Se fizermos uso da imaginação, a mais potente das armas, e pensarmos numa viagem até aos pontos mais altos do mundo, onde o oxigénio não abunda, a banda sonora que atribuímos à cena é silenciosa e a companhia que nos rodeia escassa. Visualizamos nada além da natureza, a montanha, o gelo e nós nos telhados do planeta.
Pois bem, para muitos daqueles que têm andado nesses tectos da Terra, a experiência passou da imaginada solidão para o real engarrafamento.
A 22 de julho, no K2, a segunda montanha mais alta do mundo (8,611 metros), 145 pessoas chegaram ao cume, a mesma quantidade registada entre 1954 e 1996. Um novo recorde diário numa ascensão que, sendo mais baixa que o Evereste, é, por muitos considerada como a montanha mais difícil de subir.
Acampamento base no K2
ullstein bild/Getty
George Bell, alpinista norte-americano, definiu o K2 como "uma montanha selvagem que tenta matar-te", e o polaco Adam Bielecki como "o pior síto da terra". Localizada na fronteira entre a China e o Paquistão, a montanha é um cocktail de adversidades. Ao contrário do Evereste, o K2 quase não tem setores planos, não sendo possível "andar" até ao topo. O inferno na terra que é o K2 levou-o a ser a última montanha acima dos 8 mil metros a ser conquistada no inverno. Só em janeiro de 2021 uma equipa de 10 nepaleses conseguiu, pela primeira vez, fazer a ascensão na altura mais hostil do ano.
Os últimos 600 metros da ascensão são especialmente difíceis, estando aí localizada a "Bottleneck", ou "gargalo", setor mais perigoso da subida — lá morreram 11 pessoas num desastre em 2008, por exemplo. E é, justamente, nesse local de pesadelos que foram filmados os engarrafamentos nos últimos dias. Mingma Gyabu Sherpa, nepalês que é a pessoa mais nova de sempre a ter chegado ao topo das 14 montanhas com mais de 8 mil metros, foi um dos que partilhou imagens do congestionamento.
Óscar Gogorza, especialista em montanha que escreve no "El País", diz que haver engarrafamentos no "gargalo" do K2 é como "fazer fila para comprar o pão debaixo de um edifício em chamas". A enorme massa de gelo que forma aquela zona torna-a quase numa bomba-relógio, onde a qualquer momento a montanha pode rugir, o pior sítio possível para concentrar uma pequena multidão.
As imagens no K2 recordam as registadas no Evereste, primeiro em 2012, quando os especialistas começaram a alertar para os perigos da massificação das expedições ao ponto mais alto do planeta Terra. A procura não diminuiu e em 2019 correram pelo mundo fotografias e vídeos que quebraram a tal imagem mental da montanha como local inóspito: filas de mais de 200 pessoas, durante largas horas, à espera para chegar aos 8.848 metros do topo da nossa casa.
Também no Annapurna, que com 8.091 metros é o 10.º ponto mais alto do mundo, houve engarrafamentos em abril de 2021. Num só dia desse mês, 67 pessoas chegaram ao cume — como ponto de comparação, esse número é igual ao total de ascensões registadas entre 1950 e 1990 no local.
Nirmal Purja é uma das figuras mais mediáticas deste mundo da aventura. Natural do Nepal mas com nacionalidade britânica, fez parte da primeira expedição que chegou ao topo do K2 no inverno e ganhou fama quando conseguiu escalar os 14 "8 mil" em somente 189 dias, um recorde.
O antigo membro do exército do Reino Unido falou, em 2020, ao "Guardian" sobre os perigos deste acotovelamento de almas nos píncaros da Terra. Nirmal Purja diz que, "se for preciso tirar um corpo" de uma das montanhas, é "impossível fazê-lo com tanta gente em fila". O montanhista lembra que, naquelas circunstâncias, "toda a gente está numa linha fina entre a vida e a morte" e concentrar ali tantas pessoas é "um risco".
A principal razão que leva a este overbooking é económica. No Nepal e no Paquistão, muitas empresas encontraram no turismo associado à aventura de chegar às montanhas mais altas uma lucrativa atividade, organizando expedições para que pessoas de todo o mundo vão ao Evereste e seus vizinhos. Os sherpas, grupo étnico natural das regiões mais altas dos Himalaias, especializaram-se na arte de levar até aos cumes quem os queira ascender.
