Aproveitando o facto de estarmos aqui no Parque da Cidade, pergunto-lhe se era possível termos uma equipa do Fernando a treinar nesta mata.
Não. Só se fosse para fazer um daqueles campeonatos de paintball ou uma dinâmica de busca ao tesouro ou coisa assim [risos].
Ou seja, coisas lúdicas.
Coisas lúdicas, para criar espírito de equipa, haver aqui umas brincadeiras… Só para isso. Gosto deste espaço, ainda para mais aqui com o mar perto, porque sou um apaixonado pelo mar. De resto… Ou então, se não tiveres mesmo campo para treinar, vens brincar aqui ao esconde esconde, mas isso é porque tens de improvisar. Não é propriamente a minha praia trazer jogadores para trabalharem o que acho importante para o Parque da Cidade.
Lembro-me que quando falei com o Luís Castro ele disse-me que no início da carreira fez coisas que hoje não faria enquanto treinador: fez porque na altura se fazia assim e ele não sabia como fazer. O Fernando também?
Essa é uma questão pertinente, mas eu hoje faço coisas que fazia há 20 anos. Vou explicar porquê. Tive quatro momentos que me marcaram. Tive um treinador muito novo, chamado Fernando Pereira, antigo central do Salgueiros, um senhor que ainda é vivo, felizmente. Fui treinado por ele no Marco Canaveses e a perspetiva que ele trouxe para o jogo e para o treino fez-me abrir os olhos. A maneira como ele conseguiu influenciar-me fez-me logo pensar nessa altura: “Vou ser treinador”.
Quando é que isso foi?
Tinha 23 anos. Agora tenho 59, portanto foi há muitos anos [risos]. Estive no Marco Canaveses, depois fui para Paredes e joguei mais dois anos, mas depois meti-me nos negócios e parei. E o que é que me impressionou no Fernando Pereira? O futebol não era só a gente jogar uns com os outros, havia ali mais qualquer coisa. Mas, essencialmente, lidava com coisas muito simples, coisas que que hoje ainda ponho em prática para avançar nas minhas equipas. São coisas que têm a ver com os princípios básicos do jogo. O exemplo mais simples é dizer assim: dois jogadores têm de saber sempre como passar por um, três jogadores têm de saber sempre como passar por dois. E ele explicou-me aquilo de uma maneira, com um determinado tipo de movimentos, baseado no que toda a gente conhece como ‘overlap’, e depois num outro exercício que ainda hoje aplico, que é o ‘criss cross’, aquele exercício com bola no meio, em que três jogadores vão trocando a bola, com o portador sempre a transportar a bola para o meio e os outros a dar linhas de passe. Esse exercício, e a maneira como o aplicávamos, achei fantástico, naquela altura. E não só: era a maneira como íamos avançando no terreno, ultrapassando obstáculos, e depois a maneira como finalizávamos. A influência desse treinador, juntamente com a minha experiência de 12 anos como jogador de futsal, que na altura era muito baseado na metodologia de jogos reduzidos - no futsal estamos a falar guarda-redes mais quatro contra quatro mais guarda-redes...
Em que tem de haver a criação de superioridade numérica para chegar à baliza adversária.
Absolutamente. Mas o nosso jogo - e estava lá o Rui Quinta também a jogar - ainda tinha outra particularidade: enquanto a maior parte das equipas jogava em 1-3, com um pivô, nós jogávamos com 2-2. Aquilo criava um problema dos diabos para os adversários, com as dinâmicas que nós criávamos no quadrado. Ajudou-me a perceber melhor o processo ofensivo e o meu processo ofensivo neste momento é trabalhado praticamente até ao guarda-redes. Porquê? Porque, no futsal, se chutares diretamente à baliza, como ela é pequena, o guarda-redes provavelmente defende. Então nós atacamos o guarda-redes e jogamos ao segundo poste, por exemplo. Ou atacamos o guarda-redes, jogamos para trás e encostamos. Isso para mim, hoje, é a base do jogo de qualidade. É aquilo que, no fundo, vemos as grandes equipas a fazer, o Barcelona, o City… Eles podiam marcar grandes golos mas a maioria das vezes só encostam, porque entram dentro da área com a bola e depois os golos são de encostar. Eles só encostam. E a minha realidade, quando comecei a treinar, em que não escolhes jogadores para as tuas ideias, que era o que toda a gente gostaria, era tentar dominar através do quadrado e da dinâmica que tínhamos. Para a Mariana, que também é treinadora, é fácil perceber: 2-2, não é, e eu estou a ser pressionado, jogo ao meu colega e enquanto a bola faz este percurso, ele aqui pelo meio já joga ao outro da frente, e eu já estou aqui no meio para receber. Atacamos um e temos sempre a possibilidade de criar várias linhas de passe, portanto, no fundo, este trabalho era fazer com que o portador da bola tivesse sempre linhas de passe à direita e à esquerda. Depois, o atacar o guarda-redes é necessário quando não tens grandes argumentos, porque atacas o guarda-redes e ele fica fixado em ti... É o que costumo dizer: a diferença entre possibilidade e probabilidade. Há possibilidade de fazer um contra um contra o guarda-redes, mas em dez vezes, quantas é que ganhas? Se calhar duas ou três. Mas se já for quatro ou cinco é porque já estás na 1ª Liga. Se for seis ou sete, se calhar estás na Liga espanhola. Esses jogadores custam dinheiro. Mas isto para dizer que, num processo em que tu constróis até chegares contra o guarda-redes, se atacas o guarda-redes e tens uma opção de passe ao lado, acho que em dez vezes provavelmente marcas oito ou nove. A minha visão das coisas passa por aí. É criar condições para que os jogadores se sintam confortáveis, mas que lhes aumentem a probabilidade de terem sucesso em todas as ações que fazem. Naquela altura, o futsal deu-me essa riqueza. Como estava a dizer, houve quatro coisas que me influenciaram: o treinador; esta visão do futsal; e, depois, a visão do Carlos Queiroz na altura, quando ele faz uma cassete para aprender a jogar futebol...
E redige o artigo da "simplificação da estrutura complexa do jogo".
Exatamente. É aí que começo a perceber a lógica do jogo. Porque estamos a falar de dez contra dez, mais os guarda-redes, mas no sítio onde está a bola muitas vezes é um para um, ou dois para dois, ou três para dois... Portanto, o jogo decide-se na maneira como tu resolves isso. Ele fez isso com aquela geração, eram as ações que ele trabalhava para depois aumentar a complexidade. E só dominando isso, essa base, é que depois consegues crescer para outras coisas. Para quem não tem formação académica, como eu, a quarta influência ajudou. Logo no meu primeiro nível, quando resolvi ser treinador e fui tirar o curso com 23 anos, aparece-me um professor chamado Monge da Silva, uma referência da educação física em Portugal, que trabalhou com a seleção portuguesa no Mundial do México, e que dizia assim: "Meus amigos, educação física? Zero. A lógica da preparação física é uma batata. Porque equipas muito bem preparadas fisicamente fartam-se de perder jogos e equipas mal preparadas ganham jogos. Treinem, ponham os jogadores a jogar e esqueçam a preparação física". Aquilo aliviou-me. Porquê? Porque nós temos sempre aquela ideia: vou fazer um exercício e preciso de trabalhar a reação. Mas com que carga? Depois comecei a perceber as cargas e a adaptação. Com que tempo? A força, a velocidade, a resistência, isso como é que é? Aquilo desmontou-me e deixei de dar importância. E comecei a pensar: dou uns pontapés com uns amigos, três vezes por semana. No primeiro jogo, com certeza vamos estar todos partidos, mas no segundo jogo vamos melhorar e no terceiro também. Portanto, passado um mês, já andávamos bem. Ou seja, tu numa hora e meia de treino pões os gajos a saltar e a pinchar, dentro daquilo que tu queres, e aquilo, por acumulação, vai dar-te aquilo que precisas. E como eu nunca gostei de correr [risos] e costuma dizer-se "não faças aos outros aquilo que não queres que façam a ti", nunca os pus a correr, mas pus a andar. Por exemplo, vamos imaginar que num contexto de jogo eu sou lateral, a Mariana é a ala e o Rui [o fotojornalista da Tribuna Expresso] é o ponta de lança ou o médio. Nós no jogo temos movimentos conjuntos, portanto eu começo, de certa maneira, a trabalhar estas relações. Trabalho as relações entre os jogadores e quando isto começa a andar, uma, duas, três, nós começamos a conhecer-nos melhor e eu começo a perceber como é que tenho de dar a bola à Mariana, a Mariana ao Rui, e por aí fora. As relações e aquilo que vais criando vão dar-te também aquilo que precisas para sustentar essa atividade, no que diz respeito à parte física. Portanto, depois foquei-me no que era importante.

