgiu então a proposta do Marco e a ida para o Estoril. Agora, não escondo que os anos foram passando e fui querendo ir à descoberta, perceber o porquê das coisas... Porque há sempre vários caminhos para nós percorrermos, quer no treino, quer no jogo, consoante a nossa ideia de jogo. Nós enquanto treinadores adjuntos desempenhamos uma função de apoio ao treinador principal, com certeza também com as nossas ideias e com as nossas questões. Naturalmente fui-me preparando, quer a tirar os cursos exigidos, quer com o trabalho do dia-a-dia como adjunto, felizmente a um nível já muito alto.
Um adjunto num nível muito alto, seja na Premier League ou na Champions, já tem uma enorme dose de experiência, mesmo não sendo principal, certo?
Ao nível do trabalho diário, as diferenças são mínimas. Sempre fui uma pessoa exigente e trabalhei numa equipa técnica também ela exigente. O trabalho que faço hoje com a minha equipa técnica pouco difere... Com certeza há métodos de trabalho diferentes, mas o nosso dia-a-dia é muito parecido. O que faço hoje é praticamente o que já fazia como adjunto. Portanto não considero que sou um treinador sem experiência por só ter começado agora a ser principal, longe disso. Posso ser um mau treinador [risos] ou um futuro bom treinador, mas não tenho falta de experiência. Já passei pelos escalões de formação e por muitos campeonatos. Se não tiver sucesso, não será por falta de experiência.
Quando surgiu a proposta do Famalicão, aceitaste logo?
Não foi uma decisão fácil, mas conhecendo o clube, porque já tinha trabalhado aqui, e conhecendo a cidade e a paixão que todos têm pelo clube. e essencialmente pelas pessoas que estavam a liderar o projeto...
Então se fosse um outro clube...
[interrompe] Antes do Famalicão existiram outros convites e recusei-os. Teve a ver com as pessoas e com o projeto. O projeto que me foi apresentado logo de início, sendo de risco - é certo que no futebol são todos -, foi aliciante e identifiquei-me com ele. A partir daí, com um clube muito ambicioso, uma massa adepta muito ambiciosa e pessoas extremamente competentes, foi fácil chegar à conclusão que era a melhor oportunidade para mim para começar a minha carreira de treinador.
Foi fácil dizer isso ao Marco Silva?
Acima de tudo, fui muito honesto com o Marco. Já tinha tido essa conversa com ele antes, sobre o passo que queria dar na minha carreira, meses antes de aparecer o Famalicão, porque sabia que ia ser uma situação que ia aparecer com naturalidade. Tive de colocar o assunto em cima da mesa, até para o Marco se preparar para a minha eventual saída. Foi isso que aconteceu. O Marco aceitou e deu-me força. Foi algo que aconteceu com naturalidade.
Se calhar agora está a sentir a tua falta...
Não, não está, porque ele está rodeado de pessoas competentes, portanto não acredito que esteja a sentir a minha falta.

RUI DUARTE SILVA
Sendo, como disseste, um jogador fraco, não tinhas um bom entendimento do jogo naquela altura?
Para ser muito sincero, pensava mais era no treino. Pensava muito no treino. Vou ser muito honesto, e estamos a falar do final dos anos 80, início dos anos 90: eu sabia que aquilo que nós fazíamos seguramente não era o melhor. Mas eu não sabia o que é que seria de facto o mais correto a fazer...
Podes exemplificar?
Ao dizer isto, não quero criticar quem o faz e quem até possa ter sucesso a fazê-lo, mas eu não vejo as coisas desta forma: por exemplo, ficar uma semana inteira a correr no pinhal de Ofir ou nas dunas da Apúlia, que foi o que fiz com alguma frequência. Hoje em dia acho que a maior parte dos jogadores não se revê nesse tipo de treino e metodologia. Eu fiz isso e aquilo realmente fazia-me duvidar que fosse o melhor para a minha evolução enquanto jogador.
Os jogadores da tua altura sofriam muito mais do que os de hoje em dia.
Isso seguramente, sofríamos muito [risos]. Sabia que aquilo não era o mais correto, mas confesso que também não sabia o que era o mais correto. Depois fui descobrindo, com a evolução das coisas, que tinha razão, e fui percebendo o que se podia fazer para evoluir o treino e o jogo e os jogadores.
Aí já pensavas em ser treinador?
Sim, sim, porque também tive muitos amigos e colegas que seguiram a carreira de treinador e naturalmente havia as conversas, as discussões...
O Artur Jorge, o Carlos Carvalhal...
Sim, o Artur Jorge começa comigo... ou melhor, eu é que começo com ele [risos]. E o Carvalhal é uma pessoa que me influenciou e cujo início de carreira segui com muita atenção, somos muito amigos, e foi uma das pessoas com quem falava e discutia muito, principalmente sobre o treino. Aí sim, começa o meu crescimento como treinador. Depois tirei os cursos e comecei a trabalhar na formação, com jovens atletas, o que foi uma experiência inesquecível para mim, e depois então cheguei ao Famalicão.
Chegaste ao Famalicão em 2009/10, como adjunto do Artur Jorge.
Sim, primeiro como adjunto. Na altura trabalhava na formação, na Academia Lacatoni, uma academia de futebol que pertencia ao Carvalhal, ele convidou-me para iniciar lá a minha etapa como treinador. Conseguia conciliar os treinos do Famalicão, que na altura estava na 3ª divisão, com os da Lacatoni.
Achas que é importante para a evolução de um treinador passar pelos escalões de formação?
