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Nos Jogos Olímpicos o ativismo também tem regras: o X pode significar o fim de um sonho

A neutralidade sempre foi uma regra a aplicar aos atletas dos Jogos Olímpicos. Mas fazer deste palco desportivo uma plataforma para defender causas, afirmar posições políticas ou protestar tem sido uma escolha para alguns atletas ou mesmo países. Antes de Tóquio aligeiraram-se as normas, mas nem todas as manifestações são permitidas. Raven Saunders, que fez um X no pódio, pode vir a ser sancionada e a bielorrussa Krystsina Tsimanouskaya não deverá voltar ao seu país, por ter ousado fazer críticas. São os exemplos mais recentes na história dos protestos olímpicos

Mafalda Ganhão

Ryan Pierse

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Em janeiro de 2020, a estrela norte-americana do futebol Megan Rapinoe sintetizava o descontentamento de muitos atletas em relação às apertadas regras definidas pelo Comité Olímpico Internacional (COI), que por essa altura especificou o tipo de protestos políticos que não seriam aceites nos Jogos de Tóquio. “Tanto a ser feito por causa dos protestos. Tão pouco sobre aquilo que nos faz protestar. Não seremos silenciados”, escreveu no Instagram.

A também norte-americana Raven Saunders parece tê-la levado à letra. Já com a medalha olímpica ao peito, a segunda melhor em Tóquio no lançamento do peso fez pose para a fotografia e ergueu os braços para com eles fazer um X. O gesto foi uma assumida tomada de posição, o querer dar voz aos que, no mundo, “estão a lutar e não têm uma plataforma para falar”.

O X, como explicou, pretendeu ser o símbolo da “intersecção onde todas as pessoas oprimidas se cruzam”, mas foi também um pontapé nas normas. É verdade que, quase com os Olímpicos a arrancar, o COI cedeu e acabou por flexibilizar a famosa Regra 50, base para ‘calar’ os atletas, mas o pódio continua a ser um lugar sagrado, que não pode ser usado como palco extradesportivo. A atitude de Saunders está a ser avaliada. No limite das sanções previstas, pode perder a medalha.

Não que tenha sido a única a desafiar a neutralidade imposta.

Antes dela, há 52 anos, nas Olimpíadas do México, o então presidente do comité ordenou que os velocistas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos fossem expulsos da sua equipa e da Vila Olímpica por causa de um episódio semelhante. Ambos ergueram os punhos fechados, calçados com luvas pretas, reproduzindo a saudação ‘Black Power’ quando estavam no pódio. O protesto do vencedor dos 200 metros em 1968 e do companheiro que foi medalha de bronze aconteceu meses depois do assassinato de Martin Luther King Jr. desencadear distúrbios raciais nos EUA e ficou para a história esse momento, a que o toque do hino deu ainda mais solenidade.

Uma regra muito contestada

Olhando para trás, outros atletas ousaram. Mas em matéria de contestação ou tomada de posições políticas, nunca chegaram para derrubar o ideal apolítico defendido internamente . “Nenhum tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial é permitida em quaisquer locais olímpicos, locais ou outras áreas”, declara a regra 50 da Carta Olímpica.
A norma tem sido calorosamente debatida e contestada. A discussão dura há décadas, mas escalou nos últimos dois anos, quando acontecimentos como a morte do afro-americano George Floyd às mãos de um agente da polícia, em Minneapolis, influenciaram um maior ativismo na sociedade e também entre os atletas.

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Oficializada na Carta Olímpica desde, pelo menos, 1975 (já após os protestos de Smith e Carlos), a Regra 50 seria refinada e reescrita ao longo dos anos. A sua alteração recente flexibilizou-a, mas resultou de uma pressão crescente para acabar com ela. Após consulta a cerca de 3.500 atletas de todo o mundo e diversas modalidades . e ainda que grande percentagem se tenha manifestado a favor da Regra - , a Comissão de Atletas do Comité Olímpico Internacional enumerou um conjunto de sugestões para tornar possível aos participantes nos Jogos defenderem as suas causas. O COI aligeirou então a histórica proibição, implementando a Regra 50.2, ainda que as demonstrações dos atletas continuem limitadas. São agora permitidas, mas apenas “antes do início das competições”, ou em alturas específicas como durante as conferências de imprensa; nas zonas mistas; em entrevistas; através das redes sociais ou em reuniões de equipa.

As novas diretrizes também estabelecem que “ao expressar as suas opiniões, os atletas devem respeitar as leis aplicáveis, os valores olímpicos e os demais atletas. Deve-se reconhecer que qualquer comportamento e/ou expressão que constitua ou indique discriminação, ódio, hostilidade ou potencial para violência em qualquer base é contrário aos Princípios Fundamentais do Olimpismo”.

Quanto ao procedimento disciplinar a aplicar em caso de desrespeito, a avaliação compete ao COI.