Antes de ir para a China, Fernando Valente treinou o Santa Clara, em 2015/16, e o Aves, em 14/15
Rui Duarte Silva
O jogo?
Às vezes digo à malta nova que vem falar comigo: vocês quando estão sentados a ver um jogo de futebol, vocês olham para o gráfico da força e da velocidade e da flexibilidade, é isso que voces vêem? Não vêem nada disso, só vêem aquilo que gostam, os golos, as assistências... Isto tudo para dizer o quê, voltando atrás: desde esse tempo até agora, a verdade é que mudei pouco. Claro que aperfeiçoei muitas coisas, principalmente no modo de operacionalizar as coisas, porque vou reajustando. Mas, ao mesmo tempo, ainda continuo a fazer algumas coisas... Por exemplo, na primeira semana do Varzim, sabendo que tínhamos jogo logo no domingo, não podia avançar. Para mim foi como se fosse a pré-época, porque eu na minha pré-época começo logo a trabalhar uma coisa que para mim é a mais importante, que é como é que eles hão-de ter bola. Toda a gente quer ter bola, não é, mas depois para a gente se relacionar tem de haver aqui alguma ordem, alguma organização, não vamos estar todos ao monte. Isso é uma grande dificuldade que existe. Mas respondendo então à sua pergunta, para avançar [risos]: há muitas coisas em que acreditava naquela altura e em que ainda agora continuo a acreditar. E ainda continuo a achar que há muita gente que está muito longe de perceber para que é que isto serve. E é por isso que vou publicando nas redes sociais - devo ser o treinador que mais vídeos edita [risos] - vídeos dos jogos. Vejam lá que até os gajos da China fazem estas coisas todas, que esta merda não é assim tão difícil.
Já que fala desses vídeos e da China: normalmente diz-se que um treinador quando chega a um clube novo tem de se adaptar aos jogadores e adaptar a sua ideia de jogo. É assim ou é possível manter a mesma ideia de jogo em qualquer clube, com qualquer tipo de jogador?
Sou apologista de que os jogadores têm de jogar o jogo que eu quero. Acho que o Setién também diz isso. Os jogadores têm de jogar o jogo que os treinadores querem. O meu processo, aquilo em que eu invisto mais, independentemente de ser na China, e é isso que tento provar com imagens, porque eu costumo dizer que sou o Zé da merda cá do sítio, ninguém me conhece, porque se for um determinado fulano a dizer isto, toda a gente vai gostar e copiar. Eu não, portanto eu tenho de fundamentar através de quê? Das imagens. É com isso que eu me divirto. Ai vocês falam que é preciso jogadores para fazer? Não, não, está aqui demonstrado: com o Paredes, com o Espinho, com o Santa Clara, até na China. Aquilo que transmito em vários contextos é claro que tem alguma diferença no que diz respeito às características dos jogadores, mas também... Um fulano de 25 ou 26 anos, ou mesmo de 30, e eu até apanhei alguns de 34 e eles diziam-me assim: "Ó mister, mas nunca me tinham falado disto." O que eu pergunto é: às características que eles têm e ao que já sabem, não podem adicionar outras coisas que os podem ajudar a ser melhores jogadores? Não há dúvida nenhuma que aquilo que um jogador fez durante a carreira é o que vai orientá-lo para ser determinado tipo de jogador, mas isso, para mim, é um processo que nunca está fechado. A bagagem futebolística que ele tem para resolver os problemas do jogo é outra coisa, porque muitos dos problemas do jogo não têm necessariamente a ver com as características dos jogadores, têm também a ver com outro tipo de conhecimento que eles têm de dominar para depois poderem pôr em prática as características que têm. Porque nós quando falamos em características, falamos normalmente em situações de desempenho com bola, quando eles são mais rápidos, ou driblam bem, ou seja o que for. Agora, penso é que, neste momento, o défice cultural do jogador, o défice da bagagem futebolística do jogador é evidente. Aquilo que eu consigo transmitir aos jogadores, a minha influência sobre eles, que é, no fundo, o meu objetivo, porque quero deixar-lhes uma marca, para saber que eles se valorizaram em algumas coisas quando olham para o jogo, coisas que os vão ajudar não só ali mas depois no futuro também. Isso tem sido gratificante, porque eles reconhecem isso.
Comparando as equipas seniores que treinou e os juniores chineses, é muito mais difícil moldar um jogador sénior do que um jovem?
Nos últimos 10 anos, a área em que investi mais foi a área mental. Além do coaching, fiz também uma certificação em PNL, programação neurolinguística, e estas são pequenas ferramentas que nos ajudam a perceber um bocadinho a maneira como passas a mensagem, a maneira como percebes o jogador... Porque a grande arma do treinador, hoje em dia, não é aquilo que ele sabe: é a maneira como ele transmite as coisas.
Porque se os jogadores não souberem...
Absolutamente. Costumo perguntar-lhes: o que é que tu entendeste daquilo que eu quero que tu faças? Esta é que é a grande questão. Ainda hoje de manhã, num conversa: "Ah mas nós treinávamos muito a posse de bola". Todas as equipas treinam a posse de bola. É uma coisa incrível, só oiço posse de bola. Alguns até são contra, mas treinam. Porque ao menos gastam o tempo de treino a dizer que também fazem posse de bola. Mas depois a Mariana sabe que o jogo não traduz isso. "Nós treinávamos posse de bola, mas depois no jogo não sei o que é que se passava". Um dos pressupostos da PNL é precisamente isto: a comunicação só vale pelo resultado que obténs dela. Costumo dar um exemplo muito simples: estou em minha casa, a comida está na mesa e eu chamo os meus filhos. E eles nem uma nem duas. À terceira, quando vou para eles para lhes puxar as orelhas, é quando eles vêm, porque não tinham entendido antes. E no treino acontece muito isto. Nós às vezes treinamos muito aquilo, mas não está a sair. Ok, então o que estás a fazer para que isso comece a sair? Este é que é o grande desafio. Na China, com um tradutor que não percebe nada de futebol e tu nem sabes o que eles traduzem, tens de ir ao baú, buscar outras ferramentas para passar a tua mensagem. Mas o futebol tem uma vantagem, porque tem várias maneiras de comunicar: primeiro, falar do conceito, e isso na China era difícil; depois, treinares quase sem oposição, para entenderem o conceito na prática - "tu, tu e tu vão fazer este ou aquele movimento"; e depois introduzir num exercício já mais complexo, essencialmente com jogo, e ir aumentando o número de jogadores. Vamos passando estas fases para perceber as coisas. E quando eles não executam aquilo que eu quero, eu, através de gestos, através da modelação, que é uma maneira que eu uso muito para perceberem as coisas, exemplifico o que fazer no contexto e é mais fácil perceber. Portanto, o processo de transmissão de ideias passa muito pela tua capacidade de influência, de modelar, e, depois, em função daquilo que eles te vão dando, vais reajustando. Na China, obviamente também vais aprendendo uma ou outra palavra. Falar não, porque falar é muito complicado, mas saber uma ou outra palavra para dar mais dinâmica. O desafio ali foi muito grande, claro. Foi quase como aqui no primeiro jogo com o Varzim, os jogadores só esticam e eu, eh pá, pronto. Na China a frase que usava no treino era: "Play or run?" Queres jogar ou queres correr? Para mim é para jogar. Se não queres jogar com os colegas, vais correr. Eles esticavam e eu: "Parou! Run?" E eles: "No, no, no, play". "Ah, ok, let's play". Havia vezes em que dizia: "Antes de meterem a bola na frente, têm de dar 10 toques aqui". Para ver se eles começavam a olhar uns para os outros, porque aquilo era só para a frente. São pequenos exemplos de estratégias que vamos usando.