No meu caso foi decisivo. Aprendi, naqueles anos todos, a gerir muitas coisas que depois também tens de gerir no escalão sénior e na alta competição.
Por exemplo?
A gestão de expetativas é um caso flagrante. Não é fácil dizeres a um miúdo que o sonho dele está longe e que semana após semana não vai consegui-lo, porque o colega é melhor, mesmo havendo sempre aquela gestão do treino e do jogo, jogando todos os jogadores, que era uma das regras que havia. Mas havia sempre um fim de semana em que tu poderias magoar a criança e depois também é complicado gerir a situação dos pais, que às vezes não conseguem entender. Aprendi e cresci muito.
O facto de teres sido jogador também ajuda?
Ajuda, acho que sim.
No quê, na gestão do balneário?
Sim, nisso e em algumas reações no campo, durante a semana. Revejo-me nelas, às vezes. Dá para relativizar algumas coisas. E outras vezes consegues perceber perfeitamente o que se está a passar em determinada situação, porque já viveste situações do género.
Por exemplo?
Posso dar um exemplo que é uma luta constante, mas uma luta saudável, e que felizmente tem corrido muito bem no Famalicão e que aprendi com pessoas mais velhas que trabalharam comigo. Quando tinha 19, 20 anos, um amigo disse-me uma frase que nunca mais me saiu da cabeça: obriga o treinador a convocar-te, obriga o treinador a pôr-te a jogar. Portanto, o baixar a cabeça, o ficar de má cara, o deixar de trabalhar só para demonstrar ao treinador que se está chateado não resulta. Só há uma forma: é trabalhar e obrigar o treinador a pôr-te a jogar. Foi assim que levei as coisas enquanto jogador.
Então não te chateavas muito enquanto jogador.
Não, chatear chateava-me, não é isso. Eu não digo aos meus jogadores para não ficarem chateados, eles têm de ficar chateados, mas a única forma de jogar é trabalhando muito. E fiz isso enquanto jogador. Chateei-me muito, porque fui muitas vezes para o banco ou para a bancada, sou um expert nisso [risos]. Mas sabia que tinha de dar a volta com o trabalho e dava.
Eras avançado, não eras?
Era avançado mas não conseguia marcar golos [risos].
Assim ficava mais difícil.
Muito mais difícil [risos].
Mas que estilo de avançado? O "pinheiro"?
Por acaso acho que era bom como "pinheiro" [risos]. Mas era um tipo de avançado que na altura não se usava muito, o avançado mais fixo, que joga de costas para a baliza, sem muita velocidade. Na altura o avançado típico que jogava nos clubes grandes e no campeonato português era o oposto a isso. Foi difícil para mim, mas ainda consegui jogar em três clubes na antiga 1ª divisão. Mas tinha um problema muito grande: a minha relação com a baliza era nula. Acho que marquei quatro ou cinco golos na minha carreira. E depois também tinha problemas com lesões. E foi assim que deixei de jogar.
Tinhas uma relação com a baliza que é contrária à do Anderson, que sempre que entra marca.
O Anderson em sete jogos fez mais golos do que eu na minha carreira toda [risos].
Já lhe disseste isso?
Não lhe disse, não lhe posso dizer isto, se não ele ri-se de mim [risos].

NurPhoto
Voltando mais atrás: quando é que conheces o Marco Silva e começas a trabalhar com ele?
Conheci o Marco quando ambos jogávamos no Trofense. Criámos uma relação muito boa de amizade, falávamos muito sobre futebol, sobre o treino, os dois sempre muito críticos, sempre a dizer muito mal da forma de treinar e de jogar [risos]. Depois o Marco deixa de jogar e começa como diretor desportivo do Estoril, e quando é desafiado para ser treinador, já eu estava a trabalhar com o Artur Jorge, na altura na formação do Sporting de Braga, nos juniores, já depois de termos saído do Famalicão. Quando o Marco começa a ser treinador do Estoril, naturalmente nos primeiros tempos falou com várias pessoas, como falou comigo, também para perceber como era o dia-a-dia, o planeamento do treino, a preparação do jogo... Porque ele inicia o trabalho a meio da época. Foram conversas que surgiram com naturalidade e estenderam-se ao longo de toda essa época. E depois quando ele sobe de divisão surge o convite para ir trabalhar com ele.
Ou seja, primeiro eras adjunto à distância e depois passaste a ser adjunto presencialmente.
[risos] Falávamos um com o outro. Como também já falávamos anteriormente, só que se calhar assim em vez de estarmos a falar dos outros, falávamos de nós próprios e do nosso trabalho. Pronto, ele achou que eu era a pessoa certa para acompanhá-lo e e aceitei, com muito agrado e com muito orgulho.
Como foi o percurso Estoril-Sporting-Olympiacos e a chegada à Premier League?
Foi muito bom, do princípio ao fim. Felizmente as coisas correram muito bem. Os anos no Estoril foram fantásticos, num clube que vinha da 2ª Liga e que conseguiu ir às competições europeias, em dois anos consecutivos. Foi com naturalidade que o Marco depois saltou para clubes de outra dimensão. Todas estas etapas tiveram as suas particularidades, mas foram importantes para o Marco, para mim e para os colegas que pertenciam à equipa técnica, porque vivemos coisas muito diferentes em cada clube e em cada país. Foram anos em que evoluí muito, porque vi e ouvi muita coisa, consegui absorver conhecimento que de outra forma não teria tido. A participação nas competições internacionais também foi muito importante, jogámos Champions, por exemplo, e isso só vivendo e trabalhando em clubes de grande dimensão para perceber e evoluir no sentido do alto rendimento.
E, em termos negativos, na Grécia há muita violência...
