Dembélé voltou a chegar tarde ao destino. Mas, desta vez, o atraso veio com prémio em forma de Bola de Ouro
Kristy Sparow - UEFA
Problemas de pontualidade e lesões constantes foram afastando o francês do destino de excelência que desde cedo lhe fora apontado, mas os últimos 12 meses levaram Dembouz ao patamar mais elevado do futebol. Estrela do PSG papão de Luis Enrique, o ambidestro largou o estatuto de talentoso irregular para abraçar o papel de atacante pressionante e total
Em agosto de 2019, Ousmane Dembélé preparava-se para arrancar a terceira época como jogador do Barcelona. Com as esperanças depositadas numa regularidade que o habilidoso extremo ainda não encontrara na Catalunha, Ernesto Valverde lançou o francês de início na primeira jornada da La Liga, diante do Athletic.
Ao terminar o encontro, saldado por uma derrota culé por 1-0, os médicos do Barça detetaram em Dembélé uma lesão na coxa direita, aconselhando que o futebolista realizasse exames complementares, no dia seguinte, na cidade desportiva do clube. Não obstante, o gaulês afirmou tratar-se somente de um pequeno desconforto e, em vez de ir fazer os solicitados testes, foi para o terminal de voos privados do aeroporto de Barcelona, pronto para viajar para o Senegal com o seu irmão.
Problema: o irmão atrasou-se cinco horas. Solução encontrada por Dembouz: dormir essas cinco horas no aeroporto. Diagnóstico ao regressar: a tal lesão muscular, 35 dias de paragem.
Mais uma paragem. Mais um caso. Aquele encontro em Bilbau foi um dos dois jogos completos de Ousmane na temporada 2019/20. Em 2018/19, o ex-Dortmund só realizara dois desafios do princípio ao fim na La Liga, o mesmo número de 2017/18.
A lesão de agosto de 2019 foi a sexta de 14 sofridas durante as seis temporadas em Espanha, 12 delas nas quatro épocas iniciais. "Fontes do Barcelona afirmam haver 'preocupação generalizada' no clube com Dembélé, tanto física como mentalmente", lia-se naquele verão na ESPN.
As lesões marcaram a passagem de Dembélé pelo Barcelona
NurPhoto
Não é preciso pesquisar muito para encontrar os casos e casinhos do veloz jogador em Camp Nou. Encalhado entre o Messi tardio e o pós-Leo, o campeão do mundo em 2018 era permanentemente destaque, quase sempre um negativo.
"Dembélé já cansa: cresce o desconforto nos gabinetes e no balneário culé pelo comportamento de Ousmane", escrevia o La Vanguardia em novembro de 2018, um mês antes do surgimento de uma arte que, então, o francês dominava: chegar atrasado aos treinos. No caso, foram duas horas.
"Quando não são as lesões, é a falta de intensidade nos treinos, quando não é a falta de intensidade, são os problemas com os horários", notava o AS em outubro de 2020.
Em plena pandemia, Dembélé — sim, o novo Bola de Ouro — recusou-se a ser emprestado ao Manchester United. Estávamos em 2020 e, na Catalunha, o desejo era não pagar os €12 milhões de salário do avançado. Sim, há cinco anos, ficar sem o recém-coroado melhor do mundo era visto como uma poupança, não como uma perda.
Do conflito à metamorfose
Filho de pai do Mali e de mãe com raízes no Senegal e na Mauritânia, Dembélé desde menino se destacou a jogar à bola. A etiqueta de jovem promessa cedo lhe foi colocada e o Rennes, Caen, Le Havre e PSG convidaram-no a ingressar nos respetivos escalões de formação. A escolha recaiu no Rennes.
O driblador e esguio jovem brilhou na Ligue 1 com 18 anos, valendo-lhe o salto para o Borussia Dortmund. Do emblema conhecido por catapultar talentos foi para o Barcelona, saindo pela porta pequena para o PSG.
Em Paris, Ousmane cruzou-se com Luis Enrique. No primeiro ano, a convivência também foi com Kylian Mbappé, outro fenómeno francês precoce, mas diametralmente oposto na forma como sempre foi visto como profissional modélico.
PSG, Luis Enrique, a Champions, Dembélé
Mondadori Portfolio
No defeso de 2024, Mbappé fechou a novela Real Madrid e deixou aberto o poleiro de líder em Paris. O estatuto foi ocupado não por um futebolista, mas pelo asturiano que se sentava umas vezes no banco e outras na bancada, lá no alto, para ver o campo com visão de falcão.