Um dos lemas que o Fernando coloca nos vídeos que publica é "play well, score easy".
[risos] Isso foi uma estratégia de comunicação que lancei. Hoje anda tudo muito excitado com a primeira fase de construção, o sair a jogar, sair da pressão... Passa o meio-campo e às vezes aquilo já começa a fugir, começa a esticar. O que eu gosto de ver é como é que passas uma linha de quatro. Quando as equipas baixam e ficam lá atrás - isso para mim é que é o grande desafio. Por isso é que quando me perguntam por onde começo, digo sempre que começo pela parte ofensiva. 90 ou 95% do meu trabalho se calhar é pelo último terço, para criar, precisamente, perante dificuldades. Ainda este ano já ouvi treinadores da 1ª Liga dizer assim: "Tivemos pouca imaginação, não fomos criativos, não fomos eficazes". E porquê? Criar como? Finalizar de que maneira? É para chegar a 30 metros e mandar uma... No meu primeiro jogo no Varzim ganhámos com um golo, meu Deus [risos]. É a tal questão da probabilidade: é possível, no futebol, o guarda-redes marcar golo de uma baliza à outra, mas é pouco provável que isso aconteça. O miúdo deu-lhe um queque e ganhámos. Também é possível ganhar assim, claro, mas é pouco provável que aconteça. Portanto, o que quero mostrar nos vídeos é que quando jogamos bem, ganhamos mais vezes. É nisso que acredito, sinto isso. Os gajos do futebol normalmente dizem: "Ai é, não ganhes que tu vês logo. Andas aí armado em não sei quê, vai-te lixar. Não ganhes que logo vês". A gente sente isso, não é? No dia em que o Guardiola perde é festa grande em muitos sítios, porque realmente aquilo atrapalha um bocado. Este processo ofensivo, com o "marcar fácil", é provar que, se eu jogar bem, com um determinado tipo de ideias, a maneira como abordo o último terço e o guarda-redes adversário é criar condições para chegar ali e encostar. Comecei a minha presença como treinador profissional a promover o jogo e o jogador...
No Aves?
No Aves. Porque acho que, mesmo não tendo orientação em marketing e assuntos do género, sempre percebi cedo que hoje a facilidade com que vemos as redes sociais tem de ser explorada. E eu, lá está, como era o Zé da merda lá do sítio, servi-me das redes: criei um canal no YouTube, criei um Facebook e fui trabalhando isso, especialmente quando voltei da China. Mas andei durante muito tempo a falar na promoção do jogo e do jogador. Na China também estive dois anos, portanto tive mais tempo para desenvolver algumas coisas, apesar de ter tido experiências difíceis, porque lidei com dez grupos diferentes e entrei em competições com dez grupos diferentes. Íamos aqui ou ali e de repente mandavam-me sete jogadores novos e eu ficava cego. Mas nos últimos tempos consegui ter os miúdos mais tempo e construímos ali algumas coisas giras. O "play well, score easy" é realmente uma estratégia que utilizei para mostrar que, ao contrário do que algumas pessoas dizem, não é assim tão difícil, dá para jogar bem e marcar fácil em qualquer lado. E isso provado com vídeos. É esta a visão que tenho do jogo, em vários contextos. São vídeos com menos de um minuto que coloco online, em português e em inglês, para verem se realmente há ali padrões ou não. A Mariana pode ver que normalmente não fazemos golos de cruzamentos, são golos de jogadas dentro da área em que os jogadores até passam à baliza - é esse o termo que mais gosto de utilizar.
O Fernando nota em Portugal algum preconceito contra os treinadores que realmente tentam jogar esse jogo de cariz mais ofensivo? Assim que há um mau resultado, aparece logo alguém a dizer aquilo de "tens a mania que queres jogar"...
É tal e qual. Gosta-se mais de valorizar o "esforço". Partilho muito das ideias do Ángel Cappa, um treinador argentino já de alguma idade, que me influenciou bastante pelo discurso dele. E ele diz que a inteligência e a qualidade estão sempre sob suspeita. As pessoas gostam é de ver o esforço, a dor, o sentimento, porque isso, pronto, é mais fácil ver e avaliar. É mais fácil avaliar um fulano que corre e que luta e "dá o máximo"...
É pela falta de conhecimento futebolístico?
Acho que, por um lado, é pela falta de conhecimento sobre o jogo e sobre o treino, sobre como as coisas se fazem. Por outro lado, é uma defesa para justificar, muitas vezes, a incompetência. Não jogamos, mas lutar e correr temos de conseguir. E o futebol em Portugal é muito sofrimento, não é? Sangue, suor e lágrimas.
A bola sofre.
A bola é que sofre mais, mas os jogadores também. Tenho pena é dos jogadores. Eu estou rouco porque tenho pena de quanto eles sofrem. Ninguém merece um castigo desses. Tenho pena dos pontas de lança em Portugal, porque a maneira como os servem, pelo ar, a pressão que levam dos centrais, a quantidade de bolas que não recebem... É muito complicado. Há alguma incompetência quando a única conversa é refugiar-se no esforço, na entrega... Porque isso é o mais fácil. E é mais fácil, também, o jogador refugiar-se nisso. "Demos tudo". Ok, mas o que o jogador quer é que o ajudem a resolver aquilo que acontece.
Não sei se o Fernando viu recentemente uma flash interview do José Castro em que ele diz algo parecido a isso.