Para muitos, dentro e fora do desporto, as mudanças souberam a pouco. Mas abriram a portas a cenários inesperados. Em Tóquio, logo na estreia, as jogadoras das seleções femininas de futebol dos Estados Unidos, Suécia, Chile, Grã-Bretanha e Nova Zelândia ajoelharam-se antes dos seus jogos começarem, num gesto antirracista simbólico, como nunca antes visto numa competição olímpica. Noutro cenário, a ginasta Luciana Alvarado, da Costa Rica, chamou também a atenção, ao concluir a prova eliminatória de solo ajoelhada e com um punho erguido -gesto símbolo do movimento “Black Lives Matter”.

Outras manifestações a caminho?

Numa entrevista concedida esta segunda-feira à noite, Raven Saunders referiu que o seu gesto não foi algo isolado. Sem avançar nomes, adiantou que vários atletas, de várias modalidades, combinaram – através de mensagens trocadas – combinaram usar o X como símbolo, em solidariedade com os que sofrem por questões raciais, por pertencerem à comunidade L.G.B.T.Q. ou por se defrontarem com problemas de saúde mental.

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Race Imboden, o esgrimista americano, tinha um X preto com um círculo na sua mão no domingo, durante a cerimónia de entrega de medalhas relativa à competição de florete. Saunders confirmou que o atleta está entre os que planearam manifestar-se. E, já esta terça-feira, Gwen Berry - a lançadora de martelo norte-americana que se afastou da bandeira durante os testes de atletismo dos EUA, em junho – admitiu querer fazer declarações de protesto durante as Olimpíadas. O mesmo se prepara para fazer Noah Lyles, o velocista conhecido por usar luvas pretas e erguer o punho na pista antes das corridas, avança o “New York Times”.

Tóquio fica também marcado pelo episódio envolvendo Krystsina Tsimanouskaya, a velocista bielorrussa de 24 anos, que estava inscrita para disputar os 200 metros esta segunda-feira. No domingo foi levada para o aeroporto pelos representantes do Comité Olímpico da Bielorrússia, por ter acusado os seus treinadores de “negligência”. Mais uma vez a política mistura-se com o desporto. O caso continua em aberto, Tsimanouskaya recebeu um visto humanitário para a Polónia, onde pode solicitar asilo ou status de refugiada, adianta a BBC. enquanto a atleta confirmou penas estar “sob imensa pressão” para regressar ao país. Pediu ao Comité Olímpico “que interfira” e permanece, para já, no Japão “em segurança”, segundo o COI.

Há depois as causas que se defendem, seja ou não intencional o propósito. Apesar de algumas críticas, a ginasta americana Simone Biles e a tenista japonesa Naomi Osaka trouxeram a saúde mental para a atualidade durante os Jogos Olímpicos deste ano, O sofrimento emocional admitido pelas campeãs deu-lhes uma fragilidade muito humana, humanizando de certo forma o próprio evento desportivo, que tantas vezes eleva à categoria de deuses os seus protagonistas.

Bandeiras, boicotes e um combate recusado

Apesar das regras, os JO não conseguiram escapar a várias manifestações e tomadas de posição políticas. Peter O'Connor, atleta irlandês, correu em Atenas em 1906,. Num dos primeiros e mais famosos atos de protesto político da história olímpica, escalou o mastro da bandeira para agitar a bandeira irlandesa.

As novas regras implementadas no final desse ano, no entanto, só permitiam que atletas indicados por um Comité Olímpico competissem. Como a Irlanda não tinha um comité na altura, o Conselho Olímpico Britânico inscreveu O’Connor como seu, o que indignou o atleta. Em protesto, escalou um mastro de 6 metros no estádio, para acenar uma bandeira com as palavras “Erin Go Bragh” (Irlanda para sempre), ajudado por outro atleta, Con Leahy, que distraiu as autoridades gregas.

Há outros exemplos. Em 1968, a ginasta Věra Čáslavská virou a cabeça evitando olhar a bandeira soviética durante a cerimónia de entrega de medalhas, num gesto contra o regime. E não só de atletas viveram os protestos. Em 1980 o Presidente Jimmy Carter anunciou o boicote americano às Olimpíadas de Moscovo, depois de a União Soviética não ter retirado as suas tropas do Afeganistão. Canadá, Alemanha Ocidental e Japão juntaram-se aos Estados Unidos no boicote.

Anos depois, em 1976, um total de 25 países africanos boicotaram os Jogos Olímpicos de Montreal, a forma de contestarem a ida da equipa de rugby da Nova Zelândia para a África do Sul, em pleno apartheid.

Novo boicote aconteceu em 1984, quando a União Soviética recusou participar nas Olimpíadas de Los Angeles, para – em 2004 - novo episódio marcar os Jogos. Arash Miresemaeili, campeão mundial de judo do Irão recusou lutar contra o judoca israelita Ehud Vaks.

““Embora eu tenha treinado durante meses e estivesse em boa forma, recusei lutar contra meu oponente por simpatizar com o sofrimento do povo palestino”, justificou.

Mais recentemente, em 2016, no Rio de Janeiro, Feyisa Lilesa, da Etiópia, prata na maratona, cruzou os braços na linha de chegada, repetindo o gesto feito pelo povo Oromo, o seu país. Protestava contra a repressão policial, mas o corredor não foi punido.