Da fuga pelo pai até aos maiores títulos, Pedro Pablo Pichardo vai a caminho de ganhar tudo por Portugal. O recorde mundial é a motivação
Em 2017, Pedro Pablo Pichardo desertou de Cuba para cumprir um único desejo: voltar a treinar com o pai, Jorge, impedido de o fazer pelo regime cubano. A fuga envolveu um plano com dois anos e mais de 30 horas dentro de um carro. Pouco depois estava em Portugal. A naturalização foi rápida e a rivalidade com Nelson Évora trouxe desgaste. Mas Pichardo responde em pista: pouco emotivo mas absolutamente focado, juntou este domingo o título mundial ao olímpico conquistado há um ano. Com a vida assentada na margem sul do Tejo, não dispensa sardinha assada e um bom bacalhau à brás. E tudo o que quer é que o deixem de tratar como "luso-cubano"
24.07.2022 às 13h03

Cameron Spencer
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Quando em abril de 2017 estalou a notícia que mais uma estrela do desporto cubano tinha desertado, já todos conheciam o nome de Pedro Pablo Pichardo. Ele não era mais um. Era um antigo campeão mundial júnior, tinha duas medalhas de prata em Mundiais já como sénior. E, mais impressionante, era então um dos cinco homens da história a saltar para lá dos 18 metros no triplo.
Dias depois, Pichardo apareceria em Portugal. Em dezembro desse ano já tinha o passaporte, mas apenas em 2019 foi autorizado a participar em provas internacionais pelo país. Fê-lo nos Mundiais de Doha, onde foi 4.º classificado. Daí a frase “este título estava em dívida” depois de na madrugada deste domingo, ainda sábado na costa oeste dos Estados Unidos, onde decorrem os Mundiais de 2022, ter feito soar “A Portuguesa” em Eugene, no estado do Oregon. Aos 29 anos, completados há menos de um mês, Pichardo é finalmente campeão mundial, que junta ao título olímpico conquistado em Tóquio há um ano. Nos grandes títulos ao ar livre falta-lhe apenas o Europeu, que pode até ser seu em breve - os Europeus de Munique arrancam daqui a apenas três semanas, uma coincidência de calendário que se deve à pandemia que tudo baralhou.
Esse possível bingo acontecerá não muito longe de uma cidade que ficará para sempre na história pessoal de Pichardo. O triplista estava em Estugarda, na Alemanha, num estágio da seleção cubana, que preparava os Mundiais de 2017, quando se reuniram todas as condições para dar outro salto, um salto que há já dois anos planeava com o pai: fugir do sistema cubano, que o tinha impedido de trabalhar com Jorge Pichardo. Jorge era então treinador na Suécia, para onde saiu depois de ser impedido de treinar em Cuba.
“Estive uma semana a estudar a forma de fazer tudo, porque a equipa de Cuba está sempre acompanhada por um agente de segurança do Estado. Ia falando com o meu pai, no quarto, através de mensagens. Não falávamos ao telemóvel porque podiam ouvir a voz. Era só por SMS”, explicou numa entrevista à Tribuna Expresso em 2019. O pai fez então 30 horas de carro desde a Suécia para encontrar o filho. A fuga aconteceu à noite, depois de Pichardo regressar ao hotel após o jantar da equipa.
A saltar para o título em Eugene, nos Estados Unidos
Patrick Smith/Getty
A estadia na Suécia não se alongou. Pedro Pablo Pichardo não gostava do frio nórdico, que sentia nos dedos das mãos, e queria outras condições para treinar. Pouco depois era anunciado como atleta do Benfica. Portugal tinha sido o destino eleito, ele que tinha propostas mais atrativas até a nível financeiro. Do Azerbaijão, por exemplo, como confessaria após conquistar o ouro em Tóquio. Turquia, Itália, Espanha e até as Bahamas eram outras opções. Diz ter escolhido Portugal por haver poucos atletas cubanos por cá, o que lhe permitiria, a ele e ao pai, trabalhar com mais paz.