Por acaso ouvi. Foi absolutamente isso. Nós [Varzim] fomos jogar a Arouca e levámos um massacre, de certa maneira, mas sabia que tínhamos de cumprir em alguns comportamentos. Fomos competentes numa parte do jogo, porque estivemos bem posicionados e sabíamos como defender bolas para a área. Mas houve momentos em que eles começaram a olhar uns para os outros e já puseram ali algumas coisas nas quais acredito. Aliás, construímos um golo que até vem de uma situação boa. Agora, não há dúvida nenhuma que nós enganamos o jogador quando só lhe dizemos que temos de ser mais agressivos, que temos de ser mais intensos. Ele também quer que lhe digam outras coisas. Normalmente diz-se que as vitórias é que dão confiança, mas digo o contrário. Temos é de ter confiança para poder jogar melhor e depois disso as vitórias aparecem. Muitas vezes invertemos as coisas porque nos dá jeito justificar a nossa incompetência ou a nossa ignorância. Porque nós temos é de ajudar os jogadores a resolver os problemas do jogo. Cabe na cabeça de alguém... quando falamos em jogo, falamos em qualquer coisa lúdica, não é? Ninguém joga nada para sofrer. A mim custa-me, porque o futebol é um espetáculo. Estou ali para criar alguma coisa. Para mim, jogar bem e bonito é fundamental. O Luís Castro fala do lado estético do jogo e eu sou um apaixonado pelo lado estético do jogo, porque é esse lado que me ajuda a promover o jogo e os jogadores. Quando vemos uma equipa que gostamos de ver a jogar... até os próprios jogadores vibram. Na China, os miúdos quando começaram a perceber como é que aquilo andava até se entusiasmavam. Hoje em dia as pessoas escusam-se, de certo modo. É mais fácil optar pela entrega e pelo esforço. Costuma dizer-se que o esforço não se negoceia. E o Cappa pergunta: então negoceia-se o quê no futebol? Parece que morrer temos de morrer, o resto, pronto, logo se vê. Não é a minha visão das coisas. Acho que o jogo é para se jogar, é para desfrutar e é para tentar ser competente. Se me pergunta se fui para Arouca jogar à defesa, nunca na vida. Mas o adversário obrigou-me a jogar à defesa porque os meus jogadores ainda não conseguiam tão bem segurar a bola, então o adversário teve mérito. Tomara eu não estar ali atrás. O problema está sempre na bola. A Mariana deve ter sensibilidade para perceber isto: defender é uma consequência de perder a bola. Se não quero defender, tenho primeiro de perceber como é que tenho de guardar a bola. E isso é muito mais complexo do que o resto. Costumo dizer: pego numa equipa de râguebi e organizo-a defensivamente e eles ficam lá. Depois a bola é que vem atrapalhar tudo [risos]. Acredito que o nível do jogador português está muito acima do nível do jogo que se joga em Portugal. Porque depois os jogadores vão para outros países e conseguem desenvolver-se e ser competentes.

Rui Duarte Silva
Um bom exemplo disso não é o Sporting, desde que mudou de treinador?
Absolutamente. Os jogadores jogam aquilo que os treinadores querem. E temos outro exemplo: o Sarri no Chelsea. Chegou ali e ainda por cima em Inglaterra, onde dizem que não sei quê, que é muito difícil. Chegou ali e os jogadores começaram a andar. Mas, repare, perderam dois jogos e já estavam a dizer que ele era como o Scolari. É de um absurdo... É mesmo de quem tem necessidade de avançar com opiniões e criticar de maneira fútil, barata.
E é engraçado que o Chelsea depois ganha ao City mas nem joga bem, teve alguma felicidade no resultado.
Absolutamente. O Sarri até dizia que nem sabia como havia de ganhar ao City [risos]. O City é... Acho que dá para perceber que, para mim, o Guardiola é o melhor treinador de todos os tempos. Já passei por alguns e apreciei o Sacchi e tudo mais, houve muitos a contribuir para o futebol, mas, para mim, o Guardiola é o melhor. Porquê? Ele provou em vários contextos que consegue produzir aquele tipo de jogo. Também é verdade que tem muitos dos melhores jogadores, mas a competição é equilibrada. Mas digo isto essencialmente pelas ideias que ele trouxe para o jogo, para a maneira como ele consegue ir ganhando. É isso que me faz feliz. Mas, repito: os jogadores jogam o jogo dos treinadores. E esse contexto do Sporting é uma prova clara disso. Os jogadores que lá estão têm um potencial fantástico, mas sofrem, sofrem, sofrem. Também passo esta mensagem: a primeira coisa que os jogadores devem fazer quando um treinador novo chega é perceber como é que é o "burro" do treinador, se quiserem jogar [risos]. Tenho dois filhos que jogam e digo-lhes isso. O meu mais velho, que está no Vizela, já percebeu isso. O mais novo acho que não percebe isso [risos]. Se queres entrar na equipa, tens de perceber. E depois então acrescenta diferença, se não és só mais um. E digo já outra coisa sobre as características dos jogadores, e ainda bem que a Mariana percebe bem de futebol. Hoje em dia, faz-se assim: bola no guarda-redes, primeira fase de construção, laterais projetados, extremos dentro e o ponta ali na frente, ou seja, já são cinco naquela linha lá da frente, é uma tática ofensiva que deve dar golos que é uma coisa doida. Depois temos um fulano médio que agora baixa para meio dos centrais e diz aos centrais 'opá, vocês não jogam nada, por isso dêem-me a bola a mim que eu é que sei'. Então já temos aqui uma data de jogadores que estão fora do seu habitat natural, não é? Porque temos um lateral a fazer de extremo, ou seja, um lateral contra um lateral, é uma coisa que se vê muito hoje, a ter de resolver muitas situações de um contra um; depois pomos um extremo, que se calhar é um fulano que precisa de espaço e de encarar de frente para realmente fazer valer, a jogar de costas e apertado; e um médio a fazer de central. E o curioso é que só voltam à posição quando não têm bola. Ninguém merece um castigo destes [risos]. Anda aqui muita coisa invertida, porquê? Porque um dia alguém fez na sua equipa e de repente toda a gente decidiu que também ia fazer, mas as coisas não são assim, não é? Agora até há equipas a defender com linhas de cinco e de seis jogadores. Será que os adversários atacam tanto que é preciso meter lá tanta gente?
São modas?
Não alinho em modas só porque sim. Há 20 e tal anos que normalmente treino com duas linhas de quatro e dois avançados. Mas, naquela altura em que o fazia, ui, aquilo já era "ultrapassado". Mas não olho para o 4-4-2 por ser 4-4-2, olho porque tenho a preocupação de tornar o jogo mais confortável para os jogadores. Vou dar um exemplo: de um lado do jogo, temos, a priori, quatro jogadores a defender; e do outro lado temos um desgraçado sozinho, que ainda tem de ajudar a defender, para não ser acusado de nada. E os de lá de trás quando pegam na bola metem no desgraçado lá da frente, para ver se ele ainda segura a bola ou marca golo. Eh pá, ninguém merece um castigo desses. Então vamos meter aqui dois, pelo menos ajudam-se um ao outro, e o que lhes peço no início é assim: vocês são como irmãos, têm de andar sempre juntos. E as linhas de quatro porquê? Porque quando eu jogava diziam-me: "Eh pá, tens de marcar o oito ou o sete ou o que fosse". E eu andava aqui e ali atrás dos gajos. Mas quando percebi o conceito de zona, de controlo do espaço consoante a bola e a minha baliza, metemos ali duas linhas de quatro. Para mim, é muito fácil pegar em quatro pinheiros e dizer: vocês têm de andar assim. Explicamos a penetração, as coberturas, o básico para eles andaram bem: vai um, os outros ficam, e por aí fora. É a maneira mais fácil de quem não tem grande bagagem começar a perceber as coisas, esquecendo o adversário. Isto assim não é difícil. Agora, claro que quando a bola entra nisto, às vezes estamos em 4-2-4, às vezes em 3-5-2, sei lá, depende. Mas a minha visão vai sempre na procura de soluções que ajudem os jogadores, consoante a nossa realidade, sendo certo que se são jogadores então ao menos passar e rececionar a bola acho que sabem fazer. Agora no Varzim estamos a ver isto das linhas, por exemplo, porque todos têm de saber fazer isto. Porque o jogo às vezes acaba por ser tão aleatório que todos os jogadores têm de saber tudo: todos têm de saber defender e todos têm de saber criar. Os meus defesas têm de saber conduzir, os meus laterais têm de aparecer na área, por dentro e por fora...
Não sei se viu na semana passada o Sidnei, defesa central do Bétis, a marcar um golo depois de conduzir a bola quase a partir do meio-campo
Não pode. Os centrais não podem fazer isso. Só podem ficar ali e passar para alguém [risos]. Os meus vão, claro. Claro que depois depende, temos alguns movimentos criados... Por exemplo, o extremo adversário quando vem pressionar o lateral se calhar não está à espera que ele o finte, mas quando ele foge dele e sai dessa pressão, por dentro ou por fora, desmonta logo tudo. E o com o central é o mesmo. Normalmente são dois centrais contra um avançado, não é? Então, se deixa de haver avançado, depois quem é que sai ao central se ele resolve ir?
