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Kareem Abdul-Jabbar, o autor dos mortais ganchos vindos do céu que acumulou recordes enquanto lutava contra “todas as desigualdades sociais”

O lendário poste jogou 20 anos na NBA, retirando-se como monopolizador de registos máximos na liga, entre eles o de máximo marcador, que detém desde 1984. Com o mítico skyhook como arma pessoal e “infalível”, Abdul-Jabbar é, há muito, uma voz na luta contra o racismo e outros problemas estruturais dos EUA, tendo já chocado contra LeBron James. É este o homem que está à porta de bater o seu recorde de rei dos anotadores da NBA, oportunidade para relembrar o nova-iorquino que nasceu Lew Alcindor

Pedro Barata

Ross Lewis

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A 5 de abril de 1984, os LA Lakers venciam os Utah Jazz com tranquilidade, mas a maior expectativa não residia propriamente no resultado da partida. Perto do final, Kareem Abdul-Jabbar estava a somente um ponto de se tornar no melhor marcador de sempre da NBA, superando o recorde que estava há 18 anos na posse de Wilt Chamberlain. Todas as atenções estavam colocadas naquela estrela de 2,18 metros de altura e óculos peculiares na face.

Depois de um primeiro lançamento para chegar ao novo máximo histórico ter sido desperdiçado, o nova-iorquino conseguiu superar Chamberlain com um gesto que era arma pessoal infalível, pesadelo para os adversários e marca registada para o mundo. Recebeu a bola, dançou um pouco com ela na mão, suspendeu-se no ar saltando na direção oposta do cesto e lançou com êxito na cara de Mark Eaton, um gigante de 2,24 metros que nada conseguiu fazer para travar aquele arremesso vindo dos céus. Um skyhook de manual, uma entrada na história feita nas asas do “tiro mais mortal que a NBA já viu”, como descrito pela ESPN.

O embate entre Lakers e Jazz parou para assinalar o feito com a pompa norte-americana. A mãe e o pai — um ex-polícia em Nova Iorque que passou ao filho a paixão pelo jazz, que o fez chegar a ter uma coleção de álbuns que era considerada das mais valiosas dos EUA, tendo boa parte dela ardido na sequência de um incêndio na casa de Abdul-Jabbar — foram saudá-lo ao campo enquanto, tanto na megafonia do pavilhão como na televisão, se anunciava a ascensão “de num novo rei”.

Wilt Chamberlain não estava presente quando a sua marca foi batida, mas foi, no dia seguinte, à cerimónia que os Lakers organizaram antes do jogo contra os Kansas City Kings. Se a validade anterior do recorde fora de 18 anos, o máximo estabelecido por Chamberlain tem um período de vida bem mais extenso, aproximando-se das 39 voltas ao sol de duração.

Os 38.387 pontos marcados por Abdul-Jabbar quando, em 1989, terminou uma carreira de 20 anos — longevidade assinalável —, ficaram como horizonte a perseguir pelas estrelas da NBA que se lhe seguiram. Melhor marcador da história da liga, esse recorde junta-se a outros dados estatísticos que atestam da grandiosidade da lenda dos ganchos voadores.

Quando se retirou, com 42 anos, Kareem era recordista de pontos (38.387), de jogos disputados (1.560, entretanto superado por Robert Parish), de minutos realizados (57.446, máximo que detém), de lançamentos de campo com êxito (15.837, registo insuperado), de tiros bloqueados (3.189, entretanto Hakeem Olajuwon e Dikembe Mutombo obtiveram mais) e de ressaltos defensivos (9.394, quantidade entretanto melhorada por nove jogadores, numa tabela liderada por Kevin Garnett.)

Foi seis vezes MVP da NBA, um recorde; 19 vezes All-Star, um máximo partilhado com LeBron James; campeão da liga em seis ocasiões como jogador e outras duas como técnico adjunto; duas vezes MVP das finais; nomeado na equipa ideal da história da NBA no 35.º, no 50.º e no 70.º aniversários da competição.

Além do festival de números e cifras míticas, Abdul-Jabbar tornou-se um ícone do basquetebol durante as duas décadas em que foi jogador profissional. Nascido Lew Alcindor, liderou a escola secundária Power Memorial, em Nova Iorque, a umas incríveis 71 vitórias seguidas antes de rumar à UCLA, a Universidade da California em Los Angeles. Na Califórnia, onde viria a brilhar nos Lakers, venceu o campeonato universitário três vezes seguidas, sendo três vezes o MVP.

A presença no basquetebol universitário é uma diferença de percurso relevante para LeBron James, o homem que estará a dias de o superar como rei dos marcadores na NBA. Kareem esteve quatro anos na UCLA, enquanto James saltou diretamente da high school para a liga profissional em 2003. Tendo em conta que LeBron marcou mais de 8.400 pontos entre os 19 e os 22 anos, o período em que Abdul-Jabbar esteve na universidade, o The Athletic calcula que, sem a época universitária, o nova-iorquino teria registado mais de 45.000 pontos na NBA.

Focus On Sport/Getty

Escolhido em primeiro lugar no draft de 1969 para os Milwaukee Bucks, venceu pela primeira vez o título da NBA em 1971. Depois desse êxito, adotou o nome muçulmano Kareem Abdul-Jabbar. Em 1975, rumou aos LA Lakers, que representaria nas 14 épocas seguintes.

Anatomia de uma arma

A NBA em que Abdul-Jabbar dominou era bem diferente da atual. Durante os 10 primeiros anos da carreira do nova-iorquino, nem linha de três pontos havia, desenhando um cenário bem longe do atual, marcado pelo reinado dos lançamentos exteriores.

