Jogos Olímpicos de Paris 2024

O homem mais rápido do mundo é o espampanante Noah Lyles, que agora, sim, tem motivo para o espalhafato

O homem mais rápido do mundo é o espampanante Noah Lyles, que agora, sim, tem motivo para o espalhafato
Sam Barnes
Ele é exuberante, vistoso e chamar-lhe extrovertido será eufemismo. Noah Lyles venceu o ouro nos 100 metros que disse que ia ganhar e, 20 anos depois, os EUA voltam a ter o tipo mais veloz do planeta. Mas, em Paris, tiveram que esperar: o americano acabou com os mesmos segundos e centésimos (9,79) do que Kinshane Thompson e as medalhas decidiram-se no photo finish. Mesmo depois da corrida houve suspense. Quando esse terminou, Lyles pôde soltar a sua ostentação

São segundos de indefinição, o suspense indelével no ar. Kishane Thompson está calado, mas, meta cruzada, prontificou-se a soltar uns gritos a clamar vitória que a noção o fez reduzir ao mínimo. Ele e os outros sete homens a arfar no tartã, exaustos de tantas fibras musculares recrutadas até ao estoiro, olham vidrados para o ecrã do estádio. Aos ouvidos de Noah Lyles chegou o berro de Thompson, só pode, o norte-americano não demora a surgir pelas costas do jamaicano, põe-lhe as mãos nos ombros e sussurra algo.

Outros segundos decorrem, são poucos, até um grito cortar o ambiente e um dos corpulentos se meter aos pulos na pista, festivo e descontrolado. Ele arranca do equipamento o dorsal que tem o seu nome, estica o braço reto e segura-o ao alto, lê-se “Lyles”, exibe-o às bancadas enquanto corre e é imediatamente perseguido por um pequeno cerco de fotógrafos. A apoteose seguinte é justificada: descobriu-se o homem mais rápido do mundo, maior ainda, o mundo tem um novo tipo a apresentar como o mais rápido, agora sim, o espetáculo pode continuar após a gestação deste microcosmos.

Mas Noah Lyles não o deixa ficar por aqui, não tão cedo.

Rapidamente uma bandeira chega ao norte-americano do cabelo em tranças amarrado à cabeça, o velocista enrola-se nela, é a túnica para todos os segundos e ações procedentes. Vai ter com o sino gigante abeirado à pista, lá posto para os vitoriosos tocarem o gongo e Lyles bate, com força e repetidas vezes. Pousa em vários atos perante as câmaras, há dezenas, numa delas estica os braços, une os pulsos e deixa ajeita as mãos em forma côncava, como a replicar o kamehameha de Son Goku, o poder infalível do herói da série animada Dragon Ball e deduzir que foi esta a alusão não é estapafúrdio porque o americano é fã confesso de anime.

Aos 27 anos, Noah Lyles demorou 9,79 segundos a correr os 100 metros em Paris, os mesmos marcados no relógio por Kishane Thompson antes de os ponteiros irem às milésimas e por isso esta história existir para lá dos segundos - o americano acabou em 784 milésimos, o jamaicano com 789, de vez em quando os mais excelsos de uma modalidade só se distinguem ao microscópio, daí eles e os restantes seis terem de aguardar pelo photo finish que captou na meta os corpos, traçou linhas no ponto em que cada um alcançou o destino e provou, com oito riscos paralelas num fotograma imóvel, o quão renhida foi a final mais inacessível da história.

Pela primeira vez um qualquer tempo inferior a 10 segundos nas meias-finais não foi automaticamente suficiente para ir à corrida das medalhas, vejamos a ordem cronológica:

9.80
9.81
9.83
9.84
9.87
9.91
9.92
9.93

Nesta ordem da qualificação, o último representava o primeiro de Tóquio, há três anos, o italiano Marcell Jacobs que só entrou neste seleto grupo via repescagem, acabou a final em 5.º e com gelo amarrado a uma das coxas; o primeiro pertencia a Kinshane Thompson e o segundo ao compatriota Oblique Seville, que ficou no último lugar entre os tempos que terminaram o show em que os 100 metros são transformados por estes Jogo Olímpicos, amigos à força do espalhafato que condiz particularmente com o tipo sem a melhor marca do ano, nem o tempo mais rápido das qualificações, mas que saiu como vencedor. Porque as ordens invertem-se:

🥇 9.79 (Noah Lyles)
🥈 9.79 (Kishane Thompson)
🥉 9.81 (Fred Kerley)

Kai Pfaffenbach

Noah Lyles era o terceiro mais veloz de Paris e também de 2024, mas pelos seus dizeres e afazeres, antes e depois de entrar no Stade de France. Pouco antes da parada de vaidades, quando cada atleta foi apresentado e chamada a entrar na pista, à vez, o estádio apagou os holofotes e encenou uma mini-cerimónia de abertura com os Jogos abertos faz mais de uma semana, iluminando com tons de roxo e violeta as bancadas. O suspense ensaiado, com os minutos, ameaçou engolir o suspense real, o verdadeiro impossível de copiar.

Os atletas, depois, entraram um a um, todos com um cumprimento ou brincadeira momentânea para a câmara que se punha mesmo à sua frente, à saída do túnel, cada um dos velocistas a retardar a entrada para mostrar ao mundo a sua assinatura gestual, mas não Noah Lyles. Quando o seu nome se ouviu, o americano saiu disparado, desatou aos saltos na pista e a esbracejar à frente da bancada, ele a antítese do que temos por concentração competitiva. Também isso é muito Lyles: diz o atleta que se alimenta do fervor do público, que precisa de tal para render como pão para a boca, que o pior que lhe podem fazer é pô-lo a competir sem o bruá no ambiente, ainda bem então que não se apurou para Tóquio, em 2021, onde um certo bicho barrou a entrada a pessoas.

O suspense artificial e de plástico ameaçaria, uma vez mais, o pináculo das provas do atletismo quando, sabe-se lá porquê, a organização tardou e demorou e prolongou a dar a ordem para os oito homens se aprontarem a partir, deixando-os em pé, especados à espera nas respetivas pistas, já com o protocolo de a câmara os focar por diante uma última vez antes da corrida. Não é simpático para os nervos, as ânsias e as palpitações de quem estava a viver o cume da sua vida desportiva, no provavelmente mais assistido evento destes Jogos Olímpicos.

Clive Rose

Em Tóquio houve cinco milhões de pessoas que se colaram à NBC, canal que transmite os Jogos nos Estados Unidos, só para a final dos 100 metros, uma audiência farta embora pertencente a uma galáxia menor, bem diferente dos cerca de 50 milhões que estavam colados a ver a corrida de 2016, do Rio de Janeiro, a última do inigualável Usain Bolt que aliava à sua lenda atlética um carisma estratosférico. Muito menos terão sido em 2004, quando foi Justin Gatlin o homem mais rápido. Há 20 anos que um americano não dominava os 100 metros olímpicos.

A nação de nadadores rápidos (Katie Ledecky e ginastas incríveis (Simone Biles) fica a poder ostentar em Paris que lá tem também o homem mais rápido destes Jogos e do mundo. É o extravagante Noah Lyles, campeão olímpico aos 27 anos, que antes de ali chegar dizia, acerca de si e dos velocistas contra quem ia correr: “Eu ganho a todos os que toco. Não vejo por que há de ser diferente.”


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