Ora bem, o povo grego é muito latino também. Tem uma paixão muito grande pelo seu clube. Falando de Atenas, é uma cidade com três clubes enormes e a rivalidade é muito forte. No ano em que estivemos lá, infelizmente o país atravessava uma crise muito forte e o Olympiakos ia quase a contraciclo. Os clubes com muitas dificuldades, assim como o país, mas o Olympiakos em ascensão, com uma pujança desportiva e económica muito grande, havia uma diferença muito grande entre o Olympiakos e os outros clubes. Ali, difícil era não ser campeão. Fomos campeões e batemos uma série de recordes, o Marco fez um trabalho fantástico. Só ficou um amargo de boca por não termos conseguido ganhar a Taça da Grécia, porque perdemos na final com o AEK e não conseguimos igualar o ano anterior, que tinha sido de dobradinha. Mas o Marco é um ídolo para os adeptos do Olympiakos, porque foi um trabalho e um ano muito bom. Da Grécia só tenho a dizer maravilhas, um povo fantástico, pessoas apaixonadas pelo futebol e pelo desporto, não tivemos qualquer tipo de problema na Grécia.
Mas tiveram no Sporting.
O Sporting é outro grande clube. Vinha de anos muito complicados. Nos últimos anos, quantas vezes é que o Sporting foi campeão? Pouquíssimas. E mesmo ao nível dos títulos nas Taças teve dificuldades. No campeonato não conseguimos disputar o título até ao fim, que era o nosso objetivo, andámos longe do 1º lugar. Na Taça, sim, felizmente conseguimos chegar à final, passar por um susto, com o Braga, mas conseguimos. O grupo de jogadores na altura também era um ótimo grupo e muitos deles acabaram por ser campeões da Europa, mais tarde. É com orgulho enorme que olho lá para casa para a medalha de vencedor da Taça, foi uma vitória que vai ficar na história do clube e ficámos muito satisfeitos por isso.
Falaste só das coisas boas e não das más.
Acho que não vale a pena. Já se escreveu tanto sobre isso.
Mas na perspetiva das dificuldades no trabalho diário dos treinadores.
Com certeza que implicou dificuldades e condicionou o trabalho. Os jogadores percebiam isso. Quando estamos todos unidos, quando as coisas correm como toda a gente quer, mesmo assim é difícil no futebol, portanto quando há problemas, quando há pessoas com pontos de vista diferentes, então é ainda mais difícil. Claro que todos notavam isso, mas, com maior ou menor esforço, conseguimos, o Marco conseguiu, levar o barco a bom porto e terminar com a vitória na Taça, o que penso que foi um prémio muito justo para ele e para quem trabalhou naquele ano, e particularmente para os jogadores.

RUI DUARTE SILVA
A Premier League é muito diferente de tudo o resto?
É, é. Não vale a pena sequer fazermos comparações, porque é incomparável, e não é só pela competição, é por tudo o que a envolve. São coisas que só estando lá e só sentindo é que se consegue perceber. E comparar é perder tempo. É de facto uma competição ímpar, com um ambiente extraordinário. Quando paramos um bocadinho para pensar... Se calhar aqui achamos estranho os ingleses colocarem a Champions para segundo plano, mas quando estás lá consegues perceber que a Premier League consegue ser uma competição superior à Champions. Vivi as duas e são diferentes, são duas competições brutais, mas a Premier League é única.
Quando estava a chegar, vi um jogador sair num carro relativamente comum, nada de alta cilindrada. Isso na Premier League também era muito diferente? Lidar com jogadores que saem de Bentley, por exemplo?
Percebo o que queres dizer, mas, felizmente, nos grupos nos quais trabalhei nunca aconteceu. De facto são pessoas diferentes, porque são pessoas que ganham muito dinheiro, mas são profissionais. Acho que quem anda no desporto hoje em dia, principalmente no futebol, aquelas vedetas que vemos na televisão, são atletas e eles têm essa consciência. Não é por andarem num Bentley ou num Ferrari que eles deixam de ser atletas. Lembro-me de um episódio curioso, no ano passado, no parque automóvel do Everton. Começou a estacionar lá um carro, antes do treino e depois do treino, que nunca tínhamos visto, um Opel Corsa. Pensámos que podia ser de algum visitante ou até de um funcionário que andasse por ali, mas o carro estava sistematicamente ali. Então lá perguntámos de quem era o Opel Corsa e era de um jogador, não interessa qual. Aliás, era da mãe de um jogador, e ele usava o carro, todo contente, nada interessado nesse tipo de coisas. Sim, ok, há quem goste dos carros, mas também valorizam outras coisas. Há pessoas que estão no alto nível e têm enorme projeção mediática, mas têm uma simplicidade muito grande.
Também ficaste com falta de jogos, como o Carvalhal? Ele disse que em Portugal há demasiadas paragens.
Sim, faz-se muitas paragens. A época desportiva começa a 1 de julho e nós, até ao final do ano, até ao Natal, temos 14 jogos no campeonato. Na Premier League há 18. Ter 14 jogos desde julho, para o nosso campeonato, é muito pouco. São muitas semanas sem competição. Nem os jogadores, nem os treinadores, nem os adeptos gostam de semanas sem competição. Se nós temos um produto para dar às pessoas, para dar às televisões, esse produto tem de vir cá para fora todas as semanas. Com certeza que há as paragens das seleções, mas nós temos sempre mais do que isso. Temos paragens para as seleções, temos paragens para as eleições, temos paragens para a Taça da Liga, temos paragens para a Taça de Portugal...
Vocês já nem estavam na Taça da Liga.