Assim que sair outro já está criado o espaço para a bola entrar.
Exato. Isto são conceitos simples, para quem percebe, que se podem desenvolver em qualquer contexto. E depois se há perda de bola, há outro, o que estiver mais perto, que vai ocupar aquele lugar e que sabe o que tem de fazer ali. Passei a minha vida a construir este tipo de dinâmicas para ir respondendo às coisas do jogo. Se não sabes o que se passa no jogo, como é que hás-de saber o que tens de fazer no jogo? A Mariana veio aqui ao Porto ter comigo mas perdeu-se. Liga-me: "Ó Valente, eh pá, preciso de ajuda". "Está bem, então onde é que estás?" "Ah, não sei". "Então se não sabes, qualquer caminho dá" [risos]. É ou não é? Temos de saber o que se passa para depois saber o que temos de fazer, por onde queremos ir. Isto é uma questão de bagagem, de cultura futebolística, que vou tentando transmitir aos jogadores e às equipas. Tal como alguém me influenciou a mim, noutros tempos, espero que hoje também faça sentido para alguns.
Influenciou o Carlos Pinto, por exemplo.
Oh pá, tenho aqui uma mensagem que me mandou ainda no outro dia e ele chama-me mestre. Mas é claro que ele também teve outros, teve o [Leonardo] Jardim, que ganhou muito mais do que eu. Mas a minha vida, aquilo que quero deixar por onde passo, é uma boa influência para as pessoas. Alguém que as ajudou a ver outras coisas e as desfrutar delas. Neste momento tenho um adjunto que foi meu jogador nas Aves, o Luís Manuel. Ele chegou lá penso que com 32 anos e tinha passado quatro anos na 1ª Liga, no Gil Vicente. Quando chegou, acho que ele se assustou. Sabe o que é um trinco a jogar no Gil Vicente? Uma daquelas equipas que luta para não descer? Está a ver o que é o trinco ali, bem fechadinho. Quando chegou ao Aves, começou a ver tudo a abrir [risos]. Mas ele, muito inteligente, começou a perceber aquilo e acabou a marcar golos, mais à frente. Aliás, na altura em que fomos ao playoff de subida, em Tondela, ele marcou um golo daqueles de encostar, na área. Evoluiu, viveu o jogo e tirou o curso de treinador. Agora apareceu a oportunidade e convidei-o para ir comigo porque preciso de alguém que tenha vivido as coisas, para me ajudar a transmiti-las aos jogadores.
O Fernando estava a dizer que é o Zé da merda e tem este discurso sobre a maneira como entende o futebol. Recentemente chegou a Portugal o Marcel Keizer e começou a falar-se muito no futebol ofensivo e positivo...
Ah mas aqui estou sempre sob suspeita. Cheguei à 2ª Liga e disseram-me logo: "Ó mister, aqui não dá para jogar. O futebol aqui é físico e não sei o quê". Pois, eu sei, nunca dá para jogar. Oiço sempre muitos assobios no início da época. É sempre umas assobielas [risos]. Então se eu vou com a bola por um corredor, vejo que aquilo está fechado, vejo que vou perder a bola, então jogo para trás, não perco a bola. E há outra coisa: quem está no futsal saber que o guarda-redes tem uma grande importância quando as equipas estão em desvantagem. E eu quando cheguei às Aves, disse ao Toni, que é agora treinador de guarda-redes do Paulo Fonseca: "Tenho um conceito muito próprio sobre os guarda-redes: os meus guarda-redes atacam e defendem, e de vez em quando apanham a bola à mão." Ele ficou assim a olhar [risos]... "Não leves a mal, Toni, é para perceberes que eu não preciso de um guarda-redes, eu preciso de um jogador que jogue e depois seja guarda-redes também". Mas a Mariana está a ver o que é dizer ao Quim, com 34 anos: "Ó Quim, tens de sair para fora da área". Mas o Quim, que tinha um pé fantástico, foi percebendo. E ele, num programa que a ReportTV depois foi fazer ao Aves, disse: "Eu faço parte do jogo ofensivo da minha equipa". Mas isto para dizer: às vezes parece que as pessoas estão tão necessitadas de coisas novas que parece que só os que vêm de fora é que têm credibilidade para dizer que é assim. Como também vejo muitos em Portugal que dizem que ajudam a promover os jogadores, que gostam de jogar, mas vemos o jogo deles e cuidado. O que for nosso, normalmente está sempre sob suspeita. Sinto isso na minha classe. Porque é sempre aquela conversa: "Ah, está bem, não ganhes que vês". Como se o ganhar fosse uma novidade. A malta aqui do FC Porto, por exemplo, costuma dizer que os gajos gostam muito de ganhar. Ai é? São uma tribo de iluminados, só eles é que gostam de ganhar? O Valente, a Mariana e o Rui não gostam de ganhar. Parece que é uma novidade no futebol: o mais importante é ganhar. É uma novidade do caraças. Agora, como é que eu faço para ganhar mais vezes? Como é que eu me preparo para ganhar? No jogo contra o Arouca perguntaram-me se o resultado era justo. Eu disse: "Olhe, para os pragmáticos que acham que o que conta é o resultado, nós marcámos e os outros não marcaram. Agora, se é justo, não é justo. Se é assim que gosto de ganhar? Não é. Mas ganhámos". Enfim, nós muitas vezes escudamo-nos nalgumas coisas e só damos valor ao que vem de fora. Por isso é que eu não alinho na carneirada. Só porque o Guardiola joga com este ou aquele a atacar, não quer dizer que nós tenhamos de fazê-lo. Influencia-me tudo aquilo que eu sinto que me ajuda a crescer a fundamentar melhor as minhas ideias, mas não tenho de fazer tudo.
As ideias são, no fundo, as mesmas, mas a forma como os jogadores as executam nunca vão ser as mesmas, se tivermos um grupo de juniores chineses a executar ou o Ronaldo a executar...
Claro que um executa melhor do que o outro. Por isso é que digo, quando chegar a altura de lá chegar - se o merecer - e poder escolher jogadores com um determinado perfil... Acho que o mais importante é a inteligência, é isso que quero para a minha equipa, jogadores que pensem nas coisas. Fala-se muito agora na tomada de decisão. Quando obrigas um jogador a bater a bola, a decisão está tomada, não tem de decidir nada, é só bater. Agora, se o portador da bola nunca está sozinho, se tem sempre soluções de passe, se temos dinâmicas e um jogo posicional que lhes permita manter a bola, então há sempre soluções. Outro dos desafios que às vezes lanço à malta que está ligada ao treino é pensar em algumas ações do jogo, se acham que têm solução e probabilidade de sucesso. Vou dar um exemplo: um passe do central para o ponta de lança, pelo ar. Em dez vezes, quantas bolas é que ele ganha? Outra: uma diagonal para fora, para a linha de canto. A bola está no lateral, o extremo baixa e a bola, pimba, vai para o interior que está a fazer diagonal para a linha de canto. Mas se o meu lateral está a defender uma situação dessas, ele não sai do lugar. Então, pimba, eles mandam na mesma a bola para o meu lateral. Mesmo que a bola entre, ele vai em direção à linha de canto, aquilo tem probabilidade de sucesso? Se calhar não tem muita.
Se o médio arrastar o adversário e abrir espaço dentro já dá para a bola entrar no avançado.
Por exemplo. Os apoios frontais são uma das minhas preferências também. A outra é a condução para dentro. Por exemplo, o meu jogador está aberto e recebe lá a bola...
E está fechado por um lado pela linha...