Final de setembro de 2024. Há 12 meses. Após uma discussão com Luis Enrique, Dembélé é riscado da convocatória para um desafio perante o Arsenal. "Se alguém não cumpre ou respeita o exigido para com a equipa, isso significa que não está preparado para jogar. O jogo é muito importante e quero que todos os meus jogadores estejam prontos, pelo que, consequentemente, deixei-o [Dembélé] de fora. Quero o melhor para a equipa e para o meu trabalho", justificou o treinador.
Mais um caso, mais um episódio? Não. A reviravolta.
O PSG fez clique e Ousmane também. Fez-se esperar mas, vendo bem, "ele tem o hábito de se atrasar", comentou recentemente Didier Deschamps, seu selecionador. Em seis anos de Barcelona, Dembouz marcou 40 vezes. Só em 2024/25, marcou 35 golos, aos quais se juntaram 14 assistências.
Num papel mais central no ataque, a antiga alcunha de "mosquito" justificou-se mais que nunca. Foi esvoaçando, caindo aqui e ali, ora mais junto dos médios, ora no ataque, mais numa ala, mais procurando a profundidade. Na Liga dos Campeões marcou a Manchester City, Liverpool e Arsenal, no Mundial de Clubes festejou perante Bayern e Real Madrid.
E pressionou, pressionou uma e outra vez, transformado em soldado das ordens de Luis Enrique. Há uma imagem na final da Liga dos Campeões, quando o PSG arrasou o Inter, em que Dembélé parece um velocista antes de partir para os 100 metros, aguardando que os italianos colocassem a bola em jogo para disparar a morder a saída de bola.
"É o melhor jogador da época, de longe. O comportamento dele é impecável", classificou Enrique depois das meias-finais do Mundial de Clubes.
A caixa de ferramentas
De certa forma, Dembélé sintetiza várias tendências e tópicos estruturantes do futebol moderno: o jovem prodígio formado pelas escolas francesas, que criam craques quase como linha de montagem; o adolescente que se desenvolve no Dortmund; a transferência milionária que foi consequência da ida de Neymar para o PSG, um dos momentos mais importantes do futebol do século XXI e que também teve Dembélé entre os afetados; o talento perdido no caos do Barcelona, esquecido na confusão do pós-Messi; o avançado que chegou ao topo quando integrado numa equipa que é uma unidade altamente funcional, um talento que se expressou melhor na ordem, como uma parte altamente especializada de uma engrenagem.
Até os rumores em torno da vida privada do jogador tinham toques de século XXI. As histórias não eram sobre álcool ou saídas à noite, mas sobre como Dembélé ficava em casa, isolado da vida social, jogando videojogos, assistindo a "Narcos" ou comendo fast food. Adeus controvérsia quanto ao futebolista que saia à noite, olá debates em torno do que não sai.
Deixar a comida rápida e contratar um nutricionista é frequentemente mencionado como chave para uma maior disponibilidade física. Em 2024/25 fez 53 encontros, um novo recorde pessoal.
Ronaldinho e Dembélé na gala
Kristian Skeie - UEFA
"É um dos talentos mais incríveis que já vi. Tem um talento nato. É uma caixa repleta de ferramentas, mas tem de aprender a usá-las", disse, em 2017, Thomas Tuchel, que o treinou no Dortmund.
O caráter algo despistado que mostrou em Barcelona também se notava dentro de campo. Luis Suárez chegou a dizer que "nunca sabes se te vai devolver a tabela ou não" e que, por vezes, quando via o francês arrancar, olhava para Messi com um olhar de "já nunca mais o vemos".
"Dembouz esperou até aos 28 anos para conseguir a melhor temporada da carreira. Uma consagração tardia e apoteótica, após uma carreira cheia de altos e baixos", escreveu o Le Monde.
Ousmane fez-se esperar, mas teve prémio. Recebeu-o de Ronaldinho Gaúcho, que a certo momento da vida em Barcelona também não queria muito saber de horários. Só que o brasileiro não era para ficar em casa, era mais para sair. De sorriso a transbordar de alegria e uma face que parecia a do homem mais feliz da terra, Dembélé chegou, finalmente, onde há muito o aguardavam.