Imagem de uma subida ao Evereste, em maio de 2021
LAKPA SHERPA
O Evereste foi, justamente, a primeira montanha a ser explorada desta forma, aproveitando a sedução que rodeia chegar ao ponto mais elevado da Terra. Lá se construíram verdadeiras auto-estradas cómodas e seguras para quem queira atingir os 8.849 metros, com cordas fixas, depósitos de oxigénio e trabalhadores altamente qualificados para equipar, guiar e acompanhar as subidas.
Por cerca de €50 mil é possível fazer parte de uma dessas expedições comerciais, que vendem o troféu que é ter uma fotografia a pousar acima de todo o restante planeta. Vendo o êxito do Evereste, as empresas começaram a expandir o modelo a outras montanhas, particularmente depois da pandemia, que levou a que, por exemplo, o Nepal fechasse as suas fronteiras a 24 de março de 2020. É essa expansão que levou às imagens do K2 na última semana.
Em maio de 2019, as filas no Evereste evidenciaram bem os perigos da sobre-exploração de alguns dos locais mais perigosos da Terra. Muitas das pessoas que estão nestas expedições não têm experiência e isso, a somar às filas que levam ao muito tempo de espera para subir — aumentando a exposição às difíceis condições atmosféricas —, gera a tempestade perfeita para que o pior aconteça. Segundos dados oficiais, 11 pessoas morreram no Evereste em maio de 2019, mais do dobro do total do ano anterior, quando lá perderam a vida cinco pessoas.
Thomas Becker, um experiente escalador, estava no Evereste nesse mês. Professor de Direito em Harvard, descreveu ao "Guardian" a sua "experiência traumática". Desde logo, na noite anterior a subir, foram-lhe roubadas, no acampamento base, oito garrafas de oxigénio, numa "quebra dos códigos da montanha", que "impedem" que alguém faça isso porque "pode levar à morte de quem fica sem as garrafas".
"É algo que nunca acontece e mostra como escalar ao Evereste se tornou algo sem regras", diz.
Quando estava a subir, Becker, "preso num engarrafamento de mais de 40 pessoas", conta, esteve "várias horas" a ajudar uma mulher "que não sabia o que estava a fazer" num dos exemplos de alguém que paga para fazer a ascensão "sem ter o mínimo de preparação". Enquanto auxiliava aquela pessoa, atrás de si Becker ouvia gritos de "metam-se a andar" ou "saiam da frente", longe do bucolismo da natureza e mais perto do stress de um centro comercial em hora de ponta.
Imagem de uma expedição ao K2
Mountain Light Photography
"Num desporto onde a autonomia de movimentos é fundamental, estar com tanta gente que não sabe o que está a fazer à volta pode ser letal", refere Mingma Gyabu Sherpa, que tem alertado para os engarrafamentos nos últimos dias no K2. Os perigos não se limitam às vidas humanas, mas também ao impacto no até há não muito virgem meio envolvente dos tectos do mundo.
Devido à atividade humana, as autoridades do Nepal estão a mudar a localização do acampamento base do Evereste, pois a atual já não é segura. Em abril de 2021, aproveitando a menor afluência devido à pandemia, uma equipa de nepaleses foi à montanha mais alta do mundo fazer trabalhos de limpeza: foram encontradas pilhas de garrafas de combustível vazio, excrementos humanos, restos de plástico para comida ou tendas (com o logótipo das empresas de escalada devidamente cortado, para que não restassem provas do abandono).
Para subir às montanhas do Nepal é preciso permissão governamental. O número dessas autorizações tem vindo a subir, atingindo o recorde de 381 em 2019, último ano completo sem restrições devido à covid-19 — mais 35 do que em 2018.
Há quem defenda a limitação do número de licenças ou da quantidade de pessoas permitidas por expedição, mas as autoridades do Nepal não parecem dispostas a isso devido à fonte de receitas que a aventura traz para a debilitada economia local. No outono de 2021, o Ministro do Turismo do país "incentivou" os turistas a "voltarem" ao Evereste depois da pandemia, tanto "pelo prazer como pela fama".
O aumento das pessoas em sítios outrora inexplorados traz questões para a saúde de humanos e natureza. Thomas Becker reflete sobre o aumento de mortalidade recente no Evereste: "Em 2019 houve pessoas que morreram, literalmente, devido à sobre-exploração comercial da montanha. Há esta ideia de que gastando dinheiro vais conseguir chegar ao cume, o que enche o Evereste de quem nunca escalou na vida. Faz-me pensar se quero ser parte desta cultura de romantização do Evereste que, ao trazer este tipo de turismo, traz morte e degradação da natureza", diz o professor de Direito e experiente escalador ao "The Guardian".