Tudo em torno da vida de Homero está envolto em dúvida. O seu local de nascimento, se foi mesmo autor das obras que lhe são atribuídas, a sua própria existência. Mas é certo que até nós chegaram a “Ilíada” e a “Odisseia”, poemas épicos que resistiram ao desafio da passagem do tempo.
Se houvesse espaço para um ciclista nos poemas épicos clássicos, a personagem que se descreveria seria em tudo semelhante a Mathieu Van der Poel. Ali há audácia para atacar uma e outra vez, há talento para flutuar entre o empedrado e curvar desenhando tangentes, há desafios aos limites impostos pelos deuses aos humanos. Há aventura individual nas cavalgadas em solitário que faz e esforço coletivo quando ajuda companheiros a vencer provas.
Lá vai ele, acelerando uma e outra vez, obcecado com o objetivo. Todos andam de luvas colocadas, tentando minimizar o efeito da trepidação das mãos. Van der Poel não: pedala de mãos descalças, nuas, quase a querer sentir mais os pavés, conectando-se com a alma do ciclismo que se encontra inscrita em cada pedra do Paris-Roubaix.
Vencedor da Milão-San Remo desta época, num ataque fulminante que deixou para trás Pogacar e Van Aert, que com ele completam a Santíssima Trindade do ciclismo atual, e do Tour de Flandres em 2022 e 2020, Mathieu Van der Poel entrou sozinho em Roubaix, no velódromo mais icónico do mundo. Teve tempo para apreciar o cenário, pedalar sorridente, aproveitar o momento, ganhar o Paris-Roubaix. São já quatro triunfos em três monumentos diferentes. Falta só a Liège-Bastogne-Liège e a Lombardia para o neerlandês que é a epopeia feita ciclista.
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Como em todas as grandes festas populares, o Paris-Roubaix começa a ser preparado com um ano de antecedência. Quando se chega ao velódromo numa edição, já se prepara a seguinte.
No “inferno do norte”, os setores de pavé são sagrados. Qual santuário das bicicletas, são tratados com carinho e amor, respeitados, cuidados, património empedrado das duas rodas não motorizadas.
Há 30 setores, numerados por ordem decrescente, do primeiro, a mais de 150 quilómetros da meta, ao último, já em Roubaix, antes do velódromo que consagra heróis. E são mantidos da forma mais natural possível.
Para que não cresçam muitas ervas entre as pedras, cabras da região são levadas para os troços empedrados em paralelo para as comerem. Os herbívoros são transportados por associações de produtores locais para os pavés, ingerindo as ervas soltas que crescem entre as pedras e que se podem tornar escorregadias e traiçoeiras para os corredores. No Paris-Roubaix tudo é tradição, mitologia, um aroma aos homens que, ainda no século XIX, participaram nas primeiras edições da corrida.
As cabras que comem as ervas que crescem nos troços de pavé
Antes das grandes ações começarem, Peter Sagan caiu e abandonou, um final triste na temporada de despedida para o craque esloveno.
A corrida foi fiel ao momento atual do ciclismo, cheio de loucos dispostos a proezas até há pouco consideradas dignas de inconscientes. A mais de 100 quilómetros da meta, mesmo antes de Arenberg, a Jumbo-Visma mexeu com a corrida. Ficou um grupo de luxo, com Van Aert, Van der Poel, Kung, Degenkolb, Philipsen ou Ganna. Não mais seriam apanhados.
Os setores de cinco estrelas, os mais difíceis, foram deixando marcas. Arenberg atirou para fora da disputa Dylan van Baarle, vencedor do ano passado, e Laporte, que poderia ser uma ajuda fundamental para Van Aert.
A dureza de Arenberg
Nos últimos 50 quilómetros, Van der Poel ativou o modo animal. Começou a acelerar uma e outra vez, cara ao vento, rodando acima dos 45 quilómetros por hora em troços de pavé.
Van Aert, o grande rival de Van der Poel, ia respondendo. Se Van der Poel é, hoje, o ataque audaz, a aceleração feroz, Van Aert é mais calculismo e frieza. O belga é um atleta fantástico, um todo-o-terreno fascinante, mas começa a ficar com um palmarés que, ao nível de monumentos, é curto para a qualidade que possui.
Desde a Milão-San Remo, em 2020, que não ganha uma das cinco principais corridas de um dia do calendário. A sucessão de derrotas para Van der Poel começa a ganhar contornos quase esotéricos.
Porque, ao contrário do que sucedeu noutras ocasiões, é difícil dizer que Van Aert foi interior a Van der Poel. O neerlandês da Alpecin-Deceunick testou o rival uma e outra vez, mas o belga agarrou-se à roda do futuro vendeor.
Tudo se decidiria nos 2.100 metros do Carrefour de l'Arbre, a menos de 17 quilómetros da meta. John Degenkolb, o único do grupo que já tinha vencido o Paris-Roubaix, caiu no começo do troço. Van Aert acelerou e foi apanhado por Van Der Poel.
O momento em que Van der Poel se afasta de Van Aert, que tinha um furo
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Era o final sonhado. Os dois magníficos, em confronto direto, com o Carrefour de l'Arbre e mais três troços de empedrado pela frente. A epopeia de Van der Poel, a universalidade de Van Aert, o destino cruzado dos craques que se medem um ao outro na estrada e no cyclo-cross.
Numa das mudanças de velocidade de Van der Poel, Van Aert começou a ficar para trás. Dois metros de distância, cinco, 10, 15. À saída do Carrefour de l'Arbre, viu-se que a diferença não se fez por falta de capacidade física: o belga tinha furado e teve de trocar de roda.
Van der Poel foi sozinho, o Paris-Roubaix estava decidido. Talvez tenha sido um final anti-climático para uma corrida fantástica, mas é, também, a demonstração do que é esta corrida, uma roleta-russa em que tudo conta. “Para ganhar aqui é preciso ter boas pernas e sorte e eu tive ambas”, comentou o vencedor no final da corrida.
Jasper Philipsen foi segundo, na dobradinha para a equipa de Van der Poel. Van Aert terminou em terceiro, mais um monumento em que o belga volta a bater na trave.
O neto de Raymond Poulidor continua a escrever história. Continua a escrever a sua epopeia.