Foi em Portugal que finalmente Pedro Pablo e Jorge reuniram a equipa que tinha tornado o atleta num dos melhores do mundo no triplo. O atleta coloca o pai, com a sua exigência com a preparação e conhecimentos técnicos, como o máximo responsável pelos seus resultados. “Costumo dizer à minha família que eu sou como um robô que o meu pai foi construindo peça por peça. Quando o mecânico do robô não está, o robô funciona, mas não funciona bem. Era isso que acontecia”, disse em entrevista à Tribuna, ao falar dos resultados menos bons que tinha quando não era o pai a dirigir o seu treino.
Pichardo começou no atletismo aos seis anos, praticando todas as disciplinas. Com oito anos já fazia saltos, mas era nas barreiras que tinha melhores resultados, tendo chegado mesmo a ser o melhor atleta do país nos 60 metros em jovem. A ida do pai para a Venezuela, numa missão do regime cubano, levou a uma queda abrupta no seu rendimento. O pai regressaria antes do tempo da Venezuela para voltar a orientar o filho, o que lhe viria a causar um diferendo com as autoridades cubanas, nunca resolvido.
O foco no triplo salto aconteceu quando tinha “14, 15 anos”, disse à Tribuna Expresso. Mas mesmo com o regresso aos bons resultados, em Cuba só lhe permitiam voltar para o Instituto Nacional do Desporto e às competições internacionais caso não fosse treinado pelo seu pai, situação que provocaria a rutura definitiva da família com o país onde nasceu. Tímido e homem de poucas euforias e emoções, que diz que nem sequer com o nascimento da filha - já em Portugal - chorou, os olhos de Pichardo deixaram escapar o peso da tristeza quando nos Jogos Olímpicos de Tóquio relembrou a falecida avó, que deixou em Cuba.
“Se continuei no desporto foi por ela. Antes de deixar Cuba falei com ela e ela deu-me autorização, sabendo que eu não poderia voltar mais e que poderia acontecer o que acabou por acontecer, que era ela morrer e eu nunca mais a ver”, disse, num raro momento de emoção de alguém que até nos festejos é comedido.

Com o ouro olímpico em Tóquio, há um ano
Michael Steele/Getty
Em Portugal, a sua rápida naturalização trouxe críticas, num processo que, diz, juntou a sua vontade com a do Estado, Federação Portuguesa de Atletismo, Benfica e Comité Olímpico de Portugal. O duelo de palavras com Nelson Évora, que se estendeu até aos Jogos Olímpicos de Tóquio, esteve também sempre muito presente no percurso de um atleta que luta por deixar de ser conhecido como “luso-cubano”.
Ainda sobre essa rivalidade, com todo o desgaste que trouxe a ambos, Pichardo disse em 2019 que o seu rival era “18 metros e 29 centímetros”. Fala da marca conseguida há quase 30 anos por Jonathan Edwards e que até hoje ninguém conseguiu bater. E é essa a distância que tem na cabeça a cada salto, o recorde mundial. Para já, ainda lhe falta saltar pela primeira vez 18 metros como português. Tanto nos Jogos Olímpicos como agora nos Mundiais ficou a escassos centímetros. E por isso parece sempre não totalmente satisfeito com as suas glórias. Disse em Tóquio que o seu objetivo, para lá das medalhas, é aparecer nos livros dos recordes, das grandes marcas. É essa a motivação.
Por cá a sua vida assentou na margem sul do Tejo, onde vive com a mulher, a filha e os pais. É por lá que também treina. Depois de uns primeiros meses em que sentiu dificuldades para ter as melhores condições para a preparação, tendo mesmo ameaçado deixar o país, encontrou a estabilidade no complexo de Setúbal, onde tem o seu próprio espaço, com relva e caixas de areia. O Benfica montou-lhe ali um ginásio e é por isso que a cada vitória não deixa de agradecer ao clube e à autarquia setubalense. Comprou casa no Pinhal Novo e já adotou muitos dos hábitos portugueses. Gosta de sardinha assada e, depois da desconfiança, não abdica de um bom bacalhau à brás. O hino já o canta, mesmo com sotaque. Ouve reggaeton e kuduro. E papa títulos por onde quer que passe.
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