Caster Semenya, atleta sul-africana de velocidade, múltiplas vezes campeã mundial e olímpica dos 800 m, competiu nos Mundiais de Atletismo pela primeira vez desde 2017, sem sucesso. Semenya nasceu com cromossomas masculino e feminino, mas sempre se declarou mulher. As mais recentes regras do atletismo obrigavam-na a fazer tratamentos hormonais para poder competir em provas de velocidade. A atleta recusou e acabou por participar nos 5.000 m.
“Conseguir acabar os cinco quilómetros, para mim é uma bênção”, confessou a atleta, que terminou no 13º lugar – entre 16 participantes – e foi eliminada, não podendo participar na final do próximo sábado. Com temperaturas a rondar os 32 graus, Semenya admitiu aos jornalistas que estava “a cozer”. “Estava calor e eu não conseguia manter o ritmo”, disse a atleta que ficou a quase um minuto da vencedora, a etíope Gudaf Tsegay.
Há muito que se sabiam escassas as hipóteses de sucesso da sul-africana nos Mundiais do Oregon, nos EUA. Há mais de uma década que Semenya vinha dominando os 800 m, mas as regras mudaram e a velocista de 31 anos adaptou-se, mas não sem bater o pé às condições impostas. Caster recusou os tratamentos de redução hormonal que lhe permitiriam continuar a correr a sua distância favorita. Numa declaração emitida através do seu advogado, a atleta chamou à imposição “uma afronta ao espírito do desporto”.
Logo após o nascimento, Caster Semenya foi considerada como sendo do sexo feminino e foi criada como mulher. Caster sofre de uma condição intersexual chamada 46,XY. Uma das caraterísticas verificadas é um nível de testosterona mais elevado do que os habituais valores em elementos do sexo feminino. A World Athletics criou uma regra que impede mulheres na sua condição de participar nalgumas provas. A sul-africana apresentou recurso, mas perdeu.
Como explica a Associated Press, Caster não é transgénero. No entanto, o seu caso e outros semelhantes têm implicações fortes na forma como as atletas transgénero são tratadas e classificadas. A situação de Semenya pode ser considerada equivalente à da vencedora da prata olímpica nos 200 m Christine Mboma. Ambas são provas vivas da complexidade das regras do atletismo relativamente à participação de mulheres com elevados níveis de testosterona, o que alguns argumentam ser uma vantagem injusta sobre outras competidoras.
Entre as alíneas que tecem a lei, há também espaço para a contradição. As atletas com a condição de Semenya ou Mboma ficam impedidas de participar em distâncias que vão dos 400 m a uma milha (1,64 km, aproximadamente). Isso significa que, enquanto Semenya foi impedida de correr os 800 m, Mboma pôde continuar dentro da sua zona de conforto, os 200 m.
A questão da participação de mulheres transgénero no desporto de elite, diferente da situação das duas africanas, embora com muitos pontos de contacto, tem sido debatida há vários anos. No entanto, a ação da Federação Internacional de Natação (FINA), já este ano, banindo as atletas transgénero de competições femininas se não fizessem tratamentos médicos para reduzir a produção de testosterona, acabou por reacender a discussão. Na altura, o presidente da World Athletics, Sebastian Coe, foi rápido a mostrar o seu apoio à atitude da FINA.
“O equilíbrio entre a inclusão e a justiça irá sempre, na minha opinião, cair para o lado da justiça”, disse Coe, dando a entender que o endurecimento da posição da World Athletics, que reúne em novembro, é inevitável. Numa rara entrevista à HBO, no início de 2022, Semenya confessou que chegou a dizer aos juízes de pista: “Não faz mal. Sou uma mulher, não quero saber. Se quiserem ver que sou mulher, mostro-vos a minha vagina. OK?”.
Roger Pielke Jr, professor da Universidade de Colorado Boulder e perito em gestão desportiva, considera que os líderes de dois importantes desportos olímpicos – atletismo e natação – se encontram numa situação de “pânico moral”. “Como se não houvesse questões mais importantes para tratar no desporto”, acrescenta Pielke Jr.
Joanna Harper, mulher transgénero e conselheira da World Athletics nas questões trans e de intersexualidade, pensa que a atitude da FINA foi “um mau precedente”. Harper apoia a criação de algumas regras, mas considera que o organismo máximo da natação mundial não deixou espaço para um compromisso. “Penso que [a decisão] foi desnecessária e injustificada”, disse Joanna Harper à AP, na passada terça-feira.