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Pela primeira vez, o campeão mundial de xadrez vem da China, onde o xadrez já foi proibido. E na “vida normal”, Ding gosta de “ver a chuva”

Foram necessárias três semanas num hotel de Astana para ser decidido o sucessor de Magnus Carlsen, o campeão que abdicou de defender o trono. Após uma tensa e quase eterna fase regular, onde se verificou um empate (7-7), Liren Ding superou o russo e número dois do mundo Ian Nepomniachtchi nas partidas rápidas

Hugo Tavares da Silva

picture alliance

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A Revolução Cultural na China, há sensivelmente meio século, vergou almas e corpos, mas também derreteu os livros de xadrez. Os que jogavam aquele jogo na rua foram igualmente perseguidos e multados. Era uma atividade desavinda, afinal transportava o aroma do Ocidente. Ironicamente, depois destas décadas, a campeã e o mais recente campeão do mundo da modalidade, Ju Wenjun e Liren Ding, são chineses. O sucessor de Magnus Carlsen nasceu em Wenzhou há 30 anos, cita Albert Camus e aprecia a chuva, o som e a forma como cai.

Foi necessária uma maratona em Astana, no Cazaquistão, para decidir-se o que só acontecera uma vez na história. O trono não tinha ninguém a defendê-lo pela primeira vez desde 1975, quando Bobby Fischer preferiu abdicar em vez de entrar mais uma vez num ringue axadrezado onde as bélicas e estratégicas peças testemunham sovas épicas nos intelectos dos concorrentes.

Depois de um 7-7 no final da fase regular, foi necessário recorrer às partidas rápidas. Ian Nepomniachtchi, um russo com um talento transbordante e que se opôs à invasão da Ucrânia, era o favorito, mas acabou por ser surpreendido pelo emocional e arrojado Ding, “kamikaze” em várias jogadas como rezam algumas crónicas na imprensa internacional - em 2003, foi vice-campeão mundial em sub-10 e ainda o mais jovem campeão absoluto de sempre na China, aos 17 anos. No ranking internacional alcançou, em 2021, o segundo lugar da lista. Era, portanto, uma certeza e tem pouco de surpreendente esta vitória.

A pandemia e os problemas com vistos prejudicaram a carreira e a trajetória ascendente, o que levou ao não apuramento para o torneio de candidatos. Mas tudo mudou graças à guerra. A Rússia atacou a Ucrânia e Serguei Karjakin, um xadrezista russo, foi desclassificado por apoiar a invasão do solo ucraniano. Ding foi o substituto. E o resto, como dizem, é história: conquistou o trono do xadrez mundial, mesmo sem ser o número 1 do mundo, meteu no bolo 1,1 milhões de euros e agora tem nos planos viajar até Turim, para ver a Juventus, o seu clube de futebol preferido.

Depois de estudar Direito, obrigado pelo pai, entregou-se finalmente ao xadrez, uma mística atividade que começou aos quatro anos. Responsabiliza o seu analista, o romeno Richard Rapport (12.º do mundo), pelo recente sucesso. Segundo o “El País”, a entourage de Nepomniachtchi desconfia que Carlsen aconselhou Ding, não só relativamente a ideias no tabuleiro, como também à equipa que o deveria envolver. O analista deveria ser muito criativo.

Rapport terá sido uma sugestão do norueguês, porventura para inovar e surpreender nas aberturas (início das partidas). O pai do ex-número 1 não respondeu às perguntas do diário espanhol sobre o tema, já a federação chinesa garantiu não ter conhecimento de tal facto.

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Ding, o primeiro homem chinês a converter-se em campeão mundial de xadrez, descreve-se como alguém “muito emocional” e “racional”. Aprecia arte e joga basquetebol. Há uma frase, numa das muitas entrevistas que deu a seguir ao triunfo, que é simultaneamente maravilhosa e intrigante: “Na minha vida normal gosto de ver e escutar a chuva”.

Sérgio Rocha, mestre internacional desde 1996, lembra-se bem da primeira vez que privou com o novo campeão do mundo. “Quando conheci o Ding, na primeira grande vitória da China em termos coletivos, na Olimpíada de Tromso, era extremamente introvertido e praticamente não falava uma palavra de Inglês”, recorda à Tribuna Expresso. E garante: “É um prodígio”.

E acrescenta: “Nos dias de hoje, os jogadores tendem cada vez mais a ter estilos universais devido à presença cada vez mais forte dos computadores ao nível da preparação teórica e Ding não é excepção. É um jogador com um poder de cálculo absolutamente fabuloso, foi número dois do mundo durante vários anos, apenas atrás do Magnus Carlsen, que dominou o xadrez na última década, mas também já demonstrou neste Campeonato do Mundo que é capaz de jogar de forma posicional, nos finais ou em posições inferiores com absoluta mestria”.

O asiático estava mais do que feliz depois da vitória estrondosa de domingo. “É um alívio enorme”, garantiu. A final contra o russo, que foi vice-campeão em 2021 e 2023 e que terá pecado uma vez mais na questão mental (e nunca por falta de talento), refletiu a “profundidade” da alma do chinês, explicou Ding ainda na ressaca da derradeira partida em Astana.

“Não basta ser campeão”, defendeu o novo rei do xadrez. “Quero ser o melhor. O título não é tão importante.” Ou seja, paira no ar a sombra de Magnus Carlsen, o génio que saiu de cena sem ser derrotado. Será sempre um fantasma. Ding já lançou a corda para um duelo. Os especialistas acham algo muitíssimo improvável.

Este rapaz que está encantado com a chuva é também um muitíssimo apreciador de literatura. Gosta de ler muito. Talvez o tenha feito nas muitas horas livres em Astana, quando ia passear e se sentava na relva para quem sabe amansar a mente. Quando foi questionado sobre o improvável empate que assegurou na última partida da fase regular, Ding citou um importante escritor.

“Lembrei-me de como Albert Camus elabora o conceito de resistência”, disse nesta conversa com o “El País”. “Se vês que não podes ganhar, faz o que puderes para resistir. Essa lembrança injetou-me a determinação que necessitava.”

E Ding, mansamente, respeitou esse ensinamento, primeiro quando a pandemia de covid-19 ameaçou a sua viagem até às estrelas, depois quando a guerra, inesperadamente, lhe deu um lugar na mesa dos grandes. Os peões, as torres, os bispos, cavalos e realeza, ora fardado de branco, ora de preto, obedeceram-lhe durante aquelas maratonas angustiantes e a trama soprava a seu favor.

A nova revolução cultural na China - que chegou a banir a prática do xadrez no país em 1966 e manteve a proibição durante cerca de uma década - nunca esquecerá um nome: Liren Ding. E talvez e mais do que nunca, em vez de queimados, serão escritos livros sobre a modalidade.