Em crianças todos fazemos as nossas tropelias. Subir muros, árvores, cair, esmurrar um joelho a cara, enfim, essas coisas. A maioria dos seres humanos passam esta fase e depois engordam as estatísticas dos adultos sedentários. Mas há quem aproveite as reguilices da infância e faça disso vida.
Como Janja Garnbret, por exemplo.
A eslovena é assim uma espécie de Cristiano Ronaldo da escalada, modalidade que faz a estreia nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 e há muito boa gente que apareceu no Aomi Urban Sports Park só para a ver. Aos 22 anos, Garnbret tem seis títulos mundiais, incontáveis eventos da Taça do Mundo. É um prodígio nesta nobre arte de subir a paredes mais ou menos inclinadas, com mais ou menos desafios. Ela normalmente resolve-os a todos.
Em Tóquio, a prova só dá uma medalha e é uma mistura das três categorias, que são diferentes entre si e têm especialistas também bem diferentes. Há a prova de velocidade, em que as atletas têm de subir uma parede o mais rapidamente possível, lado a lado com outra rival. Há o bouldering, em que numa parede baixa as atletas, sem cordas ou qualquer proteção, têm de encontrar o melhor caminho para chegar ao fim. E por fim o lead, em que o objetivo é, basicamente, ser o último a cair - as atletas, com corda e arnês, têm em seis minutos de subir uma gigante parede, que vai inclinado ao longo do caminho até ao topo. No fundo, é o mais parecido que escalar uma escarpa natural.
Nos Mundiais e Taças do Mundo, as três categorias estão bem separadas. Aqui juntaram tudo numa única competição e com um sistema de pontuação esquisito: pega-se nas três qualificações e multiplicam-se. Pelo que até à prova de lead, a última da final, é impossível saber quem ganha e pode haver surpresas. Na prova masculina, Adam Ondra, o checo que é o melhor escalador do Mundo, ficou fora das medalhas depois do exercício de bouldering não lhe correr bem.

MOHD RASFAN
Isso não aconteceria a Janja. A eslovena nascida numa pequena vila do seu país, Slovenj Gradec, onde ainda vive, foi uma dessas crianças travessas. Subia a tudo, em todo o lado, nem os móveis da casa escapavam. Os pais, em vez de ralhar com ela, meteram-na num clube de escalada. E ela com 16 anos já brilhava na Taça do Mundo da modalidade. Ao site especializado Girlifornia disse que o que a atrai mais na escalada é o “desafio físico e mental” e o sentimento que a invade “quando chega ao topo”.
Quando está na parede, diz, “nada mais importa”. É só ela e um monstro para quebrar. Chegou aos Jogos Olímpicos como favorita incontestada e nem o gigante megazord - quem viu a série Power Rangers vai entender - que está virado para o Aomi Urban Sports Park vai meter-lhe medo. Aliás, para preparar a sua chegada a Tóquio, Janja fez duas coisas: aprendeu o básico do japonês e treinou na maior chaminé da Europa, em Trbovlje, no seu país natal.
Garnbret é apenas 5.ª em oito finalistas na velocidade. Um resultado normal já que essa não é a sua praia. No bouldering, que tem três exercícios, as coisas viram. É o mais parecido com xadrez numa parede. Os desafios são curtos, mas terríveis, para mais sem ajuda. Há quedas feias e nenhuma atleta consegue chegar ao fim do primeiro desafio. Há quem nem sequer consiga começar, como a polaca Aleksandra Miroslaw.
Até que entra Garnbret em ação e limpa a parede como quem vai só ali ao lado comprar um litro de leite ao supermercado. É a única a completar a primeira parede. E a segunda. Tem a força nas pernas e braços e o equilíbrio que as colegas não têm. A terceira parede já nem precisa, porque nenhuma das concorrentes está sequer perto.

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No lead, volta a ser a mais forte. É a única que vê o topo, mas cai antes disso. Não há problema porque quase todas caíram bem antes dela. As suas classificações nas três disciplinas multiplicam-se: o 5.º lugar na velocidade vezes o 1.º no bouldering e o 1.º no lead. O que dá, portanto, 5. Seguem-se as japonesas Miho Nonaka, com 45 pontos e Akiyo Noguchi com 64. Um abismo entre Garnbret e a concorrência.
Ao contrário da competição masculina, nem o sistema de pontuação bizarro tirou o título à favorita. É assim que acontece quando se é mesmo muito melhor que as rivais. Em Paris 2024, a escalada, que tem a sua graça mas que em Tóquio 2020 ainda teve demasiado ar de modalidade de exibição, terá a competição finalmente dividida nas três disciplinas.