Guardiola estacionou o autocarro e o City teve a menor posse de bola na carreira do treinador: 32,8%
John Walton - PA Images
O Manchester City empatou, no domingo, em casa do Arsenal, onde registou a menor posse de bola de uma equipa de Pep Guardiola em mais de 600 jogos do espanhol em campeonatos nacionais. Os cityzens fecharam-se atrás, em bloco baixo, às tantas com cinco defesas e a apostar em bolas diretas para Erling Haaland, todo um estilo contrário ao que o treinador preconiza há mais de 15 anos. Estará ele disposto a mudar radicalmente? “Agora sou uma equipa de transição”, anunciou
Já são muitos anos de Pep Guardiola a querer fazer as coisas de uma certa forma, inculcada há muito na sua cabeça de discípulo catalão de Johan Cruijff, pregador de valorizar a bola, de não a perder, crente no dogma lógico e redundante de ‘enquanto nós a tivermos, o adversário não a tem’. Desde a sua erupção, em 2008, no Barcelona, o futebol praticado pelas suas equipas fê-lo ser sinónimo de um estilo, simplisticamente resumido numa frase que mete uma expressão que não lhe apraz: Pep gosta de ser um ditador da bola, trocar muitos passes e abusar do tiki-taka.
Foi mais de década e meia assim, ganhando mais ou menos, era certo como o efeito da gravidade o Barça, o Bayern de Munique e o Manchester City gozarem de bastante mais tempo com a bola do que os adversários, resignados a aceitar essa condição ou incapacitados, porque órfãos de armas semelhantes (leia-se, jogadores de qualidade), para discutir de quem é a bola. Mas, pelos vistos, essa ditadura acabou. “Agora sou uma equipa de transição”, anunciou Guardiola, no final da partida, com um discurso cedente às circunstâncias.
Quando falou, já uma estatística era partilhada amiúde, embalada pela surpresa com que era recebida. Fechado o empate (1-1) do City, em Londres, no estádio do Arsenal, a equipa de Guardiola acabou com 32,8% de posse de bola, o menor registo em 601 partidas feitas pelo treinar em campeonatos nacionais, garantiu a Opta, empresa de dados. Os queixos do futebol caíram no chão devido ao tipo de número com que, durante anos, Pep vergava a maioria dos adversários, mas igualmente por causa da exibição deixada pelo azuis de Manchester em casa dos gunners.
O City não teve problemas em jogar com um bloco baixo, recuado junto à sua área a defender, de pazes feitas com deixar a iniciativa para o Arsenal, fechando os caminhos para a sua baliza e, várias vezes, alinhando os seus 11 homens atrás da linha da bola. Viu-se uma equipa a procurar, de forma direta, o gigante Erling Haaland lá na frente e a fazer demorar um outro, de luvas postas, a bater os pontapés de baliza - Gigi Donnarumma até viu um cartão amarelo por esse pecado. Se partirmos do que julgávamos ser um cânone, foi uma hora e meia de um futebol anti-Guardiola.
Mas, como tudo na vida, as pessoas mudam. “Às vezes acontece, tens de defender, honestamente - porque o adversário é melhor. Quando tens de o aceitar, tens de sobreviver dessa forma. Foi o que fizemos”, explicou Guardiola, terminado o jogo, embora confessando que “gostaria de jogar de outra maneira”. Na sua crónica da partida, o jornal “The Independent”, encavalitado em estereótipos antigos, chegou a escrever que “se calhar Guardiola abraçou o seu Mourinho interior” e “algures em Lisboa o frequentemente ‘Sacked One’ [O Despedido] pode ter acenado com a cabeça em aprovação”.
John Walton - PA Images
O espanhol elogiou o Arsenal de Mikel Arteta, que a época passada derrotou o City por 5-1 em Londres e, com este empate, virou o primeiro treinador a ficar invicto frente a Guardiola em cinco partidas consecutivas da Premier League. “São, de longe, uma das melhores equipas da Europa”, reconheceu, virando o bico ao prego perante a sua mímica do que tantos adversários se predispuseram a fazer contra ele e, ocasionalmente, com recompensa: “Quando jogamos muitos jogos em 10 anos [em Inglaterra], as equipa defendem baixo, baixo, baixo e levam um resultado da prestação fantástica, do mindset, da estratégia… Por vezes, acontece.”
Em Londres, por pouco o Manchester City não sorriu desta forma. Marcou cedo, aos 9’, por Haaland, recuou as suas linhas e, na segunda parte, disposto num 5-4-1 e rendido ao contra-ataque, apenas sofreu um golo aos 90’+3, marcado por Gabriel Martinelli. “A nossa resiliência foi fantástica, caso contrário não teríamos sobrevivido.” Guardiola a falar de resistir em campo em vez de oprimir, eis uma notícia. Os 32,8% de posse de bola são um reflexo desse plano: “Uma vez em 10 anos não é mau, certo? Tenho de me provar contra outra estratégia. Agora sou uma equipa de transição”, acrescentou. Os próximos tempos darão a prova se o que disse foi verdadeiro.
Porque, na realidade, Guardiola muito tem dito desde o final da época passada que o Manchester City está em renovação, a transitar entre eras (saíram Kevin de Bruyne e İlkay Gündoğan, esteios do clube) e a adaptar-se a novos jogadores enquanto o treinador, como agora o mostra, também se adapta, após uma temporada em que sofreu como nunca: no final do ano passado, de outubro a janeiro, os cityzens tivera uma fase com apenas uma vitória em 12 jogos, quando tudo parecia ruir.
Esta visita ao Arsenal mostrou um City e um Guardiola rendidos à adaptação ao adversário, em particular no momento das bolas paradas. É conhecido o poder dos londrinos nos cantos ofensivos, laborioso que é a trabalhá-los nos treinos com Nicolas Jover, o adjunto de Arteta que é o crânio das bolas paradas, então Pep arregimentou os seus para o contrariarem: além de Donnarumma e Haaland, juntou cinco defesas altos para ter mais de meia equipa a encher a sua área de altura. Os gunners que tantas partidas desatam dessa forma jamais ameaçaram nos 11 cantos que tiveram ao longo do encontro.
Por um triz, o City mais anti-Guardiola já visto não saiu de Londres com uma vitória fruto do que a gíria futebolística classificaria de pragmatismo. À sua 17.ª temporada, o espanhol mostrou que também se pode render ao que tem de ser e não apenas ao que ele quer que seja.