Neste contexto, Kareem foi aperfeiçoando a técnica do skyhook, dos lançamentos em suspensão fazendo o braço mais distante do opositor desenhar um gancho no ar, um tiro “graças ao qual foi possível” bater o recorde de pontos da NBA, confessou o lendário jogador depois de se retirar.

A estética repetia-se. Receber a bola de costas para o adversário, protegendo-a com o corpo, uma ou duas simulações de corpo e pés e a elevação à retaguarda, fugindo do alvo para se aproximar dele, qual homem que dá um passo atrás para, na verdade, dar dois à frente. Do alto dos 2,18 metros suspensos no ar, lança um gancho vindo do céu para encestar, um poema feito movimento imparável em loop durante 20 anos, em constante repetição.

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Nas palavras da assinatura que patenteia esta obra registada, em declarações à ESPN, a “beleza” do skyhook reside no facto de “o lançador ter o controlo total da situação”. “Forças o defesa a ter de esperar que faça algo, mas quando salto e lanço, a bola já foi antes de eles a bloquearem”, descreve.

Abdul-Jabbar não se recorda de ter um “lançamento intercetado por um marcador direto”. Alguns podem ter sido bloqueados “por ajudas defensivas”, opositores extras “vindos pelo ângulo cego”. “Mas se eu sabia onde eles estavam, era impossível de ser travado, porque colocava o meu corpo entre eles e a bola. Era impossível bloquearem”, recorda.

De Muhammad Ali a LeBron James, uma voz ativa na defesa de causas sociais

Quando Muhammad Ali se recusou a combater no Vietname, perdendo, como consequência, a licença para combater e os títulos mundiais conquistados, Jim Brown, jogador da NFL, organizou a “Cleveland Summit”, um encontro que, em junho de 1967, juntaria os principais atletas negros dos EUA. Entre os presentes que comparecerem para apoiar Ali estava Abdul-Jabbar, então estudante universitário ainda conhecido como Lew Alcindor

Um ano depois, em 1968, o jovem recusou-se a participar nos Jogos Olímpicos da Cidade do México. A razão? O protesto contra as injustiças raciais nos EUA.

Ao longo dos anos, o nova-iorquino manteve-se como voz ativa na luta contra o racismo sistémico no país. Abdul-Jabbar explica que alcançar êxitos desportivo “não era o único objetivo” da sua carreira, que tinha também como meta “dar uma plataforma para que todas as desigualdades sociais fossem discutidas, fossem elas raciais, de género ou económicas”.

Autor de êxito, com 13 livros escritos, Kareem é, também, um defensor da pacificação das relações entre as comunidades afro-americanas e judaica. O antigo atleta é frequentemente convidado para falar em iniciativas de grupos de preservação da memória do Holocausto, por exemplo.

Barack Obama, imitando o 'skyhook' de Kareem Abdul-Jabbar na entrega da medalha presidencial da liberdade, em 2016

Barack Obama, imitando o 'skyhook' de Kareem Abdul-Jabbar na entrega da medalha presidencial da liberdade, em 2016

Chip Somodevilla/Getty

Nos últimos anos, a voz da consciência que Abdul-Jabbar sempre foi levou-o a chocar, algumas vezes, com LeBron James, o homem destinado a quebrar o seu recorde de pontuação na NBA. A 24 de dezembro de 2021, o atual jogador dos LA Lakers publicou, no Instagram, uma imagem com o conhecido meme dos três homem-aranha apontando uns para os outros, como se fossem a mesma coisa, estando escrito, em cima de cada uma das figuras, as palavras “covid”, “constipação” e “gripe".

Esta comparação, em que coloca tudo no mesmo saco, levou a fortes críticas por parte de Abdul-Jabbar, que escreveu no seu Substack que a publicação colocava “em causa os esforços de vacinação do país”, estando a ser “apoiado pelos anti-vacinas”, os quais “pioram a situação de todos, já que atrasam a recuperação da situação económica e sanitária”. “Somos todos a favor da liberdade, mas não às custas dos danos que possa causar ao país”, sentenciou Kareem, que recordou também que as comunidades negras estavam mais expostas aos perigos da pandemia.

Pouco depois, a já retirada lenda acabaria por fazer alguma marcha-atrás nas críticas, dizendo que, “depois de 60 anos a falar para o público”, “nem sempre diz as coisas mais corretas”. “Não era a minha intenção criticar LeBron, que tem feito tanto pela comunidade negra e pelo basquetebol. Podemos nem sempre concordar, mas quero pedir desculpas a LeBron e garantir que tenho um tremendo respeito por ele”.

Com King James a aproximar-se do recorde do nova-iorquino, o número 6 dos Lakers foi questionado, em outubro, sobre se tinha relação com Abdul-Jabbar ou algum comentário a fazer por estar prestes a superá-lo. “Nem comentário, nem relação”, foi a cortante resposta de LeBron.

Apesar de algumas polémicas, Kareem Abdul-Jabbar assegura que LeBron “merece” superar a sua marca e “espera” que o recorde “seja mantido por mais tempo” do que aquele em que esteve na sua posse. "Carreguei a tocha durante 38 anos e estou entusiasmado e aliviado por passá-la ao próximo detentor digno", comentou.

Nos últimos dias, tem sido noticiado que Kareem Abdul-Jabbar estará nos encontros dos Lakers em que LeBron poderá bater o seu recorde. Seria uma passagem de testemunho de uma lenda para outra, vinda do alto de uma figura construída à base de ganchos imparáveis vindos do céu.