Ainda antes dos 27 anos, Marc Márquez era uma espécie de messias das duas rodas, um poster-boy do desporto motorizado. Com cara de miúdo bem-comportado e oito títulos em quase tantas temporadas como profissional, seis dos quais no MotoGP, o catalão soprava uma aura prodigiosa ainda mais forte que a de Valentino Rossi em termos de talento, apesar de lhe faltar o carisma do italiano. Onde Rossi precisou de tempo de adaptação, Marc Márquez dominou no imediato, saltando etapas com a facilidade de quem parece nascido para ser o maior. Os recordes do transalpino pareciam, então, meras formalidades: os nove títulos de Rossi seriam mais época menos época abocanhados pelo piloto da Honda.
Até que aconteceu 2020. Numa queda logo na primeira corrida de uma temporada marcada pela pandemia, Marc Márquez partiu um braço. E há um antes e um depois para o piloto de Cervera, que desde aí nunca mais conseguiu voltar aos títulos, em épocas marcadas por quatro operações, recaídas, episódios de diplopia (visão dupla) e uma moto que deixou de ser dominadora. Ao mesmo tempo, o comportamento de Marc Márquez em pista, talvez em resposta ao desvanecer do brilho de outros tempos, tornou-o numa figura pouco consensual entre os próprios colegas, alguns deles compatriotas. Márquez sempre foi um piloto agressivo e a pouca competitividade da Honda tornou essa característica mais visível, arriscando manobras demasiado otimistas, desesperadas até, para se aproximar do topo onde se habituou a estar.

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O acidente do último fim de semana em Portimão, em que abalroou Miguel Oliveira e pelo caminho ainda estragou a corrida a Jorge Martin, é apenas o último de alguns casos de condução perigosa e, para muitos, anti-desportiva que tornaram o antes admirado Márquez numa figura criticada por companheiros e adeptos.
O desencontro com Valentino Rossi
Marc Márquez e Valentino Rossi estavam ligados não só pela facilidade com que açambarcavam títulos mas também a nível dos negócios: era uma empresa de Rossi que geria os produtos oficiais do espanhol, por exemplo. Mas em 2015, ainda antes do acidente de 2020 que marcaria um depois na carreira de Márquez, tudo se desmoronou, com o italiano a acusar o espanhol de ajudar o compatriota Jorge Lorenzo a batê-lo na luta pelo título, que seria o 10.º para Rossi.
O auge da rivalidade aconteceu no GP Malásia, com Márquez a ir ao chão depois de um toque que a federação internacional considerou propositado de Rossi, que perderia o campeonato para Lorenzo. A relação empresarial acabou meses depois e a relação tornou-se gélida. Rossi perderia ali a última oportunidade para conquistar um título. Em 2018, Márquez atirou Rossi para fora da corrida, levando a declarações fortes do homem de Tavullia: “Márquez não tem qualquer respeito pelos adversários. É perigoso, tenho medo de estar em pista com ele, porque sei que ele está atrás de mim”.
Mirco Lazzari gp
A “cola” de Maverick Viñales
No GP de Itália de 2021, um Marc Márquez sem ritmo optou por uma polémica estratégia, mal vista entre os pilotos, para conseguir um lugar na segunda sessão de qualificação. Percebendo que Maverick Viñales era o piloto mais rápido em pista, foi sempre na roda do compatriota, aproveitando o reboque e o cone de ar oferecido pela Yamaha de Viñales. No final, admitiu o expediente pouco popular, que até já tinha experimentado antes com Joan Mir no GP Portugal, que marcou o seu regresso após uma longa paragem por lesão. “Era a única maneira de fazer algo. Tinha limitações [na moto], a única maneira era seguir outro piloto. Vi antes de sair que o Viñales era o mais rápido e escolhi segui-lo”, disse.
Da parte da Yamaha, onde corria então Viñales, vieram críticas muito fortes, com ironia à mistura. “Parece que o Márquez está a melhorar de dia para dia porque começa a comportar-se como antes”, atirou Massimo Meragalli, chefe da equipa.
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Martin como vítima
Jorge Martin foi um dos afetados pela condução perigosa de Marc Márquez este fim de semana em Portimão e não foi a primeira vez que viu uma corrida estragada pelo oito vezes campeão mundial, de 30 anos. No GP Grã-Bretanha de 2021, ainda nos momentos iniciais da prova, Márquez mergulhou na curva Vale para tentar ganhar posição a Martin, derrubando o rival e acabando também com a sua corrida.
No final, Márquez pediu desculpas, Martin aceitou, mas deixou um recado: “Foi porreiro da parte dele [pedir desculpas], mas arruinou a minha corrida. Esse é o problema, ele não mediu as consequências. Não tinha espaço. Espero que possa aprender com este acidente”, frisou o piloto da Pramac. Mas Márquez, pelo que se viu em Portimão, não aprendeu e Martin, novamente com uma corrida estragada e com uma fratura no pé, explodiu: “Não é a primeira vez que ele me mete fora da corrida. Pedir desculpas aos pilotos e ao público já não chega. Quando há pilotos à frente, tens de respeitá-los, tens de ir por fora. Mas ele não quer”, disse o piloto natural de Madrid.
JORGE GUERRERO
Oliveira no chão e fora do GP Argentina
O último caso com Marc Márquez aconteceu, então, em Portimão e o principal prejudicado foi Miguel Oliveira. A correr em casa, numa nova equipa, o português arrancou bem e chegou a andar na frente. Estava na luta quando à segunda volta o catalão atirou-se à curva, tentando ultrapassar Jorge Martin e o agora piloto da Aprilia, embatendo em cheio em Oliveira. A corrida acabava ali, para Miguel e para os milhares de portugueses que haviam viajado até ao Algarve. Mesmo sem fraturas, lesões nos tendões dos rotadores da perna direita vão impedir Oliveira de estar no GP Argentina - são assim duas as corridas perdidas à conta da imprudência de Márquez.
“Tentou explicar-me a situação, que provavelmente teria um problema no travão. Mas quando se tem problemas nos travões trava-se antes e não mais tarde para tentar ultrapassar pilotos”, sublinhou o português, que pediu sanções para o catalão, que foi punido com duas voltas longas no próximo fim de semana de corridas em que participar - e não será no GP Argentina porque Márquez, com um dedo partido, também está fora de prova.
NUNO VEIGA/Lusa
A ação de Márquez originou reações particularmente inflamadas no paddock. “O Marc Márquez destruiu a corrida do Jorge Martin. Não é possível que as coisas continuem assim. Há regras e perdemos um piloto”, atirou Paolo Campinoti, líder da Pramac em declarações à TV francesa Canal+. “Isto não é um rodeo na Ilha de Man”, continuou o responsável da equipa de Martin, fazendo referência às perigosas corridas a alta velocidade na mítica ilha no Mar da Irlanda, em que praticamente todos os anos há vítimas mortais.
Aleix Espargaró, piloto da Aprilia sempre muito vocal em matéria de segurança, também não poupou o compatriota. “Espero que o Miguel Oliveira esteja bem porque, à velocidade que foi o choque, podia ter destruído o joelho”, disse, apontando o acidente provocado por Márquez como “gravíssimo”.
“Podia ter rebentado o joelho ao Miguel e ele ficava sem correr o resto da vida, foi um impacto brutal”, continuou Espargaró, que defendeu uma sanção dura para o piloto da Honda: “Para mim, devia haver uma corrida de suspensão, no mínimo”. O que acabou por não acontecer, apesar do histórico já longo de Márquez.