Exatamente. Mas se ele não sabe ultrapassar e um no um para um, então ele pode fugir para dentro. O que faz o Messi? O que fazia o Figo? Se um vem pressionar, eu fujo para o outro lado e continuo a condução diagonal, como o Robben. "Ah mas eles fazem sempre a mesma coisa". Pois fazem, mas a malta dificilmente consegue anular, porque ele foge. Por exemplo, dizem que o lateral e o extremo não podem estar os dois abertos, mas eu não me importo, porque quando um receber pode orientar para dentro e depois pode ter o central, o médio, o avançado. Se eu consigo jogar no avançado, como a Mariana disse, enquanto a bola faz esse movimento já tenho o extremo a vir dentro apoiar, que é o princípio do terceiro homem, ou a bola entra de frente no médio que depois pode fazê-la chegar ao extremo. Este tipo de ligações é aquilo que eu trabalho muito no meu jogo. Temos dois centrais, dois médios, dois avançados. Trabalho muito este corredor. Por exemplo, nem sempre quero que o médio venha aqui muito abaixo [demonstra com as garrafas de água e gravadores], porque se pusermos a bola, pelo chão, no avançado, o médio vai receber já de frente. E aí já atraiu o central fora da posição e há mais opções de entrada. É com isto que vamos tentando enganá-los, porque, no fundo, o jogo é tentar enganá-los. Quando eles começam a perceber estas dinâmicas é uma coisa muito gira de ver.

Rui Duarte Silva
O Fernando chegou na quarta-feira ao Varzim e tinha jogo no domingo. Quantas unidades de treino teve?
Quarta, quinta, sexta e sábado - quatro.
Foram todas focadas em organização ofensiva?
Foi essencialmente organização, mas não dava para dar muita informação. Mas dei [risos]. Quando ando apaixonado por alguma coisa durmo pouco. Uso sempre esta frase: a mudança, no início, é difícil; no meio é confusa; e no final é linda. Porque quando mudamos alguma coisa é sempre difícil, andamos ali confusos, mas depois quando as coisas começam a avançar... É claro que esta mudança não foi fácil. Primeiro tive de olhar para eles e vê-los. Mentalmente, eles estavam sem confiança. Mas a confiança tem de estar ali: "Então não te lembras dos tempos em que marcaste os golos? Qual foi a tua melhor época? A confiança está aí, temos é de ir buscá-la". Tentámos fazer coisas simples, sabendo que ainda não vamos conseguir fazer tudo, mas, essencialmente, olhem uns para os outros. Ninguém está aqui sozinho, olhem uns para os outros e tentem relacionar-se. Fizemos uma ou outra situação de treino de organização e pronto.
Mas qual foi o foco principal? Porque há treinadores que preferem primeiro ir à organização defensiva.
A parte mais difícil do meu trabalho é promover essa mudança inicial e dizer assim: somos jogadores para jogar. Temos de fazê-los sentir que é importante eles gostarem de ter a bola. Só assim é que eles depois também se podem promover. Eles têm de saber que vão ter sempre um colega ali para ajudá-lo, têm é de olhar para eles. E depois também vamos vendo as coisas individualmente, porque uns sentem as coisas de uma maneira e outros de outra, uns estavam a jogar mas a ser criticados, outros não estavam a jogar, outros estavam a jogar sob tensão e as coisas não saíam... Temos de começar também a acalmá-los, a fazê-los acreditar, a desafiá-los para eles começarem a refletir sobre as coisas. Logo no primeiro treino avisei-os... Passei e não ouvi música no balneário. Disse-lhes logo: "Em todos os dias em que passar e não houver música no balneário, são dez voltas ao campo". É logo. "Ó mister, as colunas..." "Se querem colunas, a gente compra". "Calma, mister, está tudo bem". Pronto, eu quero é ouvir ali som. É jogar um bocadinho com a parte emocional deles. O que está para trás já passou. Agora veio para aqui um velhote maluco, pá, um gajo meio doido [risos]. Foi o melhor elogio que me fizeram na China. Perguntaram lá a um miúdo se ele conhecia o Fernando e ele: "Sim, sim, é doido". [risos] Quando eu estava no Paredes com os miúdos de quatro ou cinco anos, eles viraram-se para mim: "Ó Valente, eles não me dão a bola". E a mãe era logo: "Valente não, senhor Valente". E eu: "Olhe, isto não é consigo. Queres uma bola, vou dar-te uma bola." Recentemente fui a um colóquio falar sobre essa parte mental e falei numa coisa que acho fundamental, que é o rapport, as ligações que nós criamos. Depois da conversa que estamos aqui a ter hoje, a Mariana vai ter outra opinião de mim, eu da Mariana... Há 500 treinadores que estão no desemprego e quando há uma vaga, como é que as coisas acontecem? O meu nome andou ali na Covilhã, na Académica, por ali, e agora calhou-me a mim. Mas é preciso fazer muita coisa para que depois as coisas acabem por acontecer para o nosso lado, não é?
E por que razão é que o escolheram a si, disseram-lhe?
Penso que me escolheram... não vou dizer por ser um gajo maluco [risos], mas porque a imagem que o presidente tinha de mim ficou-lhe de quando viu o Aves, onde estava então, a disputar o playoff com o Paços de Ferreira. Ficou entusiasmado com a maneira como a equipa jogava.
Um playoff que o Aves acabou por nem vencer.
Às vezes é preciso estar na hora certa, no sítio certo, com as pessoas certas. Sabe porquê? Eu vivi 18 anos em Paços de Ferreira. Já antigamente o presidente anterior, que eu conhecia de quando treinava o Paredes, me dizia: "Eh pá, ó Valente, sou capaz de pensar em ti, ouve lá, vou pôr o teu nome para treinar o Paços e tal". E eu disse-lhe: "Estás maluco, se vais para lá dizer que queres pôr um gajo da 3ª divisão". Nesse ano, por acaso joguei três vezes com o Paços, porque fomos eliminá-los para a Taça e depois ainda jogámos dois jogos do playoff. Depois empatámos nas Aves e fomos perder lá. Mas foram três jogos que deixaram uma marca e toda a gente reconheceu o que nós fizemos. No final, houve ali qualquer coisa que me deu a entender que poderia ser uma possibilidade na época seguinte. O diretor desportivo que estava no Paços foi o diretor desportivo que me levou para as Aves, o dr. Marco Abreu. Depois das Aves esteve no Belenenses e depois para o Paços. Ele tem uma relação familiar com o Paulo Fonseca. E então, galo dos diabos: era impensável o Paulo Fonseca voltar a Paços [risos]. Depois aí acabou-se o Valente. Neste momento, no Varzim, penso que foi essa ideia com que o presidente ficou e depois provavelmente algum amigo que temos em comum. Porque eu, antes de ir para a China, tinha tudo acertado para ir para o Leixões. Mas depois fui para a China porque foi o Luís Castro que montou a equipa que foi e ele convidou-me para ir.
Pois, ele também era para ir mas depois acabou por não ir.
Ele é que ia liderar a equipa, sim. Quando ele me ligou até lhe perguntei se ele tinha a certeza que era comigo que queria falar, porque tinha 500 gajos... e eu não era assim propriamente um amigo próximo. Já nos tínhamos defrontado e conhecíamo-nos, mas não era mais do que isso.
E normalmente para a China costumam ir treinadores mais novos.