Não, fomos eliminados logo na 2ª eliminatória, com o Covilhã. Portanto, estivemos ali um mês sem competir no campeonato. É claramente demasiado. Quem trabalha no futebol tem um produto para potenciar, se não o conseguimos vender, como é que as pessoas vão aos estádios? Há outras atividades que são concorrentes do futebol e rapidamente tiram-nos gente dos estádios, sejam os cinemas, os teatros... O futebol também é um espetáculo, temos de ter essa consciência. Temos de ir buscar as famílias, temos de ir buscar as crianças e trazê-las aos estádios. Se nós nem jogos temos, como é que vamos levar as pessoas aos estádios?
Nas semanas sem jogos, o que muda no planeamento e nas unidades de treino?
Há coisas que poderão mudar, dependendo da análise que fazes do que se passou nas semanas anteriores. Pode haver situações que queres potenciar ou nuances do último jogo que queres corrigir...
Por exemplo, como não sofrer três golos quando se está a ganhar 3-0 com o Moreirense, em casa.
Exatamente, é um excelente exemplo [risos].
Podes dizer, em termos gerais, o que identificaram como problemático nesse jogo?
Uma das coisas que posso dizer é que é importante que nós, equipa, percebamos que temos de controlar os ritmos do jogo, sem alterar o nosso ritmo. Ou seja, podemos querer baixar o ritmo do jogo, mas não podemos baixar o nosso ritmo. Porque as duas situações podem fazer confusão na cabeça dos jogadores. Tu, enquanto treinador, quando pedes para baixar o ritmo do jogo, não podes querer que os jogadores baixem o seu ritmo, porque isso é perigoso. Uma das coisas que aconteceu no jogo com o Moreirense foi precisamente essa: a partir dos 3-0, tínhamos de gerir o ritmo do jogo, mas não podíamos baixar o nosso próprio ritmo.
Mas referes-te concretamente a quê? Jogar mais em largura, evitar perdas?
Isso, sim. Evitar perdas em zonas do campo que são perigosas, a agressividade quando não temos a bola, a reação ao ganho e à perda da bola... Tudo isto tem a ver com o ritmo com que estás a jogar, o que é diferente do ritmo do jogo. Esse é um dos aspetos em que temos de melhorar, gerir o ritmo do jogo, sem nunca baixar o ritmo da nossa própria equipa, porque isso envolve a agressividade e a intensidade no jogo. Foi algo sobre o qual falámos, trabalhámos e mostrámos, através de imagens, aos jogadores. Nesse aspeto, foi uma semana boa para trabalhar. Quando as pausas são maiores, torna-se um bocadinho complicado de gerir, porque treinar sem competição é extremamente complicado para pessoas competitivas, já que o dia-a-dia delas é pensar na competição e trabalhar. As semanas só de seleção são facilmente ultrapassáveis, porque podemos aproveitar para este tipo de situações, assim como para recuperação de lesões, mas mais do que isso, não.

Emma Simpson - Everton FC
Quando chegaste ao Famalicão, disseste: "Mais do que lugares, o que temos de fazer é criar um futebol à Famalicão." O que é este futebol à Famalicão?
O futebol à Famalicão tenta ser o espelho dentro de campo daquilo que é o clube, com adeptos que gostam do jogo, que seguem sempre a equipa, adeptos apaixonados. É isso que tentamos no campo: ser ambiciosos, apresentando um futebol agradável, sempre tentando ganhar o jogo, independentemente do adversário e sempre com uma forma apaixonada, para haver uma empatia entre quem joga e entre quem assiste ao jogo. Eu, ao pensar e imaginar a forma de jogar do Famalicão, não podia de forma alguma construir uma equipa a pensar em não ganhar o jogo, porque tenho um estádio com 10 mil pessoas que querem que o Famalicão queira ganhar, portanto é essa mensagem que tenho de transmitir aos jogadores, que nós temos de trabalhar para ganhar os jogos.
Mas há muitos treinadores em Portugal que tentam a abordagem contrária: tentar não perder.
Penso que fica claro na forma de jogar do Famalicão que isso não acontece connosco. A nossa promessa foi essa e estamos a cumprir, seja contra qual for o adversário, com uma forma de jogar ofensiva e positiva. Felizmente isso tem acontecido. Não nos garante, claro, as vitórias nos jogos todos, como já aconteceu. Inclusivamente, essa forma de jogar trouxe-nos um ou outro dissabor, um ou outro erro, mas nós sabíamos que isso ia acontecer, e só temos de nos preparar para ficarmos mais fortes depois de aprendermos com os erros. Não vamos abdicar da nossa forma de pensar e jogar.
Falou-se muito sobre isso depois do jogo contra o FC Porto, particularmente, em que há erros na construção. Houve quem dissesse que o Famalicão deveria ter abdicado da saída curta, perante a pressão alta do FC Porto.
Isso é muito redutor, dizer que perdemos o jogo porque saímos a jogar. É importante é eu e os jogadores percebermos se o erro foi individual ou se foi individual mas assente no processo coletivo, é sempre essa a reflexão que fazemos. A partir do momento em que o erro tem a ver com o processo coletivo, só temos de trabalhar para esse erro não existir. Depois temos os erros estritamente individuais, que acontecem em todas as equipas do mundo. As pessoas dizem isso e até parece que nós não temos outro caminho e temos. Com o FC Porto saímos muitas vezes de forma longa, por exemplo. Sabemos que se nesse momento da saída curta perdermos a bola e cometermos um erro, o adversário está mais perto de fazer golo, mas também sabemos que já fizemos golos a sair a jogar assim. Até na jornada anterior ao FC Porto, quando estávamos a perder em casa, frente ao Belenenses, e fizemos um golo a partir de um pontapé de baliza. Portanto, os jogadores estão confortáveis e nós estamos confortáveis.
