Seul, 31 de maio de 2002. A França, campeã europeia e mundial em título, abre o campeonato de 2002 jogando contra o Senegal. Zidane, lesionado, não sai do banco, mas há Henry e Trezeguet, Wiltord e Vieira, Desailly e Thuram.
O enorme favoritismo gaulês é colocado em causa aos 30’, quando Papa Bouba Diop faz o 1-0 para a equipa que estava em estreia absoluta na principal competição planetária. Até final, França não conseguiria bater Tony Silva. A grande surpresa estava servida: o Senegal, no primeiro jogo da sua história em Mundiais, derrubava a seleção referência dos quatro anos anteriores.
No meio-campo daquela seleção, com o número 6 e a braçadeira de capitão, atuava Aliou Cissé. Então jogador do PSG, iria depois daquele torneio na Coreia do Sul e no Japão para Inglaterra, onde representou o Birmingham e o Portsmouth. No banco, orientando o Senegal, estava um francês, Bruno Metsu.
Fast forward 20 anos e o Senegal só esteve em mais um Campeonato do Mundo. Foi em 2018, com Aliou Cissé como treinador. Quatro anos depois da Rússia, os “leões de Teranga” voltam ao grande palco global, novamente com o antigo médio como técnico. De Seul a Doha, a continuidade do Senegal passou do miolo para o banco.
Aliou Cissé festeja o triunfo contra a França em 2002
KIM JAE-HWAN/Getty
Desde 2015 no cargo, a estabilidade que Cissé deu à seleção do país torna-o referência em África. Tornou-se no primeiro homem a levar o Senegal a dois Mundiais seguidos e, pelo meio, obteve resultados de excelência na CAN, sendo vice-campeão africano em 2019 e campeão em 2022.
Que seja o senegalês Cissé, e não o francês Metsu, o técnico da equipa 20 anos depois da primeira vez no Extremo Oriente não é um pormenor. Cissé integra-se na tendência continental de valorização dos treinadores africanos: historicamente, as seleções do continente tinham uma maioria de europeus orientando-as, mas, no Catar, todas terão, pela primeira vez na história, africanos como treinadores.
O Senegal conta com Aliou Cissé, Marrocos tem Walid Regragu, Tunísia aposta em Jalel Kadri, o Gana apresenta Otto Addo, os Camarões são liderados por Rigobert Song. Todos são cidadãos nacionais das equipas que dirigem.
Em 2010, na única vez em que houve seis equipas africanas na fase final — houve uma vaga extra porque a África do Sul entrou como anfitriã —, só a Argélia era orientada por um treinador do respetivo país. Em 1998, as cinco representantes do continente tinham europeus no banco. Há quatro anos, só duas das cinco seleções que estiveram na Rússia tinham africanos no comando.
“Algo está a acontecer em África ao nível dos treinadores”, diz Cissé à Reuters. No passado, o senegalês falou do “preconceito” face aos “técnicos negros”, que leva seleções a nomearem europeus. Agora, os Camarões têm no banco o seu jogador mais internacional de sempre e Marrocos o homem que levou o Wydad Casablanca a erguer a Champions africana, numa valorização daqueles que conhecem o contexto local.
As últimas duas edições da CAN foram erguidas por técnicos africanos, tal como as últimas sete Ligas dos Campeões de África.
Profissionalismo e exigência
Desde 2015 ao comando do Senegal, Aliou Cissé mudou os padrões quotidianos da equipa nacional. Pouco a pouco, conseguiu que a seleção viajasse em aviões privados, que ficasse em melhores hotéis, que tivesse estágios mais produtivos.
Sebastian Frej/MB Media/Getty
Os grandes resultados que a equipa proveniente de um Estado com cerca de 17 milhões de pessoas consegue resultam da “conjugação” de um “grande espírito coletivo” com “diversos jogadores de topo”, comenta Cissé ao “New York Times”. O Senegal tem Édouard Mendy na baliza ou Koulibaly na defesa, mas é inegável que, à última da hora, ficou órfã para este Mundial.
Sadio Mané, Bola de Prata em 2022, é baixa para o Catar devido a lesão. O treinador assume que é “uma grande pena” não poder contar com o atacante do Bayern, até porque “toda a gente constrói as suas equipas em torno do melhor jogador”, mas não desanima: “Temos uma equipa forte de jovens jogadores que estão prontos para enfrentar o desafio. Nunca é fácil jogar sem Sadio, mas penso que os jogadores estão prontos”.
Aliou Cissé foi 28 vezes internacional pelo Senegal, tendo estado na CAN em 2002 e 2004 e no Mundial em 2002. Considera “impossível crescer” quando “só se vai a um Mundial a cada 20 anos”, sendo “fundamental” manter a consistência de presenças em fases finais que a seleção tem evidenciado.
Além do profissionalismo que o ex-médio trouxe, também a ambição é uma marca do seu reinado. “Há algum tempo, podíamos dizer que íamos aos Mundiais para descobrir a competição. Agora estamos aqui para competir. Vamos competir para ganhar. As equipas africanas vão ao Catar para vencer. Quando olho para os meus médios, para os meus defesas ou para o meu guarda-redes, não tenho nada que invejar a, por exemplo, a França ou a Espanha”, assegurou ao “New York Times”.
Até 1970, a única seleção africana a participar num Mundial foi o Egito, em 1934. O melhor resultado foram os quartos-de-final conseguidos pelos Camarões em 1990, pelo Senegal de Aliou Cissé em 2002 e pelo Gana em 2010.
Há quatro anos, na Rússia, todas as seleções do continente foram eliminadas na fase de grupos. A ambição e projeto em continuidade de Aliou Cissé exigem mais para o Catar.