Absolutamente. Disse-lhe que primeiro tinha de falar com a família, mas a minha mulher é assim: logo que venha para a minha conta... [risos] A minha mulher é muito pragmática, por isso é que eu casei com ela. Ela é que ganha o dinheiro, eu só me divirto. Falei com ela, tudo bem. Depois pedi dois dias ao Luís para estar a partir pedra com ele, porque, é assim, somos treinadores, mas ele tem ideias e posso ter outras. Só que depois o pai dele adoeceu e acabámos por não ir. Mas ir com 57 anos para a China não é para todos. O problema foi lá, porque os chineses não percebiam como é que o velhote de 57 anos conseguia jogar tanto futebol, mas diverti-me para caraças [risos]. Realmente tenho alguma dificuldade em lidar com a idade. Quando olhamos para o espelho claro que percebemos, mas de resto não. O que me deixou mais tocado foi saber que foi um colega de trabalho a selecionar-me. Ainda há pouco a Mariana perguntava porque é que me escolheram e eu ainda não sei, mas depois vou sabendo. Foi como em Espinho. No ano em que vou para o Espinho, tinha descido de divisão no Paredes, também com uma história curiosa. Subi duas vezes o Paredes, mas depois o clube caiu no vazio, eu estava ligado à gestão, e tivemos de começar a trabalhar à noite, baixando 70% do orçamento e ficando só com miúdos dali. Estávamos a preparar a época para jogar na 3ª divisão, mas depois houve uma desistência do Esmoriz e convidaram-nos para disputar o Campeonato Nacional de Seniores [agora Campeonato de Portugal]. Tive uma luta com o presidente, porque ele não queria, mas eu disse-lhe que pagava tudo o que fosse acima do orçamento, porque achei que os jogadores mereciam competir noutro nível. E, no final da época, vou para o Espinho porquê? Depois contaram-me mais tarde. Porque o fulano que tinham a ver os jogos disse que a equipa que mais o entusiasmou foi o Paredes. E pronto, depois deles se sentarem à minha beira já fica difícil [risos] e as coisas acabam por acontecer. Tenho alguns empresários que são amigos, mas não estou ligado a ninguém. Isto também para dizer que a área de atividade de um treinador que está no mercado também tem a ver com os conhecimentos que se vai fazendo. Quando entrei no futebol profissional, montei uma estratégia para fazer com que as coisas acontecessem, para me dar a conhecer. Mas, no futebol, isto é complicado... Como é que o treinador se dá ao mercado? A Mariana é licenciada, então quer dizer que andou durante X tempo a preparar-se e no fim ficou certificada para desempenhar determinada função. Mas quando vai para o mercado de trabalho, vai escolher as empresas para onde gostava de ir, vai entregar currículos e marca entrevistas. No futebol, isso não funciona assim. Ou tem empresário ou então é aquela conversa do: "Conheces alguém no Varzim? Dá lá um toque por mim". Mas eu não posso entregar a minha vida, aquilo que eu quero fazer, a fulano que depois "vai lá dar um toque". Como não tenho empresário, tenho de ser eu a apresentar-me, a sentar-me com as pessoas. Alguns conheço e vou almoçar com eles, porque é assim que nos vamos conhecendo. Por exemplo, estávamos uma série de treinadores na Figueira da Foz a renovar os níveis e eu estava a dizer-lhes isto, e o Jorge Simão diz-me que não, que não admitia isso: "Se eu soubesse que alguém do meu clube foi falar contigo, aquilo para mim era quase uma traição". E outros dizem: "Isso é andares a oferecer-te e depois a malta do futebol não gosta..." E eu disse-lhes: "Eu não vou lá porque quero o lugar de alguém, eu quero é que as pessoas me conheçam, saibam as minhas ideias, porque se um dia o meu perfil integrar aquilo que são os objetivos do clube, podemos conversar". Eu encaro estas coisas assim. Mas, para ver como a vida é: na semana antes de entrar no Varzim, por acaso eu fui mesmo ver o Varzim a jogar. E há malta que às vezes diz: "Ei, é só treinadores na bancada". Então mas os treinadores não devem ir ver jogos? Não é normal?

Rui Duarte Silva
O Fernando entra no Varzim num contexto difícil. Isso, para um treinador, não é arranjar lenha para se queimar?
Estou sempre a arranjar lenha para me queimar. Mas prefiro fazer alguma coisa e queimar-me do que não me queimar e ficar em casa. Como eu venho sempre de contextos difíceis... Já no Santa Clara foi igual. Passar informação durante a competição é terrível. Depende da capacidade mental que a estrutura também tem sobre o meu trabalho, por isso é que eu também faço uma coisa diferente: enquanto há treinadores que afastam o presidente, eu não, eu quero que ele oiça. Quero que ele saiba como é que eu falo, em que é que eu acredito e depois também perceber o processo, ver os treinos. Porque depois começam a perceber que nós fazemos nos jogos o que fazemos nos treinos, mas às vezes a bola bate na trave ou no rabo de um fulano e não entra, mas há ali uma intenção de fazer com que as coisas entrem, isso é trabalhado. Muitas vezes o resultado não espelha o que se passou no jogo, é ou não é? No Arouca fui beneficiado por isso.
Pela experiência que o Fernando tem, os dirigentes têm conhecimentos suficientes sobre o jogo, percebem o que se faz no treino?
Isso é outro trabalho que tenho de ter. Normalmente, não percebem, mas quando começo a partilhar... "Ó presidente, venha cá". Tive uma relação fantástica com o presidente do Aves e normalmente tenho com todos, na altura com o do Santa Clara nem tanto, porque ele tinha uma outra atividade. Muitas vezes não me custa nada partilhar algumas coisas com eles. As decisões são sempre minhas e eu é que sei o que fazer, por isso não é puxar o saco ao presidente, é dizer assim: "Já reparou nisto? Já viu isto?" Um caso prático: faltava-nos um lateral direito e tínhamos um jogador que era ala e que já tinha feito lateral uma vez. E eu partilhei com o presidente: "Estou a pensar pôr o Renato a lateral direito". E ele: "Ó mister, ele já fez isso, mas olhe que não é a mesma coisa e tal". Mas expliquei-lhe que ele conhecia bem o processo, tinha confiança... O Renato baixou e baixou com indicações. E baixou bem. Sabe o que aconteceu? O Vitória de Guimarães já o queria contratar. O presidente falou comigo e assinou com ele por três anos. O Aves nunca vendeu tantos jogadores como nessa altura. Porquê? Porque a maneira como lanças o desafio ao jogador e a maneira como ele vai entendendo as coisas é importante. Como o Renato era desequilibrador e tanto ia por dentro como fora... O extremo muitas vezes é alguém que tem de estar à espera que lhe metam a bola, mas o lateral tem mais vezes a bola, então ele destacava-se mais. Isto é uma partilha que acho importante, porque assim toda a gente vai pensando no mesmo. A Mariana de certeza que já ouviu falar no Paco Seirulo e ele fala na dialógica: nós estamos inseridos numa determinada relação que tem de ter uma determinada lógica que nos leva a um determinado objetivo. Eu tenho de criar situações em que os meus jogadores utilizam determinado tipo de recursos que os ajudam a ultrapassar os problemas. Eu quando passo um passe para um jogador, não é só passar para ele e já está. Não é só meter e dizer "ei, grande passe" e depois o desgraçado fica lá sozinho contra três a levar nas pernas, porque os outros estão todos a ver. Tem de haver seguimento às coisas. Esta lógica tem de estar ao alcance tanto do jogador como do presidente. E se o presidente estiver perto de mim e souber isto, depois quando chegarem os papagaios ele sabe explicar-lhes o que estamos a fazer. Claro que isto também me desgasta, às vezes, mas tenho de ter esse cuidado. No dia em que a bola não entrar, ele vai estar do meu lado. E também digo: hoje em dia, o jogo e o treino são o mais fácil. O pior é tudo o que está à volta disso, que é muito complexo. Percebo a pertinência da pergunta da Mariana, porque a gente sabe que os dirigentes não estão preparados para lidar com algumas situações. Mas acho que com o andar do tempo estas coisas têm de mudar. Vou explicar porquê: não há dinheiro no futebol, então chegam os investidores com uma mala. E o que é que eles querem?
Dinheiro.