Há várias soluções trabalhadas para sair, é isso?
Claro. Nem nós, seja em que momento do jogo for, fechamos as decisões. Isso não. Temos as coisas preparadas. Em todos os jogos saímos das duas formas, curta e longa.
Há uma hierarquização das soluções ou depende dos jogos ou...?
Depende muito dos jogadores. Não gosto muito de falar especificamente de jogadores, mas vou dar um exemplo: toda a gente agora fala no Fábio Martins. E o Fábio é muito bom jogador, tecnicamente muito evoluído, com uma capacidade criativa muito grande. Então eu tenho de fazer com que a bola chegue ao Fábio Martins de que forma?
Pelo ar vai ser mais complicado.
Exatamente. Portanto, eu tenho de construir também tendo em conta o tipo de jogador que o Famalicão tem, que eu escolhi para o Famalicão. Para potenciar esse jogador tenho de criar situações para ele conseguir desenvolver o que melhor sabe fazer, tendo em conta as suas características. É isso que nós fazemos. Se me disseres que o adversário nunca condiciona a nossa saída, então se calhar eu vou sair sempre curto. Mas sei que o adversário me vai condicionar. Sabemos que há risco, que há muito risco, mas saímos por outro dos canais de saída que temos preparados, sendo que um deles é saída longa. Sabendo que se a bola vai para o Fábio Martins ou para o Rúben Lameiras ou para o Diogo temos mais dificuldades em ganhar essa primeira bola, mas temos então de preparar a segunda bola.
No jogo com o FC Porto sentiste como um elogio o facto de terem ajustado a pressão habitual deles ao jogo do Famalicão?
Sim, não escondo que sim. Mas também não escondo que foram extremamente competentes na forma como o fizeram. De facto fomos surpreendidos com essa forma de jogar do FC Porto, não contávamos com ela. É uma equipa fortíssima, que nos surpreendeu e penso que taticamente ganharam o jogo.
Notando isso no jogo, de que forma é que podes ajustar alguma coisa?
Há uma de duas situações: ou consegues mexer, na parte estratégica, sem desvirtuar a tua forma de jogar e a tua ideia, e foi o que nós tentámos fazer e não resultou; e a outra é dizeres, ok, vamos mudar: vamos tirar um defesa, por exemplo, e sair sempre longo, desvirtuando a tua ideia, esquecendo o que fizeste durante a semana para preparar aquele jogo. Se vais pedir aos jogadores para fazerem algo que nunca trabalharam... Eu, como treinador, não acredito nessa solução. Acredito muito no treino, naquilo que o treino traz para o teu jogo, e que os jogadores estão muito mais confortáveis com aquilo que se treina. E eu, como treinador, ao fazer a análise no campo, durante o jogo, sinto que é muito mais fácil para mim perceber o que estão a fazer os jogadores que tem a ver com o nosso treino. Tudo isso facilita o nosso jogar. Agora, por vezes é difícil, claro. Quando taticamente a equipa adversária te consegue anular e individualmente é extremamente forte... No fundo, o FC Porto também nos fez o que nós tentamos fazer às outras equipas, portanto não é desprestigiante perder um jogo no Dragão, porque é de facto uma equipa muito forte.
Supondo que para a semana irias jogar contra uma equipa qualquer muito mais forte, seria uma opção colocar um bloco baixo e sair em transições, por exemplo?
Não sei. Se nós acharmos que é a melhor forma de ganhar o jogo, porque não?
Mas não é o que o Famalicão faz normalmente.
Não é. Mas posso optar por isso. Montar um bloco baixo, ganhar em zonas baixas do campo e depois sim, entrar no processo normal de construção e manutenção de posse de bola, por exemplo. E ataco da mesma forma. Nós já variámos algumas coisas: já fizemos uma primeira linha de pressão muito subida, em zonas médias, em zonas médias/baixas. Por exemplo, quando jogámos em Braga, em que jogámos durante uma hora com menos um jogador, tivemos de baixar bastante, tivemos de defender bastante perto da nossa área e conseguimos fazer isso porque no treino também já o vivenciámos, já o experimentámos. Temos de estar preparados para ene situações que podem ocorrer durante o jogo. Penso que o facto de pressionarmos mais alto ou mais baixo não vai desvirtuar em nada aquilo que é o nosso jogo habitual, por exemplo. Se falarmos de transições rápidas, diz-se que o Famalicão também é forte nesse momento, no contra ataque, e realmente temos muitas situações em que conseguimos marcar nesse momento.
No jogo com o Sporting de Braga, por exemplo.
Sim, também. Mas não podemos esquecer que, para sermos fortes nas transições, temos de ser muito fortes no nosso processo defensivo, porque sem ele não consegues fazer transições ofensivas com qualidade.
Mas o Famalicão tem um número alto de golos sofridos [21].
Sim, tem. Mas, se calhar, se tivéssemos menos golos sofridos, não tínhamos tantos golos marcados [26]. Porque, para além do Benfica e do FC Porto, somos nós a ter mais golos marcados. E tivemos mais jogos fora de casa do que em casa.
Preferes ganhar 4-3 do que 1-0?
Sim, prefiro ganhar 4-3 do que 1-0. Mas depois prefiro corrigir defensivamente e ganhar 4-0. Para mim o que é mais difícil é conseguir marcar os quatro golos, isso claramente.
