Simone Biles não gosta de gatos. Quando era criança, antes de ser entregue a famílias de acolhimento e finalmente adotada pelos avós, as refeições no estômago não eram uma certeza. A mãe, com problemas de drogas e álcool, tinha outras prioridades e Simone nunca o esqueceu.
“Enquanto crescíamos, eu e os meus irmãos estávamos tão concentrados na comida, porque não tínhamos muita”, contou num dos episódios da sua série no Facebook, “Simone vs Herself”. “Lembro-me que havia um gato pela casa e eu tinha fome. Eles alimentavam o gato e eu pensava: ‘Onde raio está a minha comida?’. E é por isso que acho que não gosto de gatos, porque ela alimentava sempre aquele maldito gato da rua. Mas nunca nos alimentava a nós.”
Simone agora é Simone Biles, que faz coisas como The Biles, a tal manobra que implica dois mortais à retaguarda, seguidos de uma meia volta, sempre com o corpo completamente esticado. Biles tem quatro gestos associados ao seu nome e já vai ensaiando uma manobra que nenhuma outra mulher fez em prova, a Yurchenko, normalmente considerada demasiado perigosa para uma ginasta tentar.
Para além de ser a maior ginasta da história dos EUA - nunca perdeu uma grande competição desde que entrou neste mundo em 2013, com 16 anos -, com sete títulos nacionais e 19 mundiais, a rapariga de Ohio é também uma lenda olímpica, depois das cinco medalhas em 2016, quatro delas de ouro. A única que escapou, transformando-se ainda assim em bronze, deveu-se a uma escorregadela na trave. Logo a seguir, na zona mista, o rosto da atleta estava mais fechado do que o cofre mais seguro do mundo.

Jamie Squire
“A Simone também é um ser humano”, disse aos jornalistas, no fim da prova, Martha Karolyi, a coordenadora da equipa de ginástica dos EUA e mulher de Béla Károlyi, que foi treinador de Nadia Comăneci, a jovem romena que fez o impensável e recebeu a redonda nota 10 em 1976, em Montreal. “Uma vez, disseram-me nuns Jogos Olímpicos que não se estavam a divertir. Eu disse-lhes que se vem aos Jogos Olímpicos para se fazer o trabalho. Depois, sim, podemos divertir-nos. Ganhar medalhas é divertido”, sentenciou Károlyi.
Se isso é verdade, Biles não sabe deixar de se divertir.
Mas também é verdade que não aceitou a austeridade tão colada à vida de uma ginasta de elite. Ela publica fotografias a comer comida que não é assim tão saudável ou então aparece em momentos descontraídos com o namorado, um atleta de futebol americano. Ela usa uma farda de ginástica com uma cabra lá inscrita, numa alusão à palavra “goat” (de greatest of all time, ou melhor de sempre), algo que faz só para irritar os haters - ou, em português, quem não gosta dela. No fundo, explica este artigo do “New York Times”, Biles esvazia uma série de mitos sobre a violência que está associada à vida de uma atleta de alta competição, algo que fez também num vídeo para a "Glamour".
“Ela abriu os olhos de tantos miúdos a quem lhes disseram que não podiam fazer isso ou que não eram bons o suficiente ou que não tinham o tipo de corpo necessário”, disse, para o mesmo artigo, a treinadora de Biles, Cecile Landi, uma francesa que participou nos Jogos de 1996, em Atlanta. “Quando eu era atleta, não era assim. Disseram-me que não era suposto ter namorado, que não era suposto comer um biscoito ou algo do género. Eu penso que ela está a mostrar a toda a gente que podes beber uma margarita com a tua família e amigos e que podes também ser a melhor ginasta de todos os tempos.”

Jamie Squire
Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, onde já era rainha antes mesmo de receber a coroa, foram há cinco anos e o foco não mudou. A atleta diz, aliás, que não fecha a porta aos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, quando já terá 27 anos, algo realmente pouco habitual nestas andanças.
Agora, aos 24, a vida mudou um bocadinho depois de ser a garota do Rio e empurrada para a montanha onde habitam outras figuras míticas do desporto. Já mora sozinha, tem dois cães - Lilo e Rambo - e, nos entretantos, lidou com a pressão mediática que resultou da descoberta do maior escândalo de abuso sexual na modalidade, perpetrado pelo médico da seleção, Larry Nassar, que ficará na prisão para o resto da vida.
No horizonte há ainda muito ouro por descobrir, é certo, mas o grande triunfo talvez tenha sido interior, inflamado por tantas histórias nestes meros 24 anos de vida. “Já não sou mais uma menina. Sinto que encontrei a minha voz e uso-a para fazer o bem no mundo e nas redes sociais. Estou mesmo excitada com a vida e com o quanto eu mudei e evolui como pessoa.”

No Rio de Janeiro, em 2016
Alex Livesey
A confirmação de que estará em Tóquio chegou nos últimos dias de junho, quando venceu pela segunda vez os Olympic Trials, algo inédito naquele país. A norte-americana vai ter a companhia de Sunisa Lee, Jordan Chiles e Grace McCallum na equipa de ginástica daquele país, com Mykayla Skinner e Jade Carey como suplentes.
Há, como sempre no desporto, um outro momento que poderá engordar a lenda: se Simone Biles repetir o título individual de all-around que conquistou no Rio, será a primeira ginasta a consegui-lo desde Věra Čáslavská, a checa que o fez em 1964 e 1968, em Tóquio e na Cidade do México. Čáslavská é também a segunda ginasta mais medalhada da história (11) e está ao alcance de Biles, caso esta ganhe medalhas em todas as modalidades em que vai competir e mantenha a ideia de competir em 2024.
A maior de todas ainda é a soviética Larisa Latynina, com 18 medalhas (nove de ouro).