Querem retorno. E o retorno o que é? É vender jogadores. Mas como é que eles vão vender jogadores se não se joga nada? Como não vendem ninguém, pegam na massa e vão embora, e os clubes vão por aí abaixo. Atlético, Beira-Mar, etc. E penso que as coisas têm tendência a piorar. Os dirigentes se tiverem uma visão em que percebam qual é o processo do negócio... Eu acho que até fui pioneiro a montar esta rede de montagem toda. Porque eu influencio os jogadores, filmo - porque se não ninguém acredita naquilo que eu faço -, depois vou ao desempenho de cada um, tiro os melhores momentos e faço vídeos deles. Tenho no YouTube o Miguel Vieira, que agora foi para Espanha, o Romeu, que foi capitão do Paços de Ferreira, o Fábio Vieira, que agora está no Chipre... E agora da China também tenho alguns, mas coitadinhos deles [risos]. É o trabalho do empresário, mas sirvo-me disso para motivar os jogadores: "O que é que vocês vão fazer até ao final da época para que depois se possam vender? Vão ser mais um ou vão acrescentar alguma coisa?" Não posso falar muito, porque é meu filho, mas divirto-me com todas as habilidades que o meu filho faz. O Fábio Martins, por exemplo, também fiz. Hoje vivemos na era da informação, de vender, da marca. Já se fala em marketing pessoal e neste momento estamos no personal branding. Isto tem a ver com quê: a Mariana, por aquilo que eu leio, pela maneira como faz as entrevistas, fica com uma marca aliada a si e à Tribuna Expresso pela pertinência e pelo conteúdo das suas entrevistas. Mas se a Mariana não publicasse nada, então eu não sabia nada. O jogador tem de perceber isso. E se não faz uma assistência, não marca um golo, não faz uma finta, só dá pontapé para frente, querem o quê? Quero que eles façam coisas bonitas. Por exemplo, o Tiago Leal, que agora é adjunto do Paulo Fonseca, é de Penafiel e apareceu-me em Paredes. Ele não estava ligado ao futebol, não jogou, mas eu disse-lhe para usar as redes sociais, para publicar as análises dele, algumas ainda metiam lá o meu nome, porque ele também me chama mestre. E o Marco Abreu perguntou-me se ele era meu amigo. Eu disse-lhe que sim, que queria levá-los para as Aves mas não houve lugar, mas que era um fulano pertinente. E o Marco disse-me que o Paulo Fonseca tinha lido umas coisas dele e queria falar com ele. E agora está lá. Rico [risos]. Fico entusiasmado com isto, fico contente pelas pessoas.
No próximo jogo do Varzim já vai dar para ver alguma coisa interessante?
Não, acho que ainda é muito cedo. Quem me dera. No primeiro jogo sofri muito pelos meus jogadores. Eles foram fantásticos, foram equipa, mas ainda sofremos muito e ainda vamos sofrer muito.
É um processo difícil de adaptação?
Não é difícil, depois de perceberem. Mas o Varzim também tem uma particularidade, neste momento - e ainda bem que eu fui à China que assim já estou mais preparado: são oito nacionalidades no balneário. Falo português, inglês e francês. Mas estas primeiras mensagens têm de ser em português e custa-me estar a falar e alguns estão ali... Alguns já percebem alguma coisa, mas depois é preciso falar individualmente. Para quem faz da comunicação uma arma para passar ideias é difícil. Mas o que digo é que para não olharem só para o jogo: o jogo é mais um treino de grande intensidade em que vamos ter a felicidade de sermos avaliados para vermos em que ponto é que estamos. Eu ganho sempre. Se puder ter os três pontos, ótimo, mas mais do que os três pontos, vamos ganhar informação para poder trabalhar mais.
Foca-se no adversário, no lado mais estratégico do jogo?
Não. Não trabalho em função do adversário. Tenho cuidado em perceber o adversário, sim, em bolas paradas, por exemplo. Mas hoje parece que é preciso falarmos da estratégia. A estratégia para mim está sempre presente. É o mesmo que nós na nossa vida. Vamos sair de carro e vamos para um sítio qualquer. Se sabemos que ali está trânsito, então temos de escolher outra rua. Mas primeiro temos de saber o caminho. É que há alguns treinadores que falam muito em estratégia mas não sabem o caminho, não sabem para onde vão. E se andam dependentes do adversário... A mim interessa-me o caminho. É lógico que se há estradas que não estão boas, mudamos, mas sei sempre antes qual é o caminho. Acho piada que há estratégia mas depois aos três ou quatro minutos levamos um golo. E depois a estratégia fica onde?
Quem é que o Fernando gosta de ver em Portugal?
Gosto de ver as equipas do Luís Castro. E deixe-me dizer que andamos muito pobres. No ano passado estava na China, mas fui acompanhando, e houve duas equipas que se distinguiram das outras...

Antes de começar a carreira de treinador, no Águeda, onde terminou a carreira de jogador, Luís Castro representou o Vieirense, o União de Leiria, o Vitória de Guimarães, o Elvas e o Fafe
Rui Duarte Silva
O Chaves e o Rio Ave.
E porquê? Porque eram equipas que tentavam dominar a bola, o jogo. Aquilo que devia ser uma normalidade, a posse de bola, é uma anormalidade em Portugal ao nível do jogo. Alguma coisa está mal aqui. Isso devia ser o normal. Aqueles que têm a coragem e a ousadia de dizer e assumir que as equipas têm de construir são aqueles que se destacam, mas continuam sempre a estar sob suspeita. O Luís Castro conseguiu crédito, porque além de ser uma referência também ao nível daquilo que é a comunicação do treinador para fora, é escolhido já com as pessoas a saberem que aquilo ao início pode não dar certo, é preciso ter paciência. Às vezes aconteceu-me, às vezes não. Em Espinho aconteceu, mas foi porque em dez meses só recebemos três [risos]. Mas a três jogos do fim estávamos a três pontos do primeiro. Na altura era: "Dinheiro não há, mas temo-nos uns aos outros." E sabe o que aconteceu? Entrei no futebol profissional e foi o ano em que tive mais convites. E houve vários jogadores também a ir para o profissional. Portanto, a adversidade, como dizia o Rui Quinta, é o que nos faz crescer. O Luís Castro é uma referência para mim. Também aprecio o trabalho que o Abel está a fazer em Braga, apesar de não apreciar tanto algumas ideias, mas há que reconhecer trabalho, porque também tenho a capacidade de perceber quem consegue obter resultados, o futebol permite isso. Pode ser uma maneira que não é a minha, mas que respeito, tenho de ter abertura suficiente para perceber outros contextos. O FC Porto tem vindo a melhorar, mas não é propriamente aquilo que aprecio. Já apreciei um pouco o Benfica no início do Rui Vitória, mas pronto. Essencialmente não critico colegas de trabalho, gosto é de discutir ideias. E neste momento acho que o jogo em Portugal está muito pobre. Há um ou outro caso que sobressai. Mas é giro que este ano tem havido poucas chicotadas e as seleções ajudaram muito nisto, porque as paragens de 15 dias deram tempo para os treinadores. Se não há jogos, não há derrotas, se não há derrotas, não há chicotadas [risos]. Mas tenho muita fé e acredito que vamos mudar este panorama e ajudar os jogadores a jogar bem.
Tem o objetivo claro de chegar à 1ª Liga?
Não. Tenho o objetivo claro, há muitos anos, de ser feliz. E fazer as pessoas que estão à minha volta serem felizes também. Se merecer, hei-de lá chegar. Se não chegar, pronto, quero é continuar a fazer o que gosto. Sinto-me bem e vou continuar a partilhar que é possível jogar bem em qualquer contexto. Desde que as ideias sejam boas, fortes e influenciadoras. É isto que me faz andar na melhor profissão do mundo. Fazemos o que gostamos e ainda nos pagam.