Quando chegaste ao Famalicão já tinhas um modelo de jogo na cabeça?
Sim, porque fiz uma reflexão e percebi que tipo de adepto o Famalicão tinha e já conhecia o clube e a competição. Isto são tudo fatores que levam à construção de um modelo de jogo.
Mas o modelo é a base e os jogadores adaptam-se a ela ou entendes que os jogadores é definem qual o modelo a construir, por assim dizer?
É um bocadinho das duas coisas, não é? Mas no nosso caso, como começámos do zero, o nosso plantel foi escolhido a pensar numa determinada forma de jogar. Tomámos essa decisão, a administração e eu, de construir um plantel novo, e neste caso isto ajudou-me, porque primeiro já sabia a forma como queria jogar e depois procurei jogadores para interpretarem essa forma de jogar.
É quase um luxo, hoje em dia.
Nessa perspetiva, sim. Noutra perspetiva, traz problemas, porque precisas de tempo e só tens cinco semanas para preparar uma equipa totalmente nova, de jogadores de vários países que nunca trabalharam juntos. Felizmente conseguimos preparar as coisas da melhor maneira e entrámos bem, com uma vitória nos Açores, na 1ª jornada, contra o Santa Clara.
Então no início dos treinos começaste pela organização ofensiva?
Sim, começámos pela organização ofensiva, na primeira unidade de treino. Mas no fim do primeiro microciclo já tínhamos passado por todos os momentos do jogo. Mas a primeira unidade de treino foi totalmente baseada no processo ofensivo.
Normalmente diz-se que é ao contrário, que se começa pelo processo defensivo.
Sim, depende. Posso concordar também. Para atacares bem, também tens de defender bem.
Mas achas mais difícil treinar a organização ofensiva ou defensiva?
Muito sinceramente acho que a organização ofensiva é mais difícil. Pelo menos na nossa forma de jogar. O processo defensivo tem regras muito fechadas, ou seja, há comportamentos que têm de ser aqueles, não são flexíveis. Enquanto no processo ofensivo tens sempre de dar flexibilidade, tens sempre de ter um leque diferente de opções, se não os jogadores não conseguem resolver. Os jogadores têm de desequilibrar o adversário, têm de criar ruturas, têm de perceber onde é o espaço e para isso tudo dependemos também do adversário, porque temos de ver onde é que podemos atacar o adversário. Aí, o jogador tem de resolver muitos problemas. Defensivamente, já é diferente. Por isso é que é que digo que o defensivo é mais fácil de executar, sendo difícil na mesma. Mas é mais fácil para preparar, porque há comportamentos que são inegociáveis.
Relativamente ao jogo com o Sporting, houve uma mudança ao intervalo que melhorou a equipa para a 2ª parte. O que fizeram?
Tinha a ver com a capacidade de pressão que o Sporting estava a tentar colocar no Gustavo, o nosso pivô defensivo. As equipas perceberam rapidamente que o canal privilegiado de saída era o Gustavo. Nós tivemos de arranjar soluções e alternativas à saída pelo Gustavo. Foi disso que falámos ao intervalo e ajustámos ligeiramente o posicionamento do Gustavo e conseguimos na 2ª parte, quer sair pelo Gustavo, tendo em conta uma nuance de posicionamento dele que nos libertou, com a bola a ir dentro para ele e depois para fora, obrigando o Sporting, no momento em que a bola entrava no Gustavo, a fechar as zonas interiores, e depois conseguimos sair por fora e aí ganhámos muito espaço e tempo, que era o que nós queríamos e o que nos faltou na 1ª parte. Não tivemos tempo para organizar melhor a nossa 2ª fase e a nossa fase de criação, para depois atacar as zonas de finalização. Foi essa pequena nuance que nos ajudou.
Isso é difícil de mudar ao intervalo?
No Sporting foi fácil, os jogadores interpretaram bem e conseguimos transportar isso para o campo. Com o FC Porto, como já te disse, foi impossível, porque nós tentámos alterar mas o FC Porto não nos permitiu ter sucesso, esbarrámos numa capacidade tática, física e técnica que não nos permitiu sair. No Sporting conseguimos e fomos superiores na 2ª parte, e ganhámos o jogo.
Estavas à espera de ter um impacto tão forte na Liga, logo à entrada? Não só relativamente aos resultados mas também à forma de jogar da equipa.
É assim, muito sinceramente não parámos ainda para refletir sobre isso. Claro que temos orgulho e gostamos de ouvir as pessoas dizerem que o Famalicão joga bem e que quer disputar todos os jogos. Agora, é claro que não contava estar três meses no 1º lugar, isso é claro que não. Foi uma entrada muito forte, muito boa, mas isso só nos traz mais responsabilidade, para agora mantermos esta qualidade.
A gestão de expetativas agora é muito mais difícil.
Sem dúvida. Tenho de ir buscar estratégias da gestão de expetativas que utilizei na Academia Lacatoni com os infantis [risos]. Penso que toda a estrutura do Famalicão está muito realista e estamos todos com os pés muito bem assentes no chão, percebendo que o primeiro grande objetivo é a manutenção do clube na 1ª Liga, porque foram 25 anos sem cá estar. Não vamos pensar noutra coisa antes disso, pelo facto de estarmos em 3º lugar. Estamos perto de atingir o nosso principal objetivo, a larga distância de acabar o campeonato. O nosso foco é o treino, o jogo e o chegar a uma pontuação que nos garanta a manutenção. Depois logo se vê.
O Miguel Ribeiro disse que seria normal ver alguns jogadores a sair já em janeiro. Para o treinador, isto é difícil de ouvir?
