Filha de angolanos, é daquelas que sentem arrepios quando ouve ‘A Portuguesa’ e já não aposta nas meias brancas como amuleto porque aprendeu que a confiança não depende da superstição. A responsabilidade de ter por trás a expectativa de todo um país é o maior empurrão para lançá-la no ar. Campeã europeia de triplo salto, começou por querer ser médica mas fugia dos pais para treinar. A família partiu para Inglaterra e Patrícia ficou, sonhando com voos mais altos. Aos 32 anos aprendeu que um centímetro não lhe cabe no espaço entre os dedos. Um centímetro deu-lhe o ouro mas exigiu-lhe cinco anos de sacrifício e resistência à desconfiança, quando a consideraram velha para o desporto. Garante que está no auge, que tem tempo e confiança para cumprir o projeto de ser campeã olímpica. Depois? O que não lhe faltam são planos.
Quem é Patrícia Mbengani Bravo Mamona, a mulher para lá da atleta?
É muito difícil para mim quando as pessoas dizem que querem conhecer a Patrícia para lá da atleta, porque a minha vida é muito baseada no atletismo, afinal é aquilo que gosto de fazer e que já faço há mais de 20 anos. Mesmo que eu não queira, em aspetos muito básicos, há sempre situações relacionadas com o atletismo. Até na hora de dormir.
A que horas vai dormir?
Às 22h30 vou para a cama, mas só consigo dormir às 23h10. Tenho de me obrigar a dormir e tenho arranjado outras estratégias, porque, antes, ia para a cama mas ficava com o telemóvel na mão e não dormia. Era sempre mais tarde do que devia. Quando estou de férias também é difícil deixar essa rotina, porque, mesmo não estando em modo de treino, a disciplina está lá. Tenho amigos, por exemplo, que combinam ir jantar às 21h30 e para mim já parece tarde. Começo a ficar esfomeada e depois das 22h30, mesmo que a conversa seja muito interessante, começa a dar-me sono, provocado pelo meu estilo de vida.
Tem 32 anos e não parou de estudar. Sempre apostou em dois tabuleiros?
Sim, estou no meu segundo curso. Quando comecei no atletismo foi meramente por gosto, mas ouvia sempre os meus pais dizer que o desporto não me ia dar futuro. O atletismo era o plano B da minha vida. Quando se é muito novo, sonhamos ir aos Jogos Olímpicos e vemos pessoas ilustres, como Carlos Lopes e Rosa Mota, e não fazemos a mínima ideia do sacrifício que teremos de fazer, da dedicação necessária para lá chegar. No meu caso, a minha família teve de emigrar e eu fiquei em Portugal.
Foi a decisão mais difícil que tomou? Tinha 13 anos...
A decisão não foi difícil, o processo, depois, foi. A decisão foi dos meus pais. O meu pai foi fazer um estágio para Inglaterra e ficou a trabalhar lá. O plano era que, depois de preparado o terreno, nos juntássemos a ele, mas na escola, desde muito nova, fui sempre a melhor aluna da turma, tive sempre muito boas notas, no secundário representava a escola nas Olimpíadas de Matemática, e o meu pai percebeu que não seria ideal interromper esse trajeto. E como tinha entrado para a escola com 5 anos, teria de voltar um ano atrás. O meu sonho era entrar para Medicina, e todo o meu percurso indicava que fosse conseguir. No atletismo comecei logo a destacar-me das minhas adversárias. Foi uma escolha que o meu pai teve de fazer. O plano era acabar o 12º ano, eu ficava na casa dos meus tios e depois iria juntar-me a eles em Inglaterra. Entrei para Medicina, mas não conseguia conciliar o curso com o atletismo, quando recebi uma bolsa para ir para a Clemson University, na Carolina do Sul.
Um estado muito racista. Como foi esse embate?
Percebi logo que os termos raciais fazem parte do vocabulário diário dos norte-americanos. Perguntavam de onde eu era, e, como não era nem muito escura nem muito clara, tinha sempre de explicar de onde vinha. Queriam saber como eram os portugueses. Na equipa de atletismo, os mais fortes eram afro-americanos e a nível escolar a maioria era de brancos. E havia sempre a conversa, quando estava nos treinos, de que ia ter com os meus amigos caucasianos. E do outro lado diziam que eu não era realmente preta. Parecia que tinha de decidir para que lado ia e comecei a sentir-me muito mal, até que disse: “Não quero mais saber, sou a Patrícia Mamona, nasci e cresci em Portugal e estamos quites.”
Aqui ainda lhe perguntam de onde vem?
Muitas vezes. Aliás, com as medalhas, há sempre aquela conversa de que “eles são de raça negra, não são portugueses a sério”. Não sei o que é ser português a sério. Sinto que tenho sangue português, nasci em Portugal, a minha cultura é portuguesa, embora tenha sido influenciada pela cultura africana dos meus pais. Toda eu sou portuguesa, não tenho outra palavra para me descrever. Se me querem catalogar, é convosco, o que tenho é de focar-me no que é importante. Tenho a certeza de que, quando vou para a competição, as minhas adversárias não estão a pensar nisso, obviamente só querem saber quanto estou a saltar.
Não veem uma bandeira, mas um número?
Exato, e é preciso ser muito objetiva. A beleza do desporto é que não há diferenças. No meu caso, é apenas saber quem salta muito.
Este é um artigo do semanário Expresso. Clique AQUI para continuar a ler.