Para o treinador, é difícil, mas se o dr. Miguel Ribeiro me disser que o jogador X se valorizou, que vai para um clube de outra dimensão, que vai disputar competições de outro nível, então fico muito contente pelo jogador, muito sinceramente. Faz parte do meu trabalho. Fico feliz e tenho a certeza que isso vai acontecer, mais tarde ou mais cedo, porque há jogadores do Famalicão com muita qualidade e, mais do que isso, há profissionais muito bons. Espero que isso aconteça a mais do que um jogador.
E estamos a falar de jogadores muito jovens. Há bocado não falámos sobre isso, mas a questão do ritmo do jogo também pode ter um bocadinho a ver com a idade e a experiência dos jogadores?
Também admito que sim. Mas também traz vontade de se quererem mostrar, por exemplo. A idade também é razão de coisas muitas boas que acontecem, portanto, entre o deve e o haver, ficamos claramente a ganhar.
Ao nível do relvado é fácil teres perceção do que se passa no jogo?
Sim, mas é uma questão de treino. Inicialmente, quando comecei no futebol de 7, nos primeiros minutos não percebi nada do que se passou. Só via as camisolas a andar de um lado para o outro. Mas depois com o treino vais percebendo as coisas, notando as distâncias no campo, entre setores, entre jogadores, consegues ter essa sensibilidade. É mesmo uma questão de treino, porque já me aconteceu, com o Marco, ficarmos alguns meses fora do trabalho e, quando regressas, naqueles primeiros dias, a coisa não está bem oleada.

RUI DUARTE SILVA
Quem é que são as tuas referências?
Falando de treinadores, há duas pessoas que são completamente incógnitas para a maioria, mas que me marcaram muito na minha vida desportiva. Eu era muito novo, estamos a falar de alguém que na altura foi meu treinador na formação no Sporting de Braga, o senhor Carlos Batista, uma pessoa profunda conhecedora do futebol, que me ensinou muito, quando tinha 17, 18 anos. E outra pessoa, o senhor Rolando Sampaio, que era pai de um elemento da minha equipa técnica, e foi um treinador que me ensinou que jogar futebol não era a única coisa que eu tinha de aprender, tinha de aprender muito mais além do jogo, tinha de crescer como pessoa. Fizeram de mim um desportista. Foram duas referências como treinadores e como pessoas. Hoje, se fui o desportista que fui, o treinador que sou e um bocadinho da pessoa que sou também, devo-o a essas duas pessoas. A outro nível, claro que nos identificamos com formas de jogar e com formas de liderar. Tenho um sem número de treinadores que admiro, mesmo não me identificando muito com a forma de jogar de alguns deles, mas reconhecendo-lhes competência, como por exemplo o Simeone, do Atlético de Madrid. Acho que é um treinador fantástico a todos os níveis. Quando consegue ser campeão no campeonato espanhol, contra Real Madrid e Barcelona... Penso que algo de muito especial está ali.
Exemplo curioso, já que a forma de jogar é diferente da do Famalicão.
Claro, mas gosto de analisar o treinador...
Pela efetividade do trabalho que ele quer passar, é isso?
Exatamente, não importa se me identifico com a forma de jogar. Há muitas formas de ter sucesso. Tentei perceber como é que ele chega ao sucesso e admiro-o muito.
Em casa, quando te sentas para ver futebol, o que vês? Ou só vês o Famalicão?
Vejo o Famalicão, seguramente [risos]. É um bocadinho como a música: gosto de vários tipos de música e também gosto de ver várias formas de jogar, em vários campeonatos. É claro que qualquer jogo da Premier League é um bom jogo para ver; em Espanha, o Atlético de Madrid... Mas vejo vários campeonatos.
Dos jogadores que treinaste, há algum que tenha perfil de treinador?
Sim. É engraçado que quando estivemos no Hull City havia um jogador que nos questionava sempre o porquê de fazermos determinados exercícios, qual era o objetivo disto e daquilo...
É raro isso acontecer?
É raro. Até porque o jogador muitas vezes pode ficar com a sensação que está a melindrar o treinador, mas eu por acaso até gosto que os jogadores questionem. Faço questão de explicar aos jogadores o porquê do exercício, quando o explico, porque acho que é fundamental perceberem-no. E esse jogador questionava-nos muitas vezes. Quando acabou a época, nós saímos, mas na altura fomos informados que ele iria seguir a carreira de treinador e que iria ser adjunto do nosso colega, e chegou a treinador adjunto da seleção belga, portanto já se estava a preparar, e muito, enquanto estava a jogar.
Dás essa abertura aos jogadores de falarem contigo e questionarem?
Sim, penso que essa relação e essa abertura são importantes. Explico ao jogador o que pretendo com o exercício ou com o comportamento para ele também procurar isso no jogo. Se eu peço ao jogador para ir para esquerda, mas ele não sabe o porquê da ida para a esquerda, quando até se sente confortável em ir pela direita, então temos de explicar, quer coletivamente, quer individualmente. Quando definimos uma determinada estratégia para o jogo, fazemos sempre questão de dizer que a estratégia é esta, devido a isto, seja o que for. Explicamos sempre as coisas.

RUI DUARTE SILVA
Na preparação de uma semana antes de um jogo, que percentagem é que tem a análise sobre a outra equipa e que percentagem tem o teu modelo?
Nós tentamos sempre saber o máximo possível sobre a equipa adversária. No primeiro dia da semana tenho o relatório exaustivo do departamento de análise sobre a equipa adversária. Depois disso, definimos a estratégia para o jogo, sem nunca alterar a nossa forma de jogar e de abordar os jogos, isso nunca desvirtuamos. A estratégia nunca se sobrepõe à nossa forma de jogar. A estratégia existe, mas estamos a falar de situações pontuais e de nuances, numa ou noutra questão. Até podemos chegar à conclusão que é tudo exatamente igual ao jogo anterior, porque estamos bem e estamos fortes. Depois há questões de bola parada que se podem tentar ajustar para desequilibrar o adversário, mas nada que mude a tua forma de jogar.
Para ti não seria viável ter uma mudança estrutural, ao nível do sistema?
Até pode acontecer. A equipa tem de estar preparada para alterações. Repara, quando há uma expulsão - e nós já tivemos três, nas Aves, em Braga e com o Moreirense -, temos de mudar alguma coisa, temos de destapar para tapar e o jogador tem de ter essa flexibilidade tática. Mas isso não implica mudar a forma de jogar. Nós temos um plano B treinado, em termos táticos, mas nunca o pusemos, até à data, em prática. Achamos que não foi ainda necessário colocá-lo em prática.
Imagino que não me vás dizer qual é.
Claro que não [risos].
Tens alguma meta enquanto treinador?
Estou muito tranquilo e confortável. Acho que as experiências que tive no passado me deixaram realizado. Ok, não foi como treinador principal, foi como adjunto, mas eu naquelas equipas técnicas de que fiz parte sempre me senti importante, portanto sabia que muito daquele sucesso também era meu.
Hoje em dia o treinador já não faz nada sozinho.
Sim, sim. Sem dúvida. Se nós temos tido sucesso até agora aqui, muito o devo às pessoas que trabalham comigo, que são pessoas hiper competentes, que podem trabalhar no alto nível facilmente. Voltando atrás: essas experiências que tive deram-me tranquilidade e conforto. Não vim para o Famalicão com o intuito de ter uma rampa de lançamento para onde quer que seja, ir para aqui ou para ali. Vivi o que vivi, disputei competições muito exigentes e a decisão de vir para aqui foi tranquila. O que me preocupa mais é mostrar a capacidade que temos, a nossa forma de jogar e como potenciar os jogadores, sem pensar no próximo ano, nem no clube A, B ou C. Isso não me passa pela cabeça.
Terminar a época em 14º seria satisfatório?
O objetivo estaria cumprido...
Mas?
Mas agora, se for perguntar, um a um, aos meus jogadores, se eles assinavam um 14º lugar, eles diziam todos que não. Nós somos profissionais, estamos cá todos os dias a trabalhar, no intuito de ganhar os jogos, portanto jamais colocaria uma fasquia tão baixa, para o clube e dentro do balneário. Nós queremos ir mais para cima, queremos ganhar jogos, queremos ganhar espaço no futebol português. A nossa ambição é bem maior do que o 14º lugar. O nosso trabalho permitiu-nos estar no topo da tabela e vou ser sincero: isso sabe muito bem. É bom estar em 1º, em 2º e em 3º. Vamos lutar, mesmo sabendo que é muito difícil acabar em lugares de topo. O desporto é isto mesmo: é lutar para ganhar.
O Famalicão é a equipa que joga melhor em Portugal?
Ah, isso não sou eu que tenho de dizer. O que acho é que há equipas a jogar bem em Portugal.
Gostas de ver...
O FC Porto e o Benfica, o Sporting ainda algo inconstante pelas mudanças, o Vitória de Guimarães muito forte, o Moreirense muito organizado, o Santa Clara muito organizado também... Há várias equipas, obviamente todas elas diferentes.
O Vítor Oliveira disse recentemente que a Liga era nivelada por baixo. Partilhas essa ideia?
Não tenho base comparativa dos outros anos. Agora, que temos bons jogadores e boas equipas, temos. Se podíamos ter melhores jogos e melhores espetáculos? Sim, aí também estou de acordo. Para a qualidade de treinadores que temos, para a qualidade de jogadores que temos, acho que os espetáculos de futebol em Portugal podiam ser melhores.
O que é preciso para que isso aconteça?
Um sem número de coisas, não é só chegar e dizer que vai haver espetáculo. Já falámos sobre a Premier League e disse-te que era incomparável, porque é uma máquina de fazer espetáculo, mas se calhar valia a pena ver o exemplo do início da Premier League, em 1992. Aí, o futebol inglês tinha um sem número de problemas muito mais graves do que aqueles que nós temos hoje em dia, quer com a violência, com as apostas, com álcool e drogas, nunca mais acabava. E eles, com um projeto muito bom e organizado, conseguiram criar o espetáculo que a prova é hoje. O que temos de fazer é um trabalho estrutural e depois tudo vai de arrasto e cria um espetáculo melhor. Se calhar uma das premissas é fazer uma competição que não fique quatro semanas parada.
Gostavas de voltar à Premier League?
Como espetador, vou voltar, seguramente [risos]. Como treinador, sendo esse um campeonato tão apelativo, é impossível dizer que não. Mas obviamente não perco dois minutos a pensar nisso. Neste momento o meu grande objetivo é fazer do Famalicão um clube melhor, ajudar os jogadores a chegar a outros patamares.
Chegar à Europa, como no Estoril?
Sei um bocadinho qual é o caminho que se deve seguir para chegar lá. É um facto que são situações muito similares, mas é algo difícil. Como disse, depois da manutenção, então vamos pensar noutras coisas, porque somos pessoas ambiciosas e queremos conquistar outras coisas. Se pudermos ir à luta por um lugar europeu, vamos à luta.
Versão alargada da entrevista originalmente publicada na edição semanal do Expresso de 7 